POR CLÓVIS GRUNER
O tcheco Max Brod, biógrafo de Franz Kafka, perguntou um dia
ao escritor e amigo se ele acreditava existir alguma esperança “fora desse
mundo de aparências que conhecemos?”. A resposta foi kafkiana: “Há esperança
suficiente, esperança infinita. Mas não para nós”. Lembro-me do diálogo a
propósito do segundo turno das eleições presidenciais, que encerram domingo
próximo. Está a se vender demasiada esperança em troca do voto, tanto Aécio
como Dilma. Esta mais diretamente, aquele quase sempre por metáforas que acusam
a candidata à reeleição e seus eleitores de “olhar sempre pelo retrovisor”
quando, diz ele, é hora de olharmos para frente.
Pois diferente do que prega Aécio, decidi meu voto no segundo
turno – no primeiro fui eleitor de Luciana Genro, do PSOL – principalmente
porque cultivo o saudável hábito de olhar sempre pelos retrovisores. Se em uma
eleição toda escolha implica certo grau de incerteza e risco, porque não há garantias sobre como o candidato, se eleito, se comportará ao longo do
mandato, o recurso ao passado pode
servir para orientar escolhas no presente,
além de nos ajudar a compor aquilo que o historiador alemão Reinhart Koselleck denominou “horizonte de expectativas”, o mais próximo que nos é permitido vislumbrar do que chamamos de futuro.
OLHAR PARA TRÁS UMA VEZ – De um de meus retrovisores eu vejo
um país que em 2011 atingiu o menor índice de desigualdade social da história, muito
disso em função do Bolsa Família: em 10 anos, o programa tirou cerca de 36 milhões de pessoas da extrema pobreza e
contribuiu para a redução da mortalidade infantil em 40%. Também na última
década, o crescimento real da renda dos 10% mais pobres foi de 91,2%. As
políticas sociais implementadas ou ampliadas pelos governos petistas – e que
provocam um surto de esquizofrenia em muitos eleitores tucanos – contribuíram
para que neste ano o Brasil, pela primeira vez desde que o instrumento foi criado,
ficasse fora do Mapa Mundial da Fome, depois de reduzir em 82% a população em
situação de subalimentação.
Em outra
área que me afeta sensivelmente, a escolaridade média da população de 25 anos
ou mais aumentou na década entre 2002 e 2012, passando de 6,1 para 7,6 anos de
estudo completos. O incremento foi mais intenso no ensino fundamental e atingiu
principalmente os “mais pobres”, graças a programas como o Viver Sem Limite e o Caminho da Escola, destinados respectivamente à crianças portadores
de deficiência e moradoras de zonas rurais e ribeirinhas. No ensino superior,
entre outras coisas, a política de cotas ajudou a triplicar o número de negros
nas universidades; o programa Ciência Sem Fronteiras levou 60 mil universitários para estagiar e estudar
em universidades estrangeiras; novas universidades foram construídas,
ampliando o número de vagas em instituições públicas federais; e aumentou a oferta de
bolsas para estudantes de graduação e pós-graduação.
(Você também
pode dar uma olhada no retrovisor do Murilo Cleto, do blog Desafinado, com uma visão bem mais
panorâmica que o meu.)
E OLHAR DE
NOVO – No segundo retrovisor as imagens são menos agradáveis. Há a corrupção, mas sua presença nos últimos governos não me incomoda mais nem menos que nos
anteriores, no que sou diferente de muitos eleitores, inclusive colegas deste blog, cuja
indignação é bastante seletiva. Gostaria de ver todos os culpados
presos, mas tucanos e aliados estão e provavelmente continuarão todos soltos. O
discurso contra a corrupção, aliás, ajudou a alimentar uma indignação dispersa e sem conteúdo e a
transformá-la em um ódio quase patológico dirigido principalmente contra o PT mas,
não raro, generalizado e direcionado, indiscriminadamente, à esquerda. Na ausência de propostas, a oposição passou os últimos 12 anos batendo na mesma tecla, ciente de que se trata de um discurso de fácil adesão: ao menos em tese, afinal, mesmo o sujeito que estaciona em vaga proibida, pára o carro em cima da faixa de pedestres ou suborna um agente público, é contra a corrupção, não é mesmo?
Dos
fragmentos de imagens que chegam do passado, me incomoda muito mais o viés conservador dos últimos
governos, notadamente o último; as alianças comprometedoras, que
acabaram por tornar figuras como a senadora Kátia Abreu parte da base de apoio
de Dilma Rousseff, além de sua aliada nesta eleição; a ausência de uma política efetiva de garantia dos direitos humanos e das minorias, expressa na
indiferença ou mesmo na truculência com que foram tratadas as demandas LGBTs e
das comunidades indígenas, por exemplo; a subserviência aos grupos de
comunicação, que impediu o governo de levar adiante o necessário e urgente
marco regulatório, condição fundamental à uma efetiva democratização das
mídias; a criminalização dos movimentos sociais e a repressão violenta, junto com os governos estaduais, das manifestações de 2013
e do #NãoVaiTerCopa, nesse ano; e, enfim, uma política de segurança pública
equivocada, cujas escolhas nem de longe tocam no que é fundamental: a
desmilitarização da polícia e uma nova política penitenciária.
O RISCO DO
RETROCESSO – Na hora de decidir meu voto no segundo turno, isso pesou tanto ou
mais que o conjunto de realizações sumariamente elencadas acima. Políticas de
inclusão social são sempre muitíssimo bem vindas, mas cidadania não se constroi
apenas pela inserção de novos consumidores no mercado, e nosso amadurecimento
democrático implica, justamente, seguir avançando naqueles pontos onde os governos
petistas – os dois de Lula inclusos – avançaram timidamente ou simplesmente não
avançaram. A consciência disso ajuda a contabilizar os riscos de minha
escolha e a ajustar minhas expectativas a elas: não acredito que iremos avançar
muito mais nos próximos anos do que conseguimos nos últimos quatro.
Mas
acredito, por outro lado, que as conquistas sociais elencadas acima, entre
outras, são importantes demais para as colocarmos em risco com quatro anos de uma aliança historicamente pouco comprometida com elas. E que a candidatura
do PT representa, hoje, se não a garantia mas a possibilidade de não retrocedermos
ainda mais nas demais pautas, postas sob ameaça maior em um eventual governo tucano. É claro que, não importa quem seja o próximo partido a ocupar o governo, será preciso tensioná-lo para tentar garantir algumas mudanças que, principalmente os grupos e forças conservadores, temem e recusam, o que não será tarefa fácil. Não
há certezas em uma eleição, mas olhar atentamente o retrovisor pode ajudar a
evitar retrocessos e evita alimentar ilusões. Talvez não haja esperança suficiente para nós. Mas me satisfaz a ideia de que, no domingo, a
memória pode vencer o ódio.