POR LIBER PAZ
Quando trabalhei com ilustração,
muitos anos atrás, a coisa que mais ouvia era: “faz um desenho bem simples, faz
bem rapidinho”, que era um jeito de dizer “faça barato”. Na época, em 2001, eu
era sócio de um estúdio e a gente tinha basicamente dois tipos de clientes:
agências de publicidade e editoras de livros didáticos.
O trabalho de ilustrar livros
didáticos era muito exaustivo e mecânico. Uma vez, fizemos uma ilustração de
crianças brincando num pátio para uma grande editora. Recebemos um pedido para
corrigir a ilustração: “clareiem essas crianças”. Ficamos chocados, mas você
não discute com patrão, porque ele tem o poder na negociação. Então,
transformamos as crianças negras em loirinhas.
Muitos trabalhos de publicidade
pediam para copiarmos estilos de ilustração de sujeitos que cobravam caro
demais. O “diretor de arte” chegava com a amostra e dizia: “ó, faz assim, só
que diferente”. Diferente o suficiente pra não ser processado. Claro que teve vezes
em que conseguimos emplacar nosso próprio estilo, mas no geral apenas obedecíamos
a ordens e orientações do contratante.
Vale citar aqui a conversa que
tive com um publicitário que me falou que não via diferença nenhuma entre um
ilustrador e um vendedor de detergente: éramos todos fornecedores e facilmente
substituíveis. Vale lembrar também o hábito das concorrências, no qual
basicamente temos um cliente que chama cinco ou seis estúdios pra resolver um
trabalho e paga apenas ao que escolher. Isto é, você faz todo o trabalho e se o
cliente gostar mais do trabalho do seu concorrente, ele não lhe paga. Nesse
sistema, de cinco estúdios, quatro trabalhavam absolutamente de graça. As
justificativas eram: 1) é assim que as coisas funcionam; 2) ninguém obriga a
participar; 3) se reclamar, nunca mais lhe damos serviço.
Esse é um resumo da minha
percepção da atividade de ilustrador. Em todas as conversas com editoras de
livros didáticos, publicitários e marqueteiros, o trabalho de ilustração era
desmerecido e desvalorizado ao máximo. Orçamentos feitos em cima do tempo
necessário, dos custos operacionais, do esforço e da nossa habilidade eram
considerados absurdos. Pessoas que não sabiam segurar um lápis vinham nos dizer
que cobrávamos caro demais, e propunham valores ridiculamente baixos seguidos
de um “se quer, quer. Se não, tá cheio de gente que sabe desenhar por aí”.
Essa descrição toda que estou
dando aqui é a de “trabalho”. O ato de desenhar entendido não como “arte”, mas
como uma habilidade disponível pra ser vendida e cumprir uma função específica
e objetiva. “O mundo é assim”. Essa é a justificativa.
Quando eu escuto pessoas falando
que, agora que o Ministério da Cultura acabou, “vagabundos vão parar de mamar
nas tetas do governo e começar a trabalhar”, eu penso que são as mesmas pessoas
com quem eu tinha que tratar na época do estúdio. Gente que não enxerga nada
além do seu próprio interesse, gente que não tem nenhum objetivo além do
próprio lucro e, pior, gente que tem a certeza absoluta de que o mundo é
exatamente do jeito que ela pensa e limitado ao que ela conhece. Nesse caso, o
valor de todas as coisas está também limitado ao valor de dinheiro que elas
podem oferecer e nada mais.
AS RAZÕES DE UM MINISTÉRIO DA CULTURA - Um ministério é um setor do governo que ajuda a
administrar um país, e a administração de um país é algo muito complexo, que
exige mais reflexão e informação do que o “negociador” padrão possui. Ainda
mais um país continental como o Brasil. O entendimento do Ministério da Cultura
como um canal pra “dar” dinheiro público a artistas “vagabundos” é tão
equivocado, tão ignóbil, que me dá um nó no estômago.
Sim, é verdade que há absurdos.
Incentivos para Circos de Soleil e artistas tão bem posicionados que não
precisariam desses apoios. Por outro lado, lembro das isenções fiscais dadas às
montadoras automobilísticas aqui no Paraná. O objetivo era facilitar pra essas
empresas (que não precisavam de nenhuma facilitação) porque a presença delas
supostamente iria aquecer a economia do estado.
Pensar algo como a Cultura do
ponto de vista de investimento econômico é entendê-la de forma limitada, mas
ainda assim não é incorreto. Porque a produção cultural pode ser capitalizada,
pode gerar empregos, pode gerar riquezas. Nesse sentido, políticas públicas
como divulgação, verbas e projetos de incentivo são fundamentais para o
desenvolvimento do setor.
Consideramos como indústria a
produção de automóveis. Mas é uma produção que não tem mais como expandir. É
absurdo querer colocar mais carros nas ruas. Daí faz muito sentido deslocar a
relevância das indústrias automotivas para outras áreas, como a Cultura. Lógico
que isso não interessa às grandes montadoras, aos grandes empresários, aos
donos de TV e agências de publicidade, que faturam alto com a propaganda dos
carrinhos.
Mas pensa. É só uma questão de
valorizar, de incentivar, e podemos ter produção de cinema, jogos, livros,
quadrinhos, peças de teatro, uma porrada de produtos. O consumo pode ser
ampliado, podemos ter produção local, podemos ter mais empregos, podemos criar
uma atividade econômica estável em cima de produtos simbólicos. Podemos ter um
mundo mais feliz. Trata-se de uma mudança de percepções, de paradigmas, que
poderia implicar uma economia mais saudável, sustentável, digna e humana.
E para isso precisamos de um
Ministério da Cultura, precisamos de uma compreensão e um interesse da
Cultura como uma alternativa econômica extremamente viável e atraente. Mas não
temos isso. Temos pessoas que acham que a Cultura é mais uma bobagem, que não é
trabalho de “verdade”. Temos pessoas que realmente não veem diferença nenhuma
entre uma música, um filme, um livro ou um frasco de detergente. Aliás, elas
veem sim: para elas, o frasco de detergente serve pra alguma coisa.
São essas pessoas que acham que “nenhum
direito é absoluto”, que pensam que onerar a maioria da população com impostos
e cortes em direitos à saúde e educação é contribuir para o crescimento do
Brasil. Para essas pessoas, o enriquecimento indecente daqueles que já tem
muito mais do que merecem é a mesma coisa que o crescimento do Brasil. E esse
pensamento não é exclusivo de certos brasileiros. Há muita gente em outros
países que pensa da mesma forma. É um pensamento empedrado, perverso, egoísta,
que atende somente aos interesses dos muito ricos.
Mas também é um erro considerar
que Cultura é só uma possibilidade de novas formas de mercado e economia. Cultura
também é festa, festas populares, festivais, museus, atividades comunitárias,
bibliotecas, espaços para circular e trocar ideias e crescer como ser humano.
Nenhum interesse privado vai investir em bibliotecas ou museus a não ser para
servir de marketing ou para afagar o ego do mega empresário que se vê como um
bem-feitor da sociedade da qual toma todas as riquezas. Por isso é importante o
Ministério da Cultura. Ainda que tenha seus problemas, vale a pena corrigi-los.
Vale a pena lutar por essa Cultura.
Esse textão dificilmente vai ser
lido por muita gente. E muita gente não vai mudar de ideia, se lê-lo. Vai
continuar achando que Cultura é coisa de vagabundo e que detergente é melhor do
que livro. Essas pessoas são as que mais precisavam desse ministério. É triste.
Aos que estão aí e compreendem
tudo isso, faço o convite de resistir como puder. Resistir nas conversas,
resistir no diálogo, resistir na paciência de ser a água mole em pedra dura.
Porque essas pessoas que tem pedras no lugar dos cérebros e do coração, talvez
possam ser despertas, talvez possam entender que o mundo tem espaço pra muitos
outros jeitos de pensar além do delas.
E porque nós simplesmente não
podemos desistir nunca de tentar tornar esse mundo um lugar um pouco menos
miserável.
* Liber Paz é professor da Universidade Federal Tecnológica do
Paraná (UTFPR) e autor de quadrinhos. Além de participações em obras coletivas,
publicou “As coisas que Cecília fez” (2013) e “Dias interessantes” (2015)
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