sábado, 25 de maio de 2013

Tal país, quais direitos?



POR CLÓVIS GRUNER

A invenção dos direitos humanos é recente: o conceito de que indivíduos devem ter assegurados pelos seus governos alguns direitos fundamentais remonta ao final do século XVII, consolidando-se principalmente ao longo do XVIII. É verdade que nem sempre há coincidência entre as palavras e as coisas, como atestam os milhares de mortos durante o Terror jacobino na França revolucionada. Por outro lado, é igualmente significativo que alguns dos principais documentos que estabeleceram os parâmetros dos direitos humanos apareceram quase sempre em momentos de crise, seja para afirmá-los ou defendê-los.

Foi assim com a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Em contextos distintos, ambas são marcadas pela insubmissão à tirania e ao absolutismo. Inspirados no liberalismo e no iluminismo, cidadãos americanos e franceses denunciaram o despotismo e defenderam o direito à liberdade, à segurança e à busca da felicidade – que, naquele momento, possuía um conteúdo político fundamental, pouco tendo a ver com a noção algo banalizada que temos hoje da palavra “felicidade”.

No final do século seguinte seria a vez da Igreja Católica. Com a encíclica Rerum Novarum, de 1891, Leão XIII se posicionava e a Santa Sé, frente às muitas mudanças experimentadas ao longo do oitocentos. É verdade que o documento é bastante conservador – afinal, trata-se de uma encíclica papal –, e traz nas entrelinhas um indisfarçável desejo de conter o avanço dos grupos e doutrinas socialistas que ganhavam força na Europa. Mas ele revela, igualmente, a vontade política da igreja de estabelecer uma doutrina social preocupada em assegurar e ampliar os direitos dos mais fragilizados pela consolidação do capitalismo industrial – preocupação abandonada nas décadas seguintes, exceção feita talvez ao pontificado de João XXIII e à Teologia da Libertação.

Não é preciso me alongar muito sobre o contexto do surgimento, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos: saíamos de dois conflitos mundiais com milhões de mortos; o mundo viu e viveu a experiência da Shoah e das bombas atômicas.  Alguém poderá sempre objetar que se trata, uma vez mais, de palavras, e que atrocidades continuaram e continuam a ocorrer mundo afora. E é verdade, ao menos em parte. Mas eu continuo a afirmar a pertinência da Declaração e dos documentos produzidos a partir dela – e o fato de que a maior potência mundial, os Estados Unidos, tenha se recusado a assinar alguns deles, tais como a criação do Tribunal Penal Internacional e o Protocolo de Kyoto (sim, a questão ambiental é um problema de direitos humanos), me parece um bom indicativo de seu valor.

RETROCEDEMOS – No Brasil, o tema nunca foi tratado de maneira responsável por nenhum de seus governos democráticos – e desta noção estão excluídas, obviamente, a Monarquia e as ditaduras do período republicano. Nos anos imediatamente subsequentes ao fim da última ditadura civil militar, continuamos a conviver com os muitos resquícios de uma herança sórdida, como dão testemunho as chacinas do Carandiru e da Candelária, para ficar apenas nos exemplos mais eloquentes. Vislumbrei alguma perspectiva de mudança com a eleição de FHC, por conta de sua trajetória pregressa. Mas minhas expectativas morreram junto com os 19 sem-terra massacrados em Eldorado do Carajás. Alguma coisa mudou nos governos Lula, em parte por conta da institucionalização das muitas demandas dos movimentos sociais, incorporadas ao Estado e transformadas em políticas públicas oficias – processo que mereceria uma análise mais cuidadosa, o que não farei aqui.

Nos últimos anos, no entanto, retrocedemos em relação ao pouco que avançamos. E não me refiro apenas a excrescência que é ter Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, a usar a autoridade e a visibilidade que o cargo lhe confere para barrar iniciativas como a campanha de prevenção a Aids ou de combate à homofobia nas escolas. Fosse isso, e já era muito. Mas não é. Na semana que findou, foi publicado o Informe 2013 da Anistia Internacional. O capítulo dedicado ao Brasil traça um perfil lamentável: temos uma das polícias mais violentas do mundo, responsável pelo assassinato diário de dezenas de pessoas nas periferias das cidades brasileiras. Nosso índice de encarceramento é um dos mais altos entre os países democráticos, e nossas prisões há tempos tornaram-se inviáveis (se algum dia já foram viáveis), reféns do descaso oficial e do crime organizado. Os elevados índices de desigualdade social, que insistem em permanecer apesar das iniciativas e da propaganda oficial, continuam a fazer recrudescer a violência e, com ela, a intolerância de setores principalmente das camadas médias urbanas, desejosos por medidas igualmente violentas, mas com respaldo estatal, tal como a redução da maioridade penal. 

Nas últimas semanas, a ocupação das obras da usina de Belo Monte, em Altamira, no Pará, lançou luz sobre a situação de comunidades indígenas que, à sua revelia, foram ou estão a ser prejudicadas e expulsas de suas terras. Durante os oito dias de ocupação, encerrada por ordem judicial, vigorou a truculência, com patrocínio oficial: forças das polícias federal, militar e rodoviária e do exército, barraram o acesso de civis solidários aos indígenas, censuraram jornalistas, impediram a entrada de advogados; sitiados, os ocupantes não tiveram acesso a carvão para cozinhar, nem aos meios de comunicação. Em um gesto que ilustra exemplarmente a truculência, as forças da ordem bloquearam carros com agentes de saúde, que só tiveram permitido seu acesso as obras a pé. Não vou me alongar mais, porque há muita coisa escrita sobre o impacto humano e ambiental de Belo Monte (o professor Idelber Avelar organizou um extenso dossiê sobre o assunto, disponível em seu ex-blog Um outro olhar); e há ainda o Ocupação Belo Monte, que vale a pena ser lido por quem se interessa sobre o assunto.

PARA ONDE VAMOS, AFINAL? – Como toda explicação parcial, acreditar que este estado de coisas é fruto somente da aliança do governo com setores religiosos e conservadores, pode ofuscar outros aspectos da questão. Primeiro, porque não se trata de problema novo e, sob diferentes prismas, nossa recusa a acertar as contas com o passado recente, como fizeram outros países, e optar pelo caminho enganosamente fácil de uma falsa conciliação, dificulta darmos o passo definitivo em direção à consolidação de uma democracia mais sólida e sensível aos direitos humanos.

Por outro lado, não se pode eximir o atual governo de sua cota de responsabilidade. Aquilo que alguns analistas tratam como uma atualização do discurso nacional-desenvolvimentista negligenciou, quando não mesmo tentou impor o silêncio, aqueles grupos cujos direitos e interesses contradizem os do governo e de seus novos (ou nem tão novos) aliados. É o que está a acontecer, por exemplo, em Belo Monte, onde os direitos das comunidades indígenas têm sido violentados por empreiteiras, como já o foram antes por ruralistas, com o consentimento e a participação do governo. Durante a ocupação, uma verdadeira campanha de desumanização foi movida contra os índios, ecoando inclusive nas páginas daquela imprensa que os governistas chamam de “golpista”.

A estratégia do desenvolvimento a qualquer custo complementa o esforço por diluir o tema dos direitos humanos nos índices de diminuição da pobreza percebidos na última década. Que fique claro: nada tenho contra as ações sociais patrocinadas pelo atual e pelos dois últimos governos; quaisquer iniciativas que tenham por fim diminuir nossos escandalosos índices de miséria são sempre bem vindas. Minha questão é outra. O combate à pobreza e à miséria, em que pese sua urgência, não esgota o problema. Uma política ativa de respeito aos direitos humanos precisa assegurar a laicidade do Estado e a igualdade dos direitos civis; conduzir firmemente o processo de acerto de contas com nosso passado autoritário; respeitar e fazer respeitar as diferenças de gênero, étnicas e religiosas, entre outras; afiançar o acesso à saúde; investir na educação pública e de qualidade, em todos os níveis; combater a violência institucional, dentro e fora das penitenciárias; garantir um marco regulatório sem o qual a liberdade de imprensa resta ameaçada (não, você não leu errado: não é a existência de um marco regulatório que ameaça a liberdade de imprensa, mas a ausência de um); enfrentar a violência que grassa no campo e realizar uma efetiva reforma agrária; promover um desenvolvimento sustentável, atento aos riscos ambientais inerentes ao progresso tecnológico e industrial; etc...

Os critérios pelos quais medimos nosso nível de civilização não podem basear-se apenas no acesso ao mercado e na ampliação do consumo. Isso é bom, necessário até. Mas não é o suficiente. No passado os momentos de crise ou de transformação serviram para reafirmar alguns valores inalienáveis, “por si mesmo evidentes”. Sigamos este exemplo.

9 comentários:

  1. As mudanças de ruptura, de verdadeiro impacto, ocorrem apenas nos momentos mais traumáticos, infelizmente.
    O Brasil é vítima do incrementalismo, das mudanças a conta-gotas.
    Numa economia mais estável, onde se tem o acesso à comida e diversão (pão e circo) de forma mais fácil do que outrora, as pressões por mudanças são bem menores.
    Em sua opinião, Clóvis, esse acomodamento natural é cultural no Brasil? Ou é simplesmente falta de educação?

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    1. Pedro, acho difícil optar por uma ou outra coisa; são muitos os fatores, históricos e culturais todos, a meu ver. Como historiador, não acredito que exista algo "natural" que explique esta ou aquela realidade, este ou aquele contexto.

      Do ponto de vista do Estado, abundam exemplos de desrespeito sistemáticos aos direitos elementares ao longo da história do país - basta lembrar que o Brasil foi dos últimos países a abolir a escravidão, por exemplo.

      Não acho que condutas cotidianas sejam determinadas pelo Estado, mas acho também que políticas governamentais, tais como a indiferença, influenciam por caminhos muitos a maneira como nós, cidadãos, intervimos no dia-a-dia.

      Ou seja, acredito que ao menos em parte nossa indiferença para com o outro seja um desdobramento de uma história de indiferenças por parte dos muitos governos, que nos afetaram de diferentes formas - a começar pela indiferença com a educação.

      Por outro lado, o acesso ao conhecimento não é salvo conduto para a sensibilidade social. Visite os posts da Fernanda e do Baço - o do Baço, especialmente - sobre o Bolsa Família. O amontoado de lugares comuns, preconceitos e ódios de classe despejados por lá vem de gente educada, muitas delas, possivelmente, diplomadas.

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  2. Putz, comecei a ler o texto hoje, acho que até terça eu termino...

    NelsonJoi@bol.com.br

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  3. Então,

    Houve um momento neste país que os direitos humanos foram realmente respeitados, ao menos em teoria.

    Quando da elaboração da Constituição Cidadã, em 1988.

    Alguns dizem que direitos humanos nunca são demais. Pois eu digo que muito direito, com pouca aplicação é a mesma coisa que nada.

    Em 1988, estávamos saindo de um regime de exceção, ficamos muito preocupados em garantir todo e qualquer direito possível, devido ao trauma que o golpe de 64 nos causara.

    A consequência é que o País ficou engessado de tantos direitos, e o mais primordial de todos, que é o direito de livre arbítrio, ficou algemado em um emaranhado de leis e normas, muitas das quais, até hoje, não estão regulamentadas.

    Ao esquecermos deste direito básico, ao ficarmos amarrados a tutela do estado para tudo, esquecemos que, também, somos senhores de nosso destino.

    NelsonJoi@bol.com.br

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  4. Ponto para = Garantir um marco regulatório sem o qual a liberdade de imprensa resta ameaçada. Parabéns pelo texto!

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  5. No Brasil os Direitos Humanos viraram os Direitos dos Manos. Perguntem às famílias de vítimas brutalmente mortas, quantos defensores dos “Direitos Humanos” entraram em contato. Por outro lado, sempre aparece meia dúzia de desocupados levantando essa bandeira nas delegacias para garantir a “integridade física” dos marginais. Hipócritas!

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    1. Você não entendeu nada, 14:58. No próximo escrevo um texto mais curto. Ou quem sabe, desenho.

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    2. Desenhar seria bom.

      O Sandro poderia fazer um workshop com os integrantes do blog...

      NelsonJoi@bol.com.br

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