domingo, 5 de maio de 2013

Entre balas e armaduras


POR FABIANA A. VIEIRA

Em novembro meu filhinho fez quatro anos. Rapaz esperto, inteligente, companheiro de todas as horas. Até já me ajuda a lavar a louça. Cuida da irmã menorzinha, de dois, com aquele carinho especial de quem ama, toques suaves, carinhosos. Esse pequeno homem tem uma grandeza humana que lhe reserva um futuro especial.

Para demonstrar todo meu orgulho e amor lhe dei um presente especial. Fui no setor infantil da loja de armas e comprei um rifle Crickett, modelo LR , tiro único de calibre 22, aquela bala pequenina que entra no corpo atingido, faz um buraquinho e depois circula em zigue-zague, destruindo órgãos, produzindo uma hemorragia  interna  incurável. Aqui em casa, você deve saber, há muita caça e as crianças precisam estar preparadas,desde cedo, para utilizar armas.

É por isso que a indústria já vendeu 60 mil desses modelos infantis somente em 2008. Leves, coloridos, considerados armas de brinquedo ou o ¨primeiro rifle¨, como afirma na publicidade o fabricante de armas esportivas Keystone. Até modelo rosa já tem.  Até pensei em dar um para a minha filhinha também.

Seis meses depois do presente....Boom! Uma distração, fui me livrar da gordura da cozinha e pipocou um tiro . Meu filho pegou a arminha e disparou um tiro acidental ou de brincadeira ou de fúria, nem sei, no coraçãozinho da minha filha. Acabou-se a vida da minha pequena, a minha e o futuro do meu filho, traumatizado eternamente pela perda tragicamente brutal da maninha querida.

Isso poderia ser uma história inventada. Mas não é. Aconteceu no Estado americano do Kentucki, no condado de Cumberland e a menina foi Caroline Starks, sobrenome igual ao da fábrica pós-moderna de armamentos bélicos do maior sucesso do cinema no momento, O Homem de Ferro 3.

Particularmente acho uma insensatez armas de fogo. A bancada da bala procura me convencer de que é uma prerrogativa de segurança privada, um direito básico do homem. Bobagem. Um artifício de pólvora aprisionado numa cápsula que, num pequeno toque, dispara uma bola de chumbo com potencial de matar instantaneamente não pode ser uma boa coisa.

Parto daquele princípio civilizatório elementar de que a vida humana é inalienável. Não tenho o direito de matar ninguém. Matar alguém é admitir que me matem. Portar uma arma é ter uma disposição preventiva para o contrário da vida. É admitir peremptoriamente que eu vou matar alguém. É planejar, treinar e adquirir um instrumento de morte. Ou tenho uma arma para não usar? É um enfeite para arrotar medo? Ter uma arma é confessar simplesmente que quer ser um causador de mortes.

Acho insana essa cultura de alimentar crianças com esse instinto assassino. Beira a loucura descobrir que as fábricas fazem rifles azuis, rosas, laranjas, com figurinhas coloridas para as crianças trocarem o bilhetinho da Calói por um ¨não esquece do meu rifle 22¨. O que adianta, depois do estampido, o ¨não sabia que estava carregada¨.....

O pior é quando vejo os pais da Caroline se resignarem: foi uma fatalidade, afirmam - "Deus quis assim". Naquela região norteamericana a caça é farta e, dizem, todos tem arma. Inclusive as crianças. Essa questão cultural (que precisamos em parte muito pequena respeitar), está presente na mentalidade americana. Não é a toa que os jovens compram armas militares pela internet e saem pelo colégio matando coleguinhas e professores. Loucos abandonados por bonitas namoradas descarregam tambores de balas nos novos namorados, nas ex e em si mesmo. Até chefe é perseguido por desempregado inconformado. Dizem que a matança é cultural. Mas qual cultura? A do extermínio?

Aqui no Brasil não é diferente. Os bilionários interesses da indústria bélica inviabilizaram uma política completa de desarmamento. No plebiscito de 2005 venceu o direito da venda de armas. A falta de controle de fronteiras e do comércio legal de armamento abastece a marginalidade e estimula os argumentos da autodefesa, isso tudo diante de uma polícia a paisana. A insegurança cotidiana estimula a cegueira coletiva e o pensamento fascista de que matar é um direito de proteção. Segue o ciclo vicioso violencia, armas e morte.

Realmente fico preocupada quando vou ao cinema ver o lançamento aguardado de um filme como ¨Somos tão jovens¨, obra que resgata parte da história da lendária banda Aborto Elétrico, antecedendo a Legião Urbana, banda que veio do punk londrino e produziu memoráveis clássicos do rock nacional, e sou surpreendida por uma fila gigantesca na bilheteria. A fila era para ver os armamentos da poderosa indústria Stark e a sua armadura biônica de guerra. Do jeito que a coisa vai, um dia retornaremos a idade medieval e todos, para deleite da indústria, usarão uma armadura do tipo Stark.

12 comentários:

  1. É com profundo pesar que discordo de sua previsão.
    Nós já vivemos usando armaduras stark.
    Usamos cercas eletrônicas, câmeras internas ligadas a centrais de vigilância, motociclistas que fazem ronda, celulares com localização, seguros disso e daquilo, escolas particulares, planos de saúde, carros blindados, shoppings fechados (leia-se cercados, cobertos e climatizados), somos revistados por dentro e por fora nos aeroportos . só não usamos ........ armas.
    Gostaria muito de sentir e poder partilhar da confiança de viver numa sociedade desarmada ..... mas, sinto que todos no mundo as usam, menos o otário aqui que tudo o que tem para defender a família é um celular, que provavelmente será atendido por alguém que não chegará a tempo de me ajudar (na melhor das hipóteses) ... então o que fazer?
    Armas? Tenho medo delas .... mas também tenho medo da máquina de lavar roupas, e se não for devidamente treinado a manuseá-la posso causar sérios acidentes (tô falando da máquina de lavar).
    Então, se é um carro, uma máquina de lavar, o título de eleitor ou uma 12 igual a do exterminador do futuro, a diferença está na consciência e no treinamento para saber usar.
    "Não sabe brincar, não desce pro play"
    Por favor não julgue que brinco com assunto sério. Nossos governantes são muito sérios mas brincam em suas ações. Prefiro brincar mas agir de forma séria. Tenho duas filhas e sempre desestimulei as armas de brinquedo, mas nunca deixei de mostrar todos os perigos que podem causar acidentes: azulejo molhado, panela quente, lâmpada, faca, cachorro desconhecido, gente desconhecida e “amiguinha”, descer escada, borda de piscina, motociclista louco, ciclista, motorista com ponto cego ... putz a lista não acaba.
    Se todos forem proibidos de ter armas ... eu sou contra o porte;
    Mas se o único a ser proibido é o “euzinho aqui” ... e a bandidagem continuar armada, zombando de uma policia sub armada, eu quero a minha “12” .... E não passa do meu portão não, que leva chumbo.

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    1. Essa observacão é bastante pontual. Infelizmente a criminalidade no Brasil nos faz achar que o mundo inteiro vive com medo. Não é verdade. Depois de 2 anos e 1/2 na Suécia eu finalmente consigo viver numa casa sem muros, com tranquilidade, deixando minha filha ir e vir do quintal sem stress. Consigo andar sozinha à noite, usar celular ou câmeras caras na rua, sem ficar olhando pra trás a cada 5 min. Mas demorou pra eu deixar o medo brasileiro pra trás. Agora criei outro problema: tenho medo de ir ao Brasil. De qquer forma, diminuir a desigualdade social ajudaria mais contra a criminalidade que armar a populacão.

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  2. Excelente abordagem Fabiana! Não tinha feito a correlação do Stark...Parabéns!
    Foi mesmo chocante ver aquela avó, com um sorriso descabido no rosto, falando em fatalidade.

    Ai, como se não bastasse, lançaram a campanha em NY contra gravidez na adolescência para desvirtuar o foco do assunto...

    Basta parar para pensar um segundo no que faz a NRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DO RIFLE. Uma instituição "sem fins lucrativos" que promove o direito dos Americanos de se auto-defender...(Isto porque a policia de lá é muito melhor treinada e equiparada do que a daqui!!!).

    Ah, se a moda pega aqui no Brasil ia ter muito traficante, dono de morro, presidindo uma associação similar por aqui...

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  3. Nos Estados Unidos, particularmente nos estados do Sul, mais conservadores, o direito ao posse de armas é algo difícil de se mudar. De um lado, mostra que ter uma Constituição estável como é a americana, tem seus méritos, mas também seus riscos. No século XVIII, quando ela foi escrita, fazia todo sentido garantir a cada cidadão o direito (e mesmo o dever!) de defender-se e defender a nação recém independente. Mas muita água rolou desde então, e o contexto histórico agora é radicalmente outro: a nação está mais que consolidada, o Estado e suas instituições são fortes e a sociedade, muito mais heterogênea, além de numerosa. Quer dizer, não dá pra discutir a questão das armas, contemporaneamente, com o mesmo foco de dois séculos e meio atrás, que é mais ou menos o que fazem a NRA e os demais defensores do armamento irrestrito.

    Como se não bastasse, a liberação da posse de armas nos EUA não impõem restrições de qualquer ordem. Ou seja não se estamos a falar apenas de armas de caça, por ex.:, liberadas em países como o Canadá, mas de fuzis automáticos com enorme capacidade de destruição, os mesmos utilizados no massacre de janeiro, em que morreram mais de 20 crianças alunas de uma escola primária.

    No Brasil a discussão não é menos enviezada. Fala-se do porte de arma como um direito à defesa como se a posse de uma arma de fogo, por si só, fosse garantia de segurança, o que é falso. Um dois dados, elementares, quase simplistas: a maioria dos confrontos entre bandidos e suas vítimas resultam no ferimento, quando não morte, das segundas, normalmente menos preparadas, técnica e emocionalmente, para reagirem adequadamente em situações de risco. Além disso, não são poucas as armas em mãos de criminosos que pertenciam, antes, a "cidadãos de bem" que não pretendiam mais que exercer o direito a legítima defesa, mas que acabaram por armar justamente aqueles contra quem pretendia se defender, "mandando bala" caso entrassem dentro de suas casas. Chega a ser patético.

    O sociólogo alemão Ulrich Beck defende, em um livro instigante chamado "Sociedade de risco", que quanto mais nos armamos para, supostamente, garantir a segurança e a ordem, mais contribuímos para, justamente, tornar mais violenta e insegura a sociedade em que vivemos - que é, justamente, uma das hipóteses da Fabiana no texto. É a mesma lógica da redução da maioridade penal: opta-se sempre por um atalho que nos conforta com a ilusão de que, armados (e com adolescentes presos em penitenciárias) viveremos em um lugar mais seguro. Dane-se se neste lugar chamado mundo real a violência continue a prosperar na esquina e mesmo dentro da minha casa.

    E Sérgio, a proibição das armas, teórica e juridicamente, vale para todos. Mas nem todos cumprem a lei: grossíssimo modo, é esta basicamente, a diferença entre quem é criminoso e quem não é.

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  4. Concordo plenamente. Só que na prática, a teoria é outra.
    Primeiro, educação.
    Educação para saber votar;
    Educação para saber cobrar de quem foi eleito;
    Educação para não cair na omissão e na hipocrisia;
    Educação para saber usar uma arma (se necessário for)
    Educação para ser um bom pai;
    Educação para ser um bom vizinho (vigilante sem ser fofoqueiro - kkk)
    Educação para saber que direitos humanos estão vinculados a deveres humanos;
    Educação da polícia;
    Educação do Judiciário;

    A camada de civilidade que nos separa da barbarie é fina e fragil.
    Uma semana sem agua e seremos raivosos;
    Duas semanas sem agua seremos selvagens;
    Um mês sem agua e estaremos matando sem constrangimento.
    Exagero? talvez sim, talvez não.
    Esse comportamento é previsto em estudos (feitos por cientistas nordicos desocupados) e teóricamente, também válido para todos.
    Claro que não se pode generalizar comportamento, mas infelizmente a aplicação da lei também não.

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    1. Eu também concordo com você que a camada de civilidade que nos separa da barbárie é fina e frágil (aliás, você já leu ou assistiu ao filme "O senhor das moscas"?). Mas acredito que noss embate deva ser, sempre, pela civilização contra a barbárie e, de verdade, não acredito que o aumento no índice de armas por habitante seja um bom indicativo para a primeira.

      No mais, você também tem razão quanto a necessidade de exigirmos mais: mais educação, mais respeito, mais igualdade (e não apenas mais justiça, que são coisas diferentes). E, uma vez mais, não acho que ter uma arma em casa preencha estas muitas lacunas em nossos códigos de sociabilidade. A meu ver, elas aumentam inclusive a barbárie potencial que nos ronda como um espectro.

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  5. Faltou o índice per capita de mortes de civis por arma de fogo nos EUA e no Brasil. O Brasil lidera o ranking de desse tipo de morte. Segundo a UNODC (Escritório da ONU contra Drogas e Crimes) mata-se 3,7x mais no Brasil do que nos EUA. Isso porque lá existe a real sensação de punição ao infrator, dada por uma justiça equilibrada, uma polícia preparada e bem remunerada. Como na terra brazilis a polícia tem um salário miserável que propicia a corrupção, uma legislação que protege o criminoso e uma estrutura incapaz de recuperar o infrator, o que resta à população é se armar e viver na “armadura”. A maior parte do armamento dos criminosos não vem das mãos da vítima, mas do tráfico e da própria polícia. Tenho pavor de armas de fogo, jamais terei uma em casa, mas sou solidário ao direito de todos os cidadãos de bem possuir uma, caso sintam-se mais seguros.

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    1. As armas traficadas normalmente não caem do céu nem brotam do chão. Em algum momento elas foram legalmente adquiridas. E é uma balela infelizmente aceita amplamente que a legislação brasileira protege criminoso. Se as instituições responsáveis por fiscalizar, vigiar, investigar, julgar e punir são falhas, o buraco é outro, mais embaixo. Na letra da lei, o rigor já existe. Talvez seja o caso de exigir que se o cumpra com todos, indistintivamente - o que também, convenhamos, está longe de ser o caso.

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    2. As armas que chegam às mãos do bandido podem ter sido legalizadas sim, pela própria polícia, mas muitas chegam ilegais pelas fronteiras do país. Imaginar que considerável parcela dessas armas é oriunda das vítimas não corresponde com a realidade, até porque muitas delas são de grosso calibre e modelos que sequer o exército brasileiro possui. E sim, a legislação brasileira infelizmente ampara o criminoso. A nossa legislação é tão obtusa que você corre o risco de ser preso (sem direito a fiança) por traficar drogas, extorsão, atentado violento ao pudor ou desmatar alguns hectares. Os três primeiros são classificados como crimes hediondos. Mas se dirigir seu automóvel imprudentemente (não precisa estar bêbado), atropelar e matar um pai de família, aos olhos da justiça, seu crime será abrandado com fiança, algumas cestas básicas ou algum meses de trabalhos sociais.O mesmo ocorre com que dispara uma arma. Dias atrás um sujeito disparou sua arma contra o pai e duas filhas. O criminoso fugiu, apresentou-se no outro dia com seu advogado, levou as fitas de vídeo e declarou “legitima defesa”. O delegado, seguindo as leis, o liberou. E agora, depois de perceber a cagada que o delegado fez, solicitaram uma ordem de prisão ao crimino que está foragido.

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    3. Você conhece o Código Penal? Já visitou alguma penitenciária? Se sim, e continua a achar que nossa legislação é conivente com criminoso, realmente estamos a falar, eu em klingom, você em aramaico.

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