POR CLÓVIS GRUNER
A filósofa Marilena Chauí não gosta dos Black Blocs. Em
palestra proferida na Academia da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em agosto, Chauí afirmou que o grupo tem “inclinações fascistas”: “Temos
três formas de se colocar. Coloco os blacks’ na fascista. Não é anarquismo,
embora se apresentem assim. Porque, no caso do anarquista, o outro [indivíduo]
nunca é seu alvo. Com os blacks’, as outras pessoas são o alvo, tanto quanto as
coisas”.
Um pouco de história nunca é demais mesmo para quem já
recebeu título honoris causa pela
Sorbonne. Tanto os estudantes franceses que tomaram de assalto o bairro latino
em Maio de 68 tinham, sim, “demandas institucionais ao poder” – a reforma
universitária, por exemplo –, como os blacks não são uma invenção brasileira nem tampouco recente. Eles estão por aí desde o final dos anos de
1980, e já atuaram em eventos e lugares tão distintos como os protestos
antinucleares em Berlim, ainda no fim da Guerra Fria, a reunião de 1999 da OMC
em Seattle, e o encontro do G-20 em Toronto. Mais recentemente, estiveram
presentes em manifestações na Grécia, Turquia e Egito.
Pode-se questionar e criticar as táticas utilizadas pelos Black
Blocs. O recurso à violência – que, ao contrário do que diz Chauí, não mira as
pessoas, mas instituições e patrimônios públicos e privados, bancos
principalmente – é sempre controverso. Ainda que historicamente ela seja parte dos movimentos que, por razões e com finais distintos, provocaram alguns
deles rupturas significativas e necessárias – a conquista do voto feminino e os
direitos trabalhistas, por exemplo –, seu aparecimento é sempre intempestivo e,
no limite, incontrolável. Mas chamar o grupo de fascista é de uma estultice que
beira à irresponsabilidade e denuncia, uma vez mais, a incapacidade de Chauí –
outrora referência à esquerda brasileira – de compreender os novos movimentos e
manifestações sociais, que escapam do convencionalismo à gauche da filósofa uspiana.
ADESISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA – Ela não está
sozinha. Ante o incompreensível, alguns pensadores – no plano internacional, Zizek
e Badiou, por exemplo – optaram por reafirmar sua profissão de fé em uma esquerda
revolucionária e messiânica. Inatuais, ainda que contemporâneos, desqualificam
os novos movimentos sociais cobrando-lhes justamente o que eles não pretendem
oferecer: um futuro. No Brasil, a perplexidade de Chauí ou de um Emir Sader, entre
outros, pode ser explicada também pelo compromisso militante. Alçados
indiretamente à condição de governo, não foram poucos os intelectuais que
tiveram minada sua capacidade crítica em função do adesismo.
Sob este ponto de vista, tudo o que pode colocar em risco,
mesmo que apenas hipoteticamente, o projeto de governo e de poder hoje
vitorioso, precisa ser duramente criticado, combatido e, se necessário,
desqualificado – como foram as manifestações de junho e, agora, os Black Blocs.
Não é casual que a tagarelice contra o “fascismo” dos blacks caminhe pari passu com um silêncio vergonhoso
sobre as incômodas permanências, quando não o simples retrocesso, em setores
como os direitos humanos e a segurança pública, áreas onde os governos petistas
se limitaram basicamente a dar continuidade às inconsistentes (ou inexistentes)políticas anteriores.
Penso que mais pertinente que tratar por “fascista” quem não
é, seja tentar apreender o que de significativo, para além da violência e dos chavões anticapitalistas, as manifestações recentes tem a
dizer à esquerda. Entre
outros, há dois elementos fundamentais. De um lado, a necessidade de
abandonar as pretensões messiânicas e encarar o mundo e a política a partir do
presente. Isso implica, obviamente, uma revisão de discursos e práticas
cristalizados entre muitos militantes e intelectuais, desatentos à miudeza das
reivindicações cotidianas porque empenhados em fazer o parto do futuro.
Há ainda o desgaste dos modelos tradicionais de política.
Particularmente no Brasil, a chegada ao governo de um partido de esquerda, se
tornou possível principalmente progressos em alguns de nossos indicadores
sociais, representou igualmente um esvaziamento dos movimentos e movimentações sociais, inclusive com a criminalização de alguns
deles. Este afastamento lento, gradual e seguro, que se fez em
parte para atender as alianças espúrias firmadas entre o governo e suas bases
aliadas – a bancada evangélica, os ruralistas, etc... – teve seu ápice nas
lamentáveis cenas presenciadas no último 7 de setembro: cidadãos, nem todos
mascarados, sendo violentamente agredidos e humilhados; enquanto policiais
militares – provavelmente, entre eles, alguns a quem Chauí se dirigiu semanas
antes – protegiam-se atrás do anonimato de suas máscaras ou da segurança do corporativismo e do
aparato estatal.
Dos blacks pode-se dizer que eles são violentos, equivocados ou ingênuos. Mas certamente não são fascistas. Pode-se dizer o mesmo do Estado e sua polícia?
Dos blacks pode-se dizer que eles são violentos, equivocados ou ingênuos. Mas certamente não são fascistas. Pode-se dizer o mesmo do Estado e sua polícia?