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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Primeiro como tragédia, depois como farsas


POR CLÓVIS GRUNER

A morte de Santiago Andrade, cinegrafista da TV Bandeirantes, foi uma tragédia a que se seguiu a encenação de inúmeras farsas. Antes delas, um registro: a reação de alguns militantes de esquerda foi lamentável. Sob o pretexto de denunciar a indiferença das mídias e autoridades políticas aos mortos que antecederam  Santiago – já são uma dezena desde o início dos protestos, em junho do ano passado, a maioria vítimas da repressão policial –, vi principalmente nas redes sociais alguma coisa muito próxima à banalização do sofrimento e da morte.

Talvez porque acostumados a denunciar a violência policial, houve quem tivesse perdido momentaneamente o rumo diante das evidências de que, desta vez, não foram eles – os policiais, o governo, o Estado, enfim –, mas nós os que acionamos a arma que culminou na morte trágica e lamentável de Santiago. Tais manifestações, felizmente, vem sendo substituídas pelas reflexões suscitadas pelo episódio. E digo felizmente, porque a morte de Santiago tem servido de pretexto para que se teçam, em torno a ela, inúmeras narrativas que merecem análise cuidadosa pelo seu caráter farsesco e pelo risco que comportam.

A começar pela própria narrativa midiática. Foi do delegado responsável pelas investigações, Maurício Luciano, que partiu uma das sentenças definitivas sobre o caso: a morte de Santiago não foi um atentado à liberdade de imprensa. O alvo não era ele, mas a polícia. São óbvios alguns dos interesses que permeiam esses relatos. Não apenas o cinegrafista não foi a primeira vítima fatal das manifestações, como não é o primeiro profissional de comunicação a ser vitimado pela truculência. Desde o último dia 6, entidades de classe reiteram mais enfaticamente as denúncias que pipocam desde junho: repórteres, fotógrafos e cinegrafistas que cobrem as manifestações foram vítimas de inúmeras agressões. Na maioria das vezes os agressores eram policiais: uma repórter da Folha quase ficou cega depois de ser atingida por uma bala de borracha; um repórter da Carta Capital foi preso porque levava um vinagre na mochila, e assim por diante.

Por que esses casos não mereceram a mesma atenção e nem provocaram a comoção de agora? Há, claro, o componente midiático, e poucas coisas são mais espetaculares que uma morte televisionada. Mas mais importante que a espetacularização, amplamente explorada nos últimos dias, a morte de Santiago tem se prestado principalmente para fins políticos. Há as muitas dúvidas que pairam sobre a prisão dos dois suspeitos de terem sido os autores do disparo – e sobre isso, recomendo a leitura do sempre necessário Jânio de Freitas na Folha. E a vergonhosa tentativa das organizações Globo de ligar o episódio ao deputado Marcelo Freixo, do PSOL, responsável por denunciar a violência criminosa das milícias, que fazem há anos nas favelas da capital carioca o que Rachel Sheherazade saudou como novidade nos justiceiros da praia do Flamengo. Se limitada às disputas políticas regionais, a tentativa de vincular Freixo à morte de Santiago já seria sórdida. Suas implicações, no entanto, extrapolam as fronteiras cariocas.

O TERROR QUE VEM DO ESTADO – Em 2008, ainda sob o governo Lula, um grupo capitaneado pelo então ministro da Defesa, Nelson Jobim, e as principais lideranças militares, redigiu uma primeira proposta para o que definiram como uma “nova Lei de Segurança Nacional”. O projeto era claro em suas intenções: tratava-se de tipificar os crimes que, sob certa ótica institucional, atentassem contra a “ordem democrática”, definindo como terroristas lideranças e movimentos sociais tais como o MST, não por coincidência num momento em que a aproximação do governo petista com as lideranças ruralistas, hoje consolidada, já se esboçava.

O projeto não prosperou, em parte porque encontrou a resistência do ex-presidente Lula. Mas também porque faltava a ele um “gancho”, algo que lhe conferisse a urgência necessária para angariar a legitimidade de que carecem projetos de feição autoritária que, em nome da segurança, atentam contra os direitos e a liberdade – e o exemplo mais recente é o Ato Patriótico, decretado pelo republicano George W. Bush logo após os atentados de 11 de setembro de 2001. A morte de Santiago, vítima de um suposto militante do movimento Black Bloc, deu à direita mais raivosa e às lideranças governamentais o argumento que lhes faltava para criminalizar as manifestações e os manifestantes e, no bojo desse processo, os movimentos sociais.

Expressão máxima dessa orquestração é o projeto de lei que visa tipificar os chamados “crimes de terrorismo” – o PL 499/2013 – que corre a toque de caixa no Senado. Há inúmeros problemas no texto, notadamente sua definição vaga de terrorismo – “Provocar ou infundir pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade da pessoa” –, que na prática permitiria justificar como combate ao terror, entre outras coisas e principalmente, a repressão aos movimentos sociais e manifestações de rua. No mesmo diapasão está a proposta do secretário de Segurança do Rio de Janeiro, Mariano Beltrame, entregue ontem ao Senado Federal, de um projeto de lei para tipificar o “crime de desordem”, entendido como “praticar ato que possa causar desordem em lugar público ou acessível ao público, agredindo ou cometendo qualquer ato de violência física ou grave ameaça à pessoa, destruindo, danificando deteriorando ou inutilizando bem público ou particular”. 

Não é preciso muito esforço pra entender a lógica por trás das encenadas preocupações com a ordem pública. A curto prazo, a intenção é neutralizar ao máximo as manifestações de rua nos meses que antecedem a Copa da Fifa. A médio e longo prazos, o objetivo é assegurar aos governos, pouco importa quem ou quais partidos estejam à frente dele (Gilles Deleuze disse que todo governo é de direita, mesmo que alguns incorporem parte das pautas e do discurso da esquerda), os mecanismos simbólicos e repressivos imprescindíveis para assegurar uma ordem que interessa principalmente ao Estado. Se para isso seja necessário recorrer à ameaça da violência e ao medo, justamente os mecanismos de que se valem o terror e os terroristas, pouco importa. O terrorismo de Estado se auto-legitima ao apresentar-se como irremediável: o que no outro é terror, nele é ordem; o que no outro é violência, nele é uso legítimo da força. E se é o Estado quem combate o que ele próprio define como terrorismo, resta a questão: quem combaterá o terrorismo de Estado?

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Satisfeita, Chauí?



POR CLÓVIS GRUNER

A filósofa Marilena Chauí não gosta dos Black Blocs. Em palestra proferida na Academia da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em agosto, Chauí afirmou que o grupo tem “inclinações fascistas”: “Temos três formas de se colocar. Coloco os blacks’ na fascista. Não é anarquismo, embora se apresentem assim. Porque, no caso do anarquista, o outro [indivíduo] nunca é seu alvo. Com os blacks’, as outras pessoas são o alvo, tanto quanto as coisas”.

Um pouco de história nunca é demais mesmo para quem já recebeu título honoris causa pela Sorbonne. Tanto os estudantes franceses que tomaram de assalto o bairro latino em Maio de 68 tinham, sim, “demandas institucionais ao poder” – a reforma universitária, por exemplo –, como os blacks não são uma invenção brasileira nem tampouco recente. Eles estão por aí desde o final dos anos de 1980, e já atuaram em eventos e lugares tão distintos como os protestos antinucleares em Berlim, ainda no fim da Guerra Fria, a reunião de 1999 da OMC em Seattle, e o encontro do G-20 em Toronto. Mais recentemente, estiveram presentes em manifestações na Grécia, Turquia e Egito.

Pode-se questionar e criticar as táticas utilizadas pelos Black Blocs. O recurso à violência – que, ao contrário do que diz Chauí, não mira as pessoas, mas instituições e patrimônios públicos e privados, bancos principalmente – é sempre controverso. Ainda que historicamente ela seja parte dos movimentos que, por razões e com finais distintos, provocaram alguns deles rupturas significativas e necessárias – a conquista do voto feminino e os direitos trabalhistas, por exemplo –, seu aparecimento é sempre intempestivo e, no limite, incontrolável. Mas chamar o grupo de fascista é de uma estultice que beira à irresponsabilidade e denuncia, uma vez mais, a incapacidade de Chauí – outrora referência à esquerda brasileira – de compreender os novos movimentos e manifestações sociais, que escapam do convencionalismo à gauche da filósofa uspiana.

ADESISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA Ela não está sozinha. Ante o incompreensível, alguns pensadores – no plano internacional, Zizek e Badiou, por exemplo – optaram por reafirmar sua profissão de fé em uma esquerda revolucionária e messiânica. Inatuais, ainda que contemporâneos, desqualificam os novos movimentos sociais cobrando-lhes justamente o que eles não pretendem oferecer: um futuro. No Brasil, a perplexidade de Chauí ou de um Emir Sader, entre outros, pode ser explicada também pelo compromisso militante. Alçados indiretamente à condição de governo, não foram poucos os intelectuais que tiveram minada sua capacidade crítica em função do adesismo.

Sob este ponto de vista, tudo o que pode colocar em risco, mesmo que apenas hipoteticamente, o projeto de governo e de poder hoje vitorioso, precisa ser duramente criticado, combatido e, se necessário, desqualificado – como foram as manifestações de junho e, agora, os Black Blocs. Não é casual que a tagarelice contra o “fascismo” dos blacks caminhe pari passu com um silêncio vergonhoso sobre as incômodas permanências, quando não o simples retrocesso, em setores como os direitos humanos e a segurança pública, áreas onde os governos petistas se limitaram basicamente a dar continuidade às inconsistentes (ou inexistentes)políticas anteriores.

Penso que mais pertinente que tratar por “fascista” quem não é, seja tentar apreender o que de significativo, para além da violência e dos chavões anticapitalistas, as manifestações recentes tem a dizer à esquerda. Entre outros, há dois elementos  fundamentais. De um lado, a necessidade de abandonar as pretensões messiânicas e encarar o mundo e a política a partir do presente. Isso implica, obviamente, uma revisão de discursos e práticas cristalizados entre muitos militantes e intelectuais, desatentos à miudeza das reivindicações cotidianas porque empenhados em fazer o parto do futuro.

Há ainda o desgaste dos modelos tradicionais de política. Particularmente no Brasil, a chegada ao governo de um partido de esquerda, se tornou possível principalmente progressos em alguns de nossos indicadores sociais, representou igualmente um esvaziamento dos movimentos e movimentações sociais, inclusive com a criminalização de alguns deles. Este afastamento lento, gradual e seguro, que se fez em parte para atender as alianças espúrias firmadas entre o governo e suas bases aliadas – a bancada evangélica, os ruralistas, etc... – teve seu ápice nas lamentáveis cenas presenciadas no último 7 de setembro: cidadãos, nem todos mascarados, sendo violentamente agredidos e humilhados; enquanto policiais militares – provavelmente, entre eles, alguns a quem Chauí se dirigiu semanas antes – protegiam-se atrás do anonimato de suas máscaras ou da segurança do corporativismo e do aparato estatal.

Dos blacks pode-se dizer que eles são violentos, equivocados ou ingênuos. Mas certamente não são fascistas. Pode-se dizer o mesmo do Estado e sua polícia?