Acreditem: o comentário não foi sarcástico. |
Parece me que o ódio está em alta. Nas últimas duas semanas, tivemos a campanha de insultos promovida por Danilo Gentili e a revolta contra a travesti Verônica Bolina (por gente que não entendeu qual era o problema). Teve também a islamofobia gritante com pessoas mandando Charlyane Silva de Souza “voltar pro seu pais” e a chamando de “terrorista” quando essa teve seu direito de uso de véu reconhecido pela OAB, uma onda de xenofobia contra imigrantes chineses após o caso da pastelaria que usava carne de cachorro. E no meio disso tudo, se reergueu um dos mais infames blogs de ódio da internet brasileira.
Vamos então por partes.
O Caso Verônica Bolina
A sucessão de eventos na prisão da travesti ainda não está clara. Sabe se que Verônica agrediu uma vizinha de 73 anos. Que foi colocada em uma cela masculina. Que se envolveu em uma confusão na cela em que estava detida e que mordeu a orelha de um carcereiro após dita confusão. Que foi agredida na prisão e no hospital. Que foi fotografada sem camisa e com o rosto desfigurado. E que foi coagida a gravar um depoimento onde negava ter sido agredida, em troca de redução de pena.
O caso atraiu a revolta de movimentos de direitos humanos e essa revolta atraiu o ódio dos defensores da lógica “bandido bom é bandido morto”. Enquanto o primeiro grupo questionava o tratamento dado à travesti, o segundo dizia que ela devia pagar por seus crimes e merecia “apanhar mais”. Sem entender que ninguém estava dizendo que Verônica não devia pagar, mas sim que esse “pagamento” deveria ser feito dentro dos termos da lei. Grande parte dos revoltosos contra movimentos como #SomosTodasVerônica parece incapaz de compreender o problema. A indignação não é com ela ter sido presa, mas com a maneira em que foi tratada pelas autoridades e pela qual foi privada de sua dignidade.
Ainda assim houveram aqueles, muitos dos quais policiais, que viram no caso justificativa para despejar seu ódio contra todas as travestis. Como se não apenas Verônica devesse pagar além dos limites da lei, como todas as mulheres trans devessem pagar pelos crimes de uma. E sem entender que existe uma maneira civilizada de se punir transgressões, sem precisar dos punhos para isso.
Pastel com recheio de xenofobia
Dois casos serviram para refogar a velha xenofobia a brasileira. O caso da pastelaria chinesa que usava mão de obra escrava e carne de cachorro no Rio de Janeiro ressuscitou o velho discurso da “ameaça amarela”, e não foram poucos os comentários pedindo a deportação imediata de todos os sino-descendentes do país.
O segundo caso foi o recurso da bacharel em direito Charlyane Silva de Souza, privada de fazer o exame da OAB caso não retirasse o véu (e violasse suas tradições religiosas). Convertida ao Islã no ano passado, o recurso de Charlyane atraiu comentaristas furiosos, exigindo que “voltasse ao seu país” e afirmando que se tentassem o contrário “no país dela” seriam executados. Charlyane é brasileira. O Islã, uma religião, e não uma nacionalidade. O maior país islâmico? O mesmo que tantos opinadores exaltados adoraram em janeiro, quando o traficante de drogas Marco Archer foi executado.
A revolta com Charlyane representa uma série de confusões que ainda nos marcam. Não foram poucos os comentaristas que usaram das tentativas de proibição de símbolos religiosos por repartições estatais para dizer que Charlyane deveria ser proibida de usar o véu “pois o estado é laico”. Por ser muçulmana, fora chamada de terrorista e “advogada bomba”. Vez após vez, a fé islâmica se vê confundida com o extremismo, como se fossem uma coisa só .Como se não bastasse, repetem o erro de achar que todo muçulmano é árabe e um imigrante árabe.
Rede de ódio, ódio na rede
Mas o choque de ódio maior, no meu ver, veio como resposta a uma campanha do Governo Federal. Tão logo foi criada a página Humaniza Redes e o perfil correlato no Twitter, surgiram as acusações de que o programa (uma ouvidoria para denuncias de violações de direitos humanos) era “censura”. E, de imediato, o humorista Danilo Gentili tratou de dar a sua resposta: Desumaniza Redes, incentivando um festival de ofensas sem fim que empesteia a página governamental.
O argumento para defender a campanha de insultos (e apologia a violência)? Que a proliferação de homofobia, machismo, racismo, xenofobia e até pornografia infantil na rede não passa de “zueira”, que não deve ser limitada nunca. Eis a liberdade de expressão defendida por Gentili: a liberdade de ofender, de ameaçar e de discriminar. Ironicamente, o “defensor da liberdade de expressão sem limites” se dedica ativamente a silenciar o outro lado da discussão.
E no rastro da campanha de Gentili, um velho vulto se reergueu nas sombras da blogosfera brasileira. Antes conhecido como “Homem de Bem”, agora como “Tio Astolfo”, um dos mais notórios pregadores do ódio do país, procurado desde 2013, voltou a ativa. Pregando a morte de gays e negros, o estupro de feministas e outras atrocidades, o imitador de outro blog de ódio (o extinto Silvio Koerich) demonstra uma fúria implacável - e assim como a Desumaniza Redes, justifica tudo dizendo que é “humor controverso”. Pois claramente, dizer “é uma piada” resolve tudo.
Isso é só um pequeno recorte do que acontece em todas as áreas, não só na internet. As vezes pelos motivos mais banais. Quem nunca se viu insultado por gostar das “coisas erradas”? No estado americano do Oklahoma, dois colegas de quarto se golpearam com garrafas de cerveja em uma disputa sobre iPhone versus Android. O ódio está em alta e qualquer coisa parece justificá-lo.