POR CLÓVIS GRUNER
Em novembro de 1831, logo
após a renúncia do imperador Pedro I, o senado brasileiro votou e aprovou lei
que proibia o tráfico negreiro no Brasil. Ela determinava principalmente duas
coisas: que a partir daquela data todos os negros que entrassem no país,
trazidos da África para serem vendidos como escravos seriam livres. Além disso,
estabelecia ainda penas severas para quem participasse do contrabando. Seu
efeito foi tão ridiculamente inócuo, que em setembro de 1850 foi promulgada a
Lei Eusébio de Queirós, que legislava sobre basicamente a mesma coisa.
No espaço de quase duas
décadas entre ambas, o tráfico vicejou: há vários estudos a mostrar que o
número de negros ingressos ilegalmente no Brasil nos anos posteriores à
primeira legislação, aumentou sensivelmente – estima-se que algo em torno de
700 mil. Não é demais dizer o óbvio: os agentes do mercado negreiro só
continuaram a operar impunemente durante anos, porque contavam com a frouxidão
da lei, ou seja, com a conivência do Estado, que deliberadamente tolerou
práticas que o próprio Estado apontava como ilegais e, portanto, criminosas.
Não se sabe exatamente qual a extensão, mas é certo que os lucros foram amplos
e gerais, embora certamente não irrestritos.
Recorro a este episódio para
dizer o que também deveria ser óbvio, mas não é: diferente do que se lê naqueles
depoimentos eivados de uma indignação muitíssimo seletiva, a corrupção é um mal
que atravessa nossa história. E não apenas a mais recente: não faltam estudos a
mostrar que o trato suspeito com a coisa pública remonta ao período colonial.
Por caminhos interpretativos distintos, dois de nossos maiores historiadores,
Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, ofereceram sobre o tema conclusões
bastante próximas. A corrupção, afirmaram, é uma das heranças de nossa
colonização ibérica, fruto de uma relação patrimonialista entre Estado e
sociedade ou, nos termos de Sérgio Buarque, de nossa incapacidade de separarmos
as esferas e os interesses públicos e privados, tendendo a tratar os primeiros
como extensão dos segundos.
UMA HERANÇA COM MUITOS
HERDEIROS – Histórica, a corrupção contaminou Império e República, desde a
Primeira, e não poupou os 20 anos de ditadura, apesar da pataquada sobre o tal
fusquinha que um dos marechais mandou o irmão devolver. Para os corruptos,
aliás, aqueles foram anos de bonança: com os meios de comunicação silenciados
pela conivência ou censura, pode-se prender, torturar, matar e fazer
desaparecer sem contestação. E superfaturar ou desviar verbas milionárias em
obras como a ponte Rio–Niterói, que custou 11 vezes o orçamento original, e a
Rodovia Transamazônica, construídas pelos empreiteiros e empreiteiras que frequentam
agora as páginas policiais. Em uma das edições de 1981, a revista “Times” informava que empresas
europeias deram, às autoridades brasileiras, 140 milhões de dólares em propinas
e suborno para garantirem sua participação nas obras da usina de Itaipu. A
confortar corruptos de todas as espécies e em todas as épocas, a certeza da
impunidade.
No dia seguinte ao
segundo turno, meu colega de blog, Jordi Castan, publicou um texto fazendo um
balanço, entre analítico e apaixonado, da reeleição de Dilma. Sem esconder sua
decepção, ele dizia em uma passagem: “Os próximos capítulos desta história estão
ainda por ser escritos. Fala-se de impeachment,
e já houve no Brasil presidente “impichado”
por muito menos”. E concluía: “Mas aqueles eram outros tempos. Hoje o nível
de tolerância – ou deveríamos dizer de conivência do eleitor com a
corrupção, a roubalheira e a falta de ética – é muito menos estrito.”
Ele estava a ser irônico,
suponho. O ex-presidente e hoje senador Fernando Collor não foi “impichado” por
ser corrupto (e ele era), mas porque já havia exercido o papel que lhe cabia
naquele contexto, impedir a eleição de Lula, e por isso podia ser dispensado.
Os milhares que pediram o impeachment, eu entre eles, deram um lastro de
legitimidade social a uma movimentação política cujo roteiro seria o mesmo sem ou
apesar das ruas, mas que certamente foi bem melhor ter sido escrito com elas. O
mais importante, no entanto: se o nível de conivência ou tolerância com a
corrupção hoje é outro, e eu acredito que sim, não é porque somos mais, mas
certamente porque somos menos tolerantes e coniventes com ela.
CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA – Neste
sentido, o “evento Petrobras” é emblemático. Primeiro porque, diferente do
chamado Mensalão, não será possível tecer sobre ele uma narrativa monofônica já
que as tentativas esbarram em evidências históricas que as contradizem: em
1989, o jornalista Ricardo Boechat ganhou um Prêmio Esso por denunciar os esquemas
de corrupção na empresa. Em 1997, Paulo Francis fez o mesmo no Manhattan
Connection. Nada foi investigado por nenhum dos governos da época. Responsáveis
pela Operação Lava Jato afirmam que o esquema só agora desbaratado funcionava há pelo menos 15 anos; e as informações criminosamente vazadas para servir a interesses eleitorais durante a campanha, começam a respingar fora do governo:
entre outras coisas, à medida que as investigações avançam, surgem dados comprometedores sobre as relações algo promíscuas entre empreiteiras e políticos da oposição.
Tudo isso é lamentável?
Certamente sim. Por outro lado, também é parte e resultado de nosso
amadurecimento democrático, e é fundamental não perdermos isso de vista. Não, não
estamos mais tolerantes com a corrupção; nem tampouco vivemos hoje um estado de
coisas inédito nem pior do que há anos ou mesmo décadas atrás. Pode parecer
contraditório, mas a crise que atravessamos talvez nos traga, ao final,
benefícios: é possível – mas não é certo – que saíamos dela melhores, mais
críticos e exigentes, menos e não mais coniventes com a corrupção. É possível –
mas não é certo – que ao final da crise sejamos uma sociedade mais madura e
mais democrática.
Mas a condição para que
isso ocorra é, justamente, reconhecer a importância da trajetória construída ao longo das últimas três décadas, desde o fim da ditadura.
Renunciar a este percurso é retroceder ao autoritarismo, este sim, conivente
com a corrupção, disposto a premiar corruptos com a impunidade, quando não com
vantajosas promoções hierárquicas. Mas a democracia é imperfeita e precária,
retrucarão alguns. E não podia ser diferente: é da natureza das democracias que
elas sejam precárias, porque esta é a condição para evitarmos sua estagnação e
a fazermos avançar, para melhorá-la e aprofundá-la. Indignar-se com
a corrupção e exigir um Estado e governos honestos, reivindicar uma política ética
e que respeite a coisa pública: tudo isso é necessário e fundamental. Mas isso só
se faz nos limites da democracia. E sempre para ampliá-los.