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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Precisamos de uma verdadeira família?

POR CLÓVIS GRUNER

Durante séculos a noção de família, tal como a conhecemos hoje, inexistiu. No medievo, por exemplo, o indivíduo vivia “enquadrado em solidariedades coletivas, feudais e comunitárias”, segundo o historiador francês Philippe Ariès. Um mundo que não era nem inteiramente privado e familiar, mas também não completamente público, pois ambos se confundem no cenário que antecede e que prepara a época moderna. O quadro não é muito diferente nos séculos subsequentes. As mudanças mais significativas acontecerão apenas a partir dos séculos XVII e, principalmente, do XVIII. O “século das Luzes” vê consolidar-se uma família que vai, cada vez mais, concentrar boa parte das manifestações da vida privada, independente, inclusive, das classes sociais. Num primeiro momento, ela substitui a comunidade, mas a tendência é que se transforme, notadamente a partir do XIX, em um lugar de refúgio, de afetividade e atenção - e não mais apenas uma unidade econômica, responsável pela sobrevivência material e física do indivíduo, como nos séculos anteriores. E é esta, grosso modo, a família que alcança os séculos XX e o atual, a que chamamos na falta de melhor definição, de “nuclear”.

Esta breve introdução tem um propósito quase didático: a família coeva não existe desde sempre, mas é uma criação relativamente recente na história ocidental. Se este arranjo que nos é familiar (com o perdão do trocadilho) não é natural, mas historicamente construído e constituído, é apenas por ignorância ou má fé – ou ignorância e má fé – que a bancada evangélica no Congresso Nacional pretende aprovar o PL 6583/13, que cria o Estatuto da Família. No corpo do projeto, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), ela é entendida como o “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Ou seja, o Estatuto nega a qualquer arranjo afetivo e comunitário que não o exclusivamente heterossexual, a condição de família, com todos os prejuízos no que tange à garantia de igualdade civil – dever do Estado – que isso acarreta.

O caráter excludente e retrógrado da proposta ganhou novas e ainda mais preocupantes dimensões com o parecer do deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF): além de favorável à redação do texto, Fonseca – que é pastor evangélico da Assembleia de Deus – sugere a inclusão de um artigo que proíbe a adoção de crianças por casais homoparentais. A alegação abjeta é de que tal inclusão “busca dar luz ao tenebroso momento em que vivemos de definição do conceito de família”. É impossível reproduzir todo o documento, um calhamaço de 35 páginas, raso do ponto de vista argumentativo, equivocado ao recorrer à história, infeliz ao naturalizar a família e ridículo em sua pretensão de estabelecer uma distinção simbólica e jurídica entre “família” e o que o relator define por “relações de mero afeto”. A distinção, que sustenta e legitima o tratamento desigual entre casais hetero e homossexuais, se baseia na reprodução biológica: com base nesse critério, o deputado Fonseca pretende que o Estatuto garanta às “famílias” a proteção do Estado, mas não estende esse mesmo direito às “relações de mero afeto”. Entre esses direitos, está o da adoção filial.  

CRIANÇAS? DANEM-SE AS CRIANÇAS – A intenção expressa no parecer revela, uma vez mais, o que já deveria ser do conhecimento comum: para os conservadores religiosos, muito bem representados nesta e na próxima legislatura, não é o bem estar da criança o que está em jogo. O discurso é claro e o texto não deixa margem de dúvidas: eles preferem que crianças vivam precariamente em orfanatos a serem bem cuidadas e amadas por famílias homoparentais. Estudos mostram, para quem tiver o interesse e a clareza de acompanhar seus resultados, que não há prejuízo algum no desenvolvimento emocional de uma criança que tenha sido criada por um casal gay. Por outro lado, não são poucos os casos de filhos e filhas de pais heteros afetados emocional e fisicamente por viverem em um lar que lhes priva de tudo, menos da violência. Mas nada, absolutamente nada disso, interessa à bancada religiosa, disposta a levar sua cruzada contra gays até as últimas consequências, mesmo que ao custo do bem estar e da felicidade de muitos, órfãos inclusive. A ação coordenada dos dois deputados, neste sentido, é apenas mais um tijolo no imenso edifício de ignorância, intolerância e ódio que se está a construir no Brasil em nome de deus e dos valores cristãos. 

No começo do século XX a Alemanha era uma das poucas sociedades ocidentais a manter, em relação aos homossexuais, uma postura de franca e aberta tolerância. Um bom exemplo disso era a obsolescência do parágrafo 174 do seu Código Penal, que criminalizava a homossexualidade, na mesma época em que a Inglaterra condenava à prisão com trabalhos forçados Oscar Wilde, culpado do crime de “sodomia”. A atitude alemã, liberal, sobreviveria até os anos de 1930, quando o nazismo ascende à condição de regime de governo, fruto de um avanço conservador que foi, entre outras coisas, reação a uma sociedade considerada por alguns como “degenerada”. O resultado foi uma perseguição desenfreada aos homossexuais, condenados muitos deles a amargar anos de sofrimento, humilhação e morte nos campos de concentração, onde eram identificados e à sua condição por um triângulo rosa costurado em seus uniformes.

No Brasil, e isto não é fenômeno recente, assistimos a escalada de uma política sombria, que atenta contra os direitos mais elementares, pregando o retrocesso onde deveríamos, justamente, fazer avançar nossa democracia. E ao torná-la mais frágil, arriscamos também nossa própria civilidade, nossa capacidade de convivermos com os muitos “outros” que habitam a ágora, transitam pelo espaço público, se reconhecem e interagem nele e com ele. Há quem goste de recorrer ao Irã e à sua teocracia com o intuito de chamar nossa atenção para os riscos de uma “orientalização do Ocidente”, que nos condenaria a um retrocesso civilizacional, ao ocaso de uma democracia conquistada e construída ao longo de séculos de combates. Mas não é necessário recorrer ao regime dos aiatolás e a iminência do fim da civilização ocidental: o pior risco é o que habita em nós e a barbárie, já deveríamos saber, faz tempo é um espectro que ronda o Ocidente.