POR
CLÓVIS GRUNER
Durante séculos a
noção de família, tal como a conhecemos hoje, inexistiu. No medievo, por
exemplo, o indivíduo vivia “enquadrado em solidariedades coletivas, feudais e
comunitárias”, segundo o historiador francês Philippe Ariès. Um mundo que não
era nem inteiramente privado e familiar, mas também não completamente público, pois
ambos se confundem no cenário que antecede e que prepara a época moderna. O
quadro não é muito diferente nos séculos subsequentes. As mudanças mais significativas
acontecerão apenas a partir dos séculos XVII e, principalmente, do XVIII. O
“século das Luzes” vê consolidar-se uma família que vai, cada vez mais,
concentrar boa parte das manifestações da vida privada, independente,
inclusive, das classes sociais. Num primeiro momento, ela substitui a
comunidade, mas a tendência é que se transforme, notadamente a partir do XIX,
em um lugar de refúgio, de afetividade e atenção - e não mais apenas uma
unidade econômica, responsável pela sobrevivência material e física do
indivíduo, como nos séculos anteriores. E é esta, grosso modo, a família que
alcança os séculos XX e o atual, a que chamamos na falta de melhor definição,
de “nuclear”.
Esta breve
introdução tem um propósito quase didático: a família coeva não existe desde
sempre, mas é uma criação relativamente recente na história ocidental. Se este
arranjo que nos é familiar (com o perdão do trocadilho) não é natural, mas
historicamente construído e constituído, é apenas por ignorância ou má fé – ou
ignorância e má fé – que a bancada evangélica no Congresso Nacional pretende
aprovar o PL 6583/13, que cria o Estatuto da Família. No corpo do projeto, de
autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), ela é entendida como o “núcleo
social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de
casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos
pais e seus descendentes”. Ou seja, o Estatuto nega a qualquer arranjo afetivo
e comunitário que não o exclusivamente heterossexual, a condição de família,
com todos os prejuízos no que tange à garantia de igualdade civil – dever do
Estado – que isso acarreta.
O caráter
excludente e retrógrado da proposta ganhou novas e ainda mais preocupantes
dimensões com o parecer do deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF): além de
favorável à redação do texto, Fonseca – que é pastor evangélico da Assembleia
de Deus – sugere a inclusão de um artigo que proíbe a adoção de crianças por
casais homoparentais. A alegação abjeta é de que tal inclusão “busca dar luz ao
tenebroso momento em que vivemos de definição do conceito de família”. É
impossível reproduzir todo o documento, um calhamaço de 35 páginas, raso do
ponto de vista argumentativo, equivocado ao recorrer à história, infeliz ao
naturalizar a família e ridículo em sua pretensão de estabelecer uma distinção simbólica
e jurídica entre “família” e o que o relator define por “relações de mero afeto”.
A distinção, que sustenta e legitima o tratamento desigual entre casais hetero
e homossexuais, se baseia na reprodução biológica: com base nesse critério, o
deputado Fonseca pretende que o Estatuto garanta às “famílias” a proteção do
Estado, mas não estende esse mesmo direito às “relações de mero afeto”. Entre
esses direitos, está o da adoção filial.
CRIANÇAS? DANEM-SE
AS CRIANÇAS – A intenção expressa no parecer revela, uma vez mais, o que já
deveria ser do conhecimento comum: para os conservadores religiosos, muito bem
representados nesta e na próxima legislatura, não é o bem estar da criança o que
está em jogo. O discurso é claro e o texto não deixa margem de dúvidas: eles
preferem que crianças vivam precariamente em orfanatos a serem bem cuidadas e
amadas por famílias homoparentais. Estudos mostram, para quem tiver o interesse
e a clareza de acompanhar seus resultados, que não há prejuízo algum no
desenvolvimento emocional de uma criança que tenha sido criada por um casal
gay. Por outro lado, não são poucos os casos de filhos e filhas de pais heteros
afetados emocional e fisicamente por viverem em um lar que lhes priva de tudo,
menos da violência. Mas nada, absolutamente nada disso, interessa à bancada
religiosa, disposta a levar sua cruzada contra gays até as últimas consequências,
mesmo que ao custo do bem estar e da felicidade de muitos, órfãos inclusive. A
ação coordenada dos dois deputados, neste sentido, é apenas mais um tijolo no
imenso edifício de ignorância, intolerância e ódio que se está a
construir no Brasil em nome de deus e dos valores cristãos.
No começo do
século XX a Alemanha era uma das poucas sociedades ocidentais a manter, em
relação aos homossexuais, uma postura de franca e aberta tolerância. Um bom
exemplo disso era a obsolescência do parágrafo 174 do seu Código Penal, que
criminalizava a homossexualidade, na mesma época em que a Inglaterra condenava
à prisão com trabalhos forçados Oscar Wilde, culpado do crime de “sodomia”. A
atitude alemã, liberal, sobreviveria até os anos de 1930, quando o nazismo
ascende à condição de regime de governo, fruto de um avanço conservador que
foi, entre outras coisas, reação a uma sociedade considerada por alguns como
“degenerada”. O resultado foi uma perseguição desenfreada aos homossexuais,
condenados muitos deles a amargar anos de sofrimento, humilhação e morte nos
campos de concentração, onde eram identificados e à sua condição por um
triângulo rosa costurado em seus uniformes.
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