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Foto: Fabrício Porto/ND
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POR CLÓVIS GRUNER
A data na dedicatória – “outono/2013” – denuncia: venho
querendo escrever sobre “Farda de passeio: poesia quase toda”, do Caco de
Oliveira, desde que recebi meu exemplar pelo correio. Mas a tal “realidade” – as manifestações de junho, o assassinato do Amarildo, a desmilitarização da PM, os médicos cubanos, o conservadorismo reacionário dos politicamente incorretos, etc... – atropelou, um após o outro, meus planos de resenhar esta merecida e necessária
antologia – e digo uma coisa e outra porque Caco vem fazendo poesia há umas
três décadas, utilizando como suporte para sua escrita meios os mais diversos:
varais literários, poemas xerocados e carimbados, grafites em pedras e muros,
etc...
Conheço o Caco de Oliveira dos tempos em que morava em
Joinville e cheguei a guardar por um longo período alguns de seus poemas
carimbados, infelizmente perdidos depois de três mudanças. Naquela época – final dos anos
1980 e 90 adentro – eram poucos os lugares e eventos que costumávamos – estudantes,
jornalistas, artistas, etc... – frequentar. Ele era presença assídua, tímida e
generosa, e suas intervenções já sinalizavam a possibilidade de ler a cidade
sob uma clave poética.
Tal possibilidade é uma das que surgem da leitura de “Farda
de passeio”. Mas não se trata, por certo, da cidade em seu sentido mais estrito
e tangível: nos versos de Caco de Oliveira, ela é mais uma metáfora que coisa,
e seu desenho se faz pela confluência de pequenas impressões, desejos e
símbolos. Flutuante e incorpórea como uma chama, ela nem por isso é menos real
e visível, e os muitos indícios de sua presença surgem em versos como “A
vidraça do ônibus coletivo/ chora,/ chove dentro e fora dos olhos.”, ou “Verão/
a lesma refresca a barriga/ no mármore do banheiro.” Em outros, a dicção
poética caminha pari passu à solidariedade que denuncia as muitas contradições
ainda entranhadas na história e no cotidiano urbanos – e se é possível
identificar um nome e uma presença, Joinville, ainda assim pode se tratar de
qualquer outra cidade: “Mangue, revirar o passado dói, remói sentimentos.
Invasão, fiação de gatos, privadas de buracos no chão, pinguelas e janelas
negras. (Saímos donde a gente tava, porque o aluguel comia em nossa mesa).”
A linha que separa a “cidade real” da “cidade imaginada”,
portanto, é tênue. E diferente do que supõe uma racionalidade mais dura e instrumental,
pouco afeita à experiência sensível, é justamente essa configuração imaginária
que permite acessar tanto o seu caráter plural, como os muitos significados
atribuídos a ela por meio da linguagem. Quando diz que “o vento balança/ a
estátua da praça”, Caco problematiza o cotidiano fluído e “sem tempo” dos que
circulam pela cidade sem, muitas vezes, percebê-la. Mas, igualmente, confronta
um passado objetivado nos monumentos públicos, opondo-lhe a possibilidade de
outros pretéritos encobertos pela almejada solidez dos discursos e imagens
oficiais.
OUTRAS FARDAS E PASSEIOS – É esse olhar a cidade, essa
tentativa de apreendê-la para além da sua superfície mais visível, que a meu
ver aproxima a poesia de Caco de Oliveira de algumas das experiências que o
antecederam. Falo dos poetas e da poesia feita nos anos 70 e 80, da revista
literária “Cordão” (onde escreveram, entre outros, Alcides Buss, Borges de Garuva, Germano Jacobs, Ives Paz, David
Gonçalves, Carlos Adauto Vieira e Eunaldo Verdi); das publicações independentes
do mesmo período (tais como “O aprendiz da esperança”, de Apolinário Ternes,
“Vida dura”, de Celso Martins e “Saindo da escuridão”, de Luiz Alberto Correa –
estes dois últimos, aliás, meus preferidos); dos eventos literários organizados
por Dúnia de Freitas, já nos anos de 1990; e, mais recentemente, da poesia
escrita por uma geração de novos poetas – e me recordo particularmente de Patrícia
Hoffman, Marcos Vasquez, Marcos Alqueire e Fernando Karl, além do próprio Caco
de Oliveira.
Em que pese as
muitas diferenças – de época, temas e estilos – entre os poetas citados, há
alguns elementos a aproximá-los. Sem entrar no mérito do seu valor literário,
há neles um esforço por produzir uma poesia que não descuida do mundo; antes,
procura ocupar um espaço entre a linguagem e o mundo, aquilo que o ensaísta
francês Maurice Blanchot denominou “espaço literário”. É deste espaço-trincheira
que se pode apreender e interpretar a linguagem como uma arma de luta; resultado
de pressões e violências culturais, sociais e políticas, mas também como uma
forma de reagir a elas, um golpe desferido em meio a uma batalha.
Em sua
trajetória, Caco de Oliveira construiu inúmeras trincheiras, multiplicou e
potencializou espaços, fez com que seus versos, sua ironia, sua apenas aparente
leveza (o italiano Ítalo Calvino já disse que só sabe a leveza quem conhece o
peso das coisas) chegasse até onde de direito: os leitores, sem os quais a
palavra, qualquer palavra, resta incompleta. “Farda de passeio” celebra e
sintetiza o percurso de um “guerrilheiro da poesia” que, como todo bom poeta,
não declinou do compromisso com seus contemporâneos. Um dos meus haikais
preferidos diz: “Enxurrada de palavras/ no asfalto quente da linguagem./ O
mormaço põe delírio nos versos.” Pode-se reconhecer na escolha das palavras – enxurrada,
asfalto quente, mormaço – a presença latente da cidade que Caco escolheu sua.
Latente, mas não limitadora. Ser a um só tempo local e universal, eis aí uma
das riquezas dessa joia chamada poesia e deste pequeno grande livro que é
“Farda de passeio”.