quinta-feira, 2 de julho de 2015

Encontro com o ser humano


POR PATRÍCIA STAHL GAGLIOTI

Dia desses, andava pelo centro de Joinville por volta das 8 horas, quando fui abordada por um ambulante que carregava, em seu ombro, um mostruário daqueles em que se pendura bijuterias para vender nas esquinas da cidade. Ele olhou para mim e, sem muita razão, me perguntou: “Você prefere a verdade ou a mentira?”. Titubeei um pouco ao responder, mas disse: “A verdade”. À minha resposta, lançou-me então sua verdade: “Faltam R$ 2,50 para eu tomar minha cachaça, você me arruma?”.

Talvez pela minha inabilidade de negar algumas coisas, ou talvez por crer que não tenho condição nenhuma de julgar as necessidades daqueles que perambulam pelas ruas, atravessei em direção à outra calçada e fui trocar dinheiro para que o rapaz comprasse sua dose de cachaça. Como recompensa, enquanto eu iria em busca dos seus R$ 2,50, ele sacou um arame dos seus materiais e começou a confeccionar uma clave de sol, uma retribuição por eu ser uma “pessoa legal”, em suas palavras.

Com os R$ 2,50 em mãos, fui em sua direção e trocamos o artesanato pelo dinheiro. O rapaz olhou para mim – se Machado de Assis estivesse ao meu lado, talvez tivesse dito que seus olhos eram como os de Capitu, olhos de ressaca – e soltou mais uma de suas perguntas: “Olhe para as minhas mãos cheias de calo. Você acha que esse dinheiro paga esta peça que eu lhe fiz?”. “Bem, eu não sei quanto custa esta peça, mas foi você quem me pediu R$ 2,50”, respondi. “Eu não quero mais ficar na rua, quero ir embora desta cidade”, continuou.

O calo nas mãos daquele rapaz e sua indagação séria sobre o valor de seu trabalho, feita assim às 8 horas de um dia que se anunciava ensolarado, de alguma forma me tocou. Fiquei pensando, minutos depois enquanto caminhava rumo ao meu trabalho, o quanto menosprezamos o trabalho que realizam, o estilo de vida nômade que alguns escolheram para si, seus calos.

Talvez porque somos aqueles inseridos numa lógica de trabalho atrelada à rotina, ao sacrifício, acostumados a “engolir sapos” e “pastar” para “sermos alguém na vida”. E sermos alguém na vida se traduz em tudo aquilo que pode ser materializado, comprado, medido, contado e exposto aos olhos alheios em postagens nas redes sociais.

Max Weber há muito já falava sobre a característica peculiar do sistema capitalista moderno, no qual se desenvolveu uma ética própria, um modo de vida fundamentado no trabalho e na prosperidade financeira. “O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais”.

Weber também nos disse que “ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é resultado e expressão de virtude e de eficiência em uma vocação”. Mas que vocação seria a do ambulante que me abordou naquele dia na região central da cidade? A de confeccionar claves de sol, brincos e colares de quando em quando, percorrendo diferentes regiões do Brasil e da América Latina?

Parece que também não basta ter vocação para moldar o arame a seu favor e lhe dar a forma que desejar, a não ser que este seja um trabalho mecânico realizado dentro de uma fábrica, na qual se passa oito horas por dia e na qual os homens que ali trabalham podem ser merecidamente chamados de trabalhadores. Dobrar arame nas ruas centrais parece não contar. Assim como não conta fazer malabares no semáforo, ou cuspir fogo em uma apresentação de segundos para faturar trocados dos carros parados.  

E não conta porque além de sermos enquadrados em um determinado sistema de trabalho do qual estamos acostumados, somos extremamente utilitaristas. Se em nada me contribuiu ou de nada me vale as bolas rodando pelo ar antes de retornarem às mãos do malabarista, por que teria de pagá-lo por isso? Cada um com suas escolhas e com a aplicação de seu dinheiro que melhor lhe convir, mas já diria Rubem Braga, nos idos dos anos 1952: “A humanidade não vive apenas de carne, alface e motores”. O que não significa que se deva pagar por isso caso não queira, mas que a gente possa ter um olhar mais apreciativo para as coisas, causos e outros.

O fato é que depois de me pedir uma passagem para outra cidade e de eu negar-lhe por não ter verba para isso, o ambulante sorriu, me deu um abraço desejando bom dia e seguiu seu caminho. Os minutos que conversei com ele, antes de sentar na minha mesa de trabalho e desempenhar minha função costumeira – por vezes de forma mecânica – encheu meu dia de humanidade, de calo, abraços e histórias. De pessoas.

Para finalizar com Braga: “Sejamos humildes diante da pessoa humana: o grande homem do Brasil de amanhã pode descender de um clandestino que neste momento está saltando assustado na praça Mauá, e não sabe onde ir, nem o que fazer. Façamos uma política de imigração sábia, perfeita, materialista: mas deixemos uma pequena margem aos inúteis e aos vagabundos, às aventureiras e aos tontos porque dentro de algum deles como sorte grande da fantástica loteria humana, pode vir a nossa redenção, a nossa glória”.

3 comentários:

  1. “O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da sua vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais”.

    Parabéns ao intelectual Max Weber, essa frase condensa a busca por uma qualidade de vida promovida pelo trabalho e o suor, com a opção, promovida pelo sistema capitalista, sobre o estilo de vida de cada um, dada as escolhas que se fazem na vida.

    No caso do ambulante, ele escolheu esse tipo de vida, pois aptidão para produzir as suas peças ele tem. Educação gratuita, ele teve acesso. Oportunidade de conseguir um trabalho fixo em uma empresa, também. Acesso aos benefícios sociais oferecidos pelo Estado, também.

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  2. Os frustrados perdedores preferem colocar a culpa por suas escolhas nos pais, no Estado ou no sistema econômico.

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  3. Ninguém é obrigado à seguir o modelo do "crescimento pelo próprio esforço", só não pode é querer se valer deles para tirar vantagem. Cada um viva do fruto do seu próprio suor, simples assim.

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