sábado, 29 de outubro de 2011

A droga da criminalização

MARIA ELISA MÁXIMO

Em 2008, orientei um TCC em Jornalismo sobre os Mutantes. Sim, aquele grupo musical dos anos 60/70, que teve Rita Lee como uma das suas integrantes e que misturava ao rock e ao som estridente das guitarras uma série de outras referencias musicais, sob forte influência do Tropicalismo. Como todos sabem, os Mutantes faziam um som psicodélico, "inspirados", talvez, pelo consumo significativo de LSD.

A orientação deste trabalho perfaz uma das lembranças mais marcantes da minha carreira docente, pois lembro do quanto "briguei" com a visão conservadora do aluno a respeito das drogas e do seu uso. Para analisar o consumo de LSD pelos Mutantes, o aluno recorria a discursos oficiais da polícia, por exemplo, para chegar à conclusão de que teriam sido as drogas as responsáveis pelo fim do grupo. Do outro lado, eu insistia na possibilidade de pensarmos o uso de drogas, em especial do LSD, como o motor criativo do grupo e, mais do que isso, como uma forma de resistência. Afinal, estávamos falando de um dos períodos políticos mais complexos que o país vivia. Os Mutantes integravam, nesse sentido, a contracultura brasileira, e o uso de drogas, pra mim, não deixava de ser um caminho de se colocar na contra-mão do sistema conservador que minava, principalmente, a liberdade de expressão e de ação das pessoas.

A despeito de minha insistência em promover uma visão mais crítica do aluno, ele manteve seu ponto de vista. O trabalho foi entregue e encaminhado à banca e, como eu já esperava, foi fortemente contestado. Entre outros aspectos frágeis do texto e da análise, um dos pontos bastante criticado foi a maneira como o aluno pensava o papel das drogas na produção artística do grupo. Mas, mesmo diante das críticas, o aluno não apenas se manteve em sua posição, como a reforçou. Foi reprovado em banca, pelo conjunto de problemas que o trabalho apresentava.

Trago este fato à tona porque creio que ele seja ilustrativo do senso-comum que existe sobre o uso de drogas atualmente, inclusive nas gerações mais jovens, universitárias, que são frequentemente expostas a pontos de vista mais diversificados e alternativos a respeito de assuntos polêmicos. Em geral, as pessoas fincam raízes no caminho mais fácil: droga é uma droga, e ponto. Esta semana recebi a visita de um rapaz que pedia ajuda a uma casa de recuperação de dependentes químicos aqui de Joinville. Ele pedia R$10 por um kit com saco de lixo, esponja, grampos de roupa e um adesivo da entidade. No adesivo, o slogan: Diga não às drogas! Crime nem pensar. Verdadeiramente não compensa! Mais uma vez me surpreendeu o fato de que até mesmo aqueles que são vítimas do sistema punitivo, usam o discurso desse sistema para passar sua mensagem: usando drogas, você será um criminoso e isso "verdadeiramente não compensa". Estranho, não?

Vale pensarmos um pouco sobre a serventia desse sistema punitivo, que tudo criminaliza (o que retoma, em parte, nosso debate sobre o aborto, iniciado aqui no Chuva Ácida). Um texto interessante do Ilanud (Instituto latino americano das nações unidas para a prevenção do delito e tratamento do delinquente), publicado no Promenino, levanta algumas questões sobre o impacto da criminalização das drogas sobre os índices de delinquência juvenil. E, dentre outras coisas, o texto procura mostrar como os mecanismos de controle e de repressão são seletivos, servindo à manutenção das desigualdades sociais: enquanto jovens das classes sociais mais favorecidas, flagrados como consumidores de drogas, dificilmente chegam às portas da justiça, jovens pobres são facilmente criminalizados pela via do tráfico de entorpecentes, como traficantes ou auxiliares do tráfico, e raramente como apenas consumidores. Esta diferença no tratamento de jovens "ricos" e "pobres" ou, mais especificamente, entre brancos e negros, no âmbito do consumo de drogas, é exaustivamente discutida por Vera Malaguti Batista, no livro Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no RJ (Editora Revan, 2003). A obra é recomendadíssima para quem deseja aprofundar-se na reflexão crítica sobre o tema.

À criminalização somam-se outras medidas radicais, que implicam em reclusão, como a internação compulsória, em prática no Rio de Janeiro desde maio deste ano como parte das políticas de "combate ao crack". Sobre esse assunto, a revista Caros Amigos deste mês trouxe uma entrevista com o psiquiátra Dartiu Xavier, professor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad). Nesta entrevista, Xavier nos presenteia com um contraponto não apenas à criminalização, mas também ao próprio uso, sugerindo outras maneiras de ser ver a droga e seu uso, sobretudo ao falar da perspectiva da "redução de danos". Criticando severamente a prática da internação compulsória, Xavier alerta para a perversidade deste tipo de política, que recorre ao modelo carcerário, dos grandes hospícios, e acaba sendo ineficaz em termos terapêuticos. No final das contas, acaba servindo a propósitos higienistas, de "limpeza" urbana. Segundo ele,
existe uma lógica muito perversa da internação compulsória que atribui a situação de miséria e de rua à droga, quando, na realidade, a droga não é causa daquilo, ela é consequência. Acredito que o trabalho feito nas ruas, nas cracolândias e com crianças de rua deveria ser no sentido de resgate de cidadania, moradia, educação, saúde (XAVIER, 2011, p. 16).

Xavier relativiza a relação entre o consumo de drogas e a dependência química, afirmando que, para o alcool e a maconha, por exemplo, menos de 10% dos usuários se tornam dependentes, enquanto que para o crack a porcentagem de dependência é de 20% a 25% dentre os consumidores. Os demais permanecem no padrão do consumo "recracional"; são pessoas que trabalham, são produtivas, têm família. E, nesse sentido, ele tenta desconstruir a associação entre uso de drogas e perda da noção de realidade (associação esta que, muitas vezes, justifica a internação forçada). Enfim, não se trata de querer minimizar o problema das drogas, mas de vê-lo sob outros ângulos que não o do senso-comum, do caminho mais fácil e, principalmente, da criminalização e da repressão. Até mesmo porque não se pode excluir os próprios consumidores como informantes privilegiados na elaboração de políticas públicas relativas à prevenção, ao tratamento, desintoxicação, ressocialização, etc. Eu não tenho dúvidas de que a criminalização não é o caminho e acho importantes os movimentos que emergem, atualmente, contra isso. É claro que a descriminalização do uso deverá, num futuro ideal, vir acompanhada de políticas sócioeducativas e de formas de controle da comercialização, mas este é ponto pra outro debate.

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