POR CLÓVIS GRUNER
A semana foi de Marina Silva, e não por menos: fato único na
nossa história política recente, a candidata do PSB conseguiu, em apenas duas
semanas, mudar radicalmente o roteiro eleitoral, que até sua entrada em cena
repetia a mesma polarização PT x PSDB das últimas duas décadas e cinco eleições.
A acreditarmos nas pesquisas, o “fator Marina” não apenas conduz a candidatura de Aécio Neves a um fim bíblico (“do pó vieste, ao pó retornarás”), como
acendeu todos os sinais de alerta na de Dilma Rousseff, que pela primeira vez
vislumbra no horizonte o risco de ver comprometido, em um eventual segundo
turno, o projeto da reeleição.
Mas não foi apenas sua ascensão meteórica nas pesquisas que tornou Marina Silva a principal protagonista nos debates políticos e redes sociais.
Porque suas intenções de voto crescem na mesma proporção em que se tornam
visíveis as muitas fragilidades de seu discurso. Nos dois debates de que
participou, por exemplo, a candidata socialista tergiversou sobre todas – e não
exagero – as questões controversas e urgentes que lhe foram propostas. Tudo
parece se resumir a esta coisa algo vaga que ela define como a “nova política”,
ainda que o preço para eventualmente implementá-la no futuro seja firmar, no
presente, alianças com alguns velhos políticos.
Ao longo da última semana, à medida que seu protagonismo fez
crescer o interesse especialmente midiático por suas ideias e projetos, Marina
Silva mergulhou em um sem número de contradições. Entre elas, a mais lamentável
foi o episódio envolvendo Silas Malafaia, o pastor que por razões e fantasias
insondáveis, lidera uma raivosa campanha contra os direitos LGBTs. Bastou Malafaia falar mais alto, e ela retirou
rapidamente do seu Programa de Governo aquilo que poderia comprometer o seu apoio
e o voto evangélico e conservador. O episódio traz algo de didático, é verdade:
ao recuar diante da pressão de um fundamentalista cristão, Marina sinaliza mais
claramente não apenas com quem e para quem pretende governar. Implícita em sua
atitude está o risco de retrocedermos ainda mais justamente onde o Estado
brasileiro pouco avançou nos últimos anos: a laicidade, condição fundamental
para se consolidar uma política de direitos civis efetivamente republicana.
CONTRA TUDO O QUE ESTÁ AÍ – Ao
menos parcialmente, a ascensão de Marina Silva pode ser explicada pelo
descontentamento, algo generalizado, com os esquemas políticos que vigoraram
nos últimos 20 anos. Como disse anteriormente, ela encarna
melhor, para o eleitor médio – aquele não deseja nem a reeleição de Dilma, nem
o retorno tucano, mas que pretende escolher seu candidato dentro de limites
ideológicos e programáticos mais convencionais –, a “terceira via”. Além
disso, sua biografia política é, como a de Lula, singular – o que
tornam equivocadas, a meu ver, as inúmeras comparações feitas nos últimos dias entre
ela e Fernando Collor.
Uma coisa e outra, e Marina atraiu muitos dos eleitores sem
uma candidatura definida e mesmo desinteressados do debate eleitoral, e é
significativo que o número de indecisos e de votos brancos e nulos tenha
diminuído sensivelmente, também de acordo com as últimas pesquisas. Para muitos
eleitores, ela representa efetivamente a promessa de renovação. O que pode
significar, entre outras coisas, que para eles as contradições de seu discurso,
as incongruências de seu programa de governo e a fragilidade de sua aliança
partidária não são importantes ou, talvez, sequer percebidas. As tentativas de
dilmistas e aecistas de jogar com o medo do eleitor tão pouco funcionaram até
aqui: Marina agrega votos porque conseguiu se posicionar, no imaginário de
muitos brasileiros, naquele lugar intermediário entre a continuidade do que é e
a reedição do que já foi.
De certa forma ela deu voz e forma aquele sentimento difuso que
é “contra tudo o que está aí”, tão presente nas redes sociais e em pelo menos
duas ocasiões – as “Jornadas de Junho” de 2013 e, mais recentemente, nas
manifestações contra a Copa –, também nas ruas. As outras duas candidaturas que
poderiam assumir esse papel – Luciana Genro (PSOL) e Eduardo Jorge (PV) – não lograram
êxito em parte porque abrigadas em legendas “nanicas”, extremamente desfavorecidas
pelas regras do jogo eleitoral. Mas também porque a opção por um ou outro
implica um posicionamento político e ideológico claro, inexistente quando se
trata da candidata socialista. A despolitização é um dos traços da candidatura
de Marina Silva e, neste sentido, ela caminha na contramão do legado das
manifestações do ano passado.
POLITIZAR A POLÍTICA – Quando milhares de brasileiros,
principalmente jovens, saíram às ruas, me misturei à multidão, mesmo não sendo
mais jovem, e vi com entusiasmo o que era o retorno da política às ruas, depois
de um longo hiato. De certa forma uma resposta ao desgaste, depois de três
décadas, do modelo político surgido com a redemocratização, as “Jornadas de
Junho” alertavam, entre outras coisas, para a necessidade de fazer avançar a
democracia. Num momento em que a maioria dos partidos, o PT inclusive, se
distanciava dos segmentos e movimentos sociais, e que o enfrentamento com o discurso
conservador ganhava contornos mais claros e críticos, as manifestações de junho
nos lembraram da necessidade de inventarmos outras formas de pensar e fazer
política.
Nos últimos dias aqui e ali apareceram textos a sugerir uma ligação
– mais ou menos tênue, a depender do autor – entre as “Jornadas” de 2013 e a
candidatura de Marina Silva. O argumento central é de que, ao colocar fim à
polarização partidária, ela reúne as condições para organizar os fluxos
dispersos e fragmentados que circularam pelas ruas durante as mobilizações. Em
um outro nível, institucional, Marina representaria parte daquilo que estava na
ordem do dia das passeatas em função de sua independência frente aos esquemas
políticos cristalizados nas candidaturas petista e tucana.
Entendo as razões pelas quais muita gente apostou nisso – e alguns parecem ainda apostar –; mas não consigo concordar com a aproximação. E não apenas porque a candidatura de Marina Silva é a parada do velho novo: seu ingresso oportunista no PSB; sua subserviência aos grupos religiosos e conservadores; as alianças já firmadas e as promessas de apoio futuro, tudo ali é mais do mesmo. Seu discurso calculadamente descompromissado com a “velha política” pode mobilizar votos, mas desmobiliza na política sua capacidade de organizar e regular as multiplicidades e o convívio de e entre diferentes: ao recusar o confronto pela conciliação, sustentada em compromissos vagos, abstratos e contraditórios de futuro, Marina Silva despolitiza a política. Presta um desserviço à nossa ainda frágil democracia, e erra onde as “Jornadas de Junho” acertaram: é preciso fazê-la avançar. Com Marina, na melhor das hipóteses, serão mais quatro anos de letargia.
Entendo as razões pelas quais muita gente apostou nisso – e alguns parecem ainda apostar –; mas não consigo concordar com a aproximação. E não apenas porque a candidatura de Marina Silva é a parada do velho novo: seu ingresso oportunista no PSB; sua subserviência aos grupos religiosos e conservadores; as alianças já firmadas e as promessas de apoio futuro, tudo ali é mais do mesmo. Seu discurso calculadamente descompromissado com a “velha política” pode mobilizar votos, mas desmobiliza na política sua capacidade de organizar e regular as multiplicidades e o convívio de e entre diferentes: ao recusar o confronto pela conciliação, sustentada em compromissos vagos, abstratos e contraditórios de futuro, Marina Silva despolitiza a política. Presta um desserviço à nossa ainda frágil democracia, e erra onde as “Jornadas de Junho” acertaram: é preciso fazê-la avançar. Com Marina, na melhor das hipóteses, serão mais quatro anos de letargia.