
POR CLÓVIS GRUNER
Começo com uma pergunta: quando foi a última vez que você leu um texto de autor
branco reivindicando respeito e visibilidade ao seu grupo ou etnia? Eu nunca li e não me espantaria
se você também não. Porque se trata de algo desnecessário. Social e historicamente, aquilo que convencionalmente chamamos de “realidade”
foi construído com o propósito de reafirmar, constante e veementemente, a
superioridade e a naturalidade de ser branco. Da linguagem cotidiana aos meios
de comunicação; da ideia de beleza aos currículos escolares; tudo ou quase tudo
a nossa volta contribuiu e contribui para forjar um imaginário onde o natural é
ser alvo e europeu. É cômodo e fácil. E se você for também homem e heterossexual, aí é mel na chupeta.
Não é preciso ir longe. Cidade dos muitos monumentos étnicos
- há praças e parques para tudo e para todos em Curitiba -, a Praça Zumbi dos
Palmares, homenagem à “contribuição africana” na construção do estado e da
capital, fica em um bairro periférico e nem mesmo é parte do roteiro turístico.
Aliás, muitos curitibanos sequer sabem da sua existência. Muito diferente das
praças, parques e monumentos dedicados aos japoneses, alemães, italianos,
ucranianos, poloneses, etc..., localizados em bairros ou regiões abastados e parte
do roteiro oficial da cidade.
Em Joinville não é diferente. Procurem nos
livros canônicos da história local – as centenas de páginas escritas por
Apolinário Ternes, por exemplo –, e os negros são uma incômoda ausência. Há até
pouco tempo se acreditava que não havia escravos na Colônia Dona Francisca,
baseando-se tal afirmação no fato de que os colonos que para cá vieram eram
proibidos por contrato de possuí-los. Foi preciso esperar o século XXI e o
trabalho minucioso e ousado de Denize Aparecida da Silva para nos darmos conta que não
possuir e não usar o trabalho escravo eram, afinal, coisas bem distintas.
E como é cômodo ser branco, é sempre desconfortável alguém ou algo
desestabilizar nossa condição. Foi o que aconteceu no final de
semana com o texto do Felipe Cardoso. O número de acessos e a enxurrada de
comentários falam por si. Bem como as inúmeras tentativas de desqualificar sua
argumentação: um leitor considerou a discussão “enfadonha”. Outros
tentaram diminuir seu argumento limitando o tema a algo regional e
demográfico. Exaltado, alguém chegou a afirmar que tal discussão só existe
porque os negros são “moda”, reproduzindo talvez inconscientemente (concedo-lhe
o benefício da ignorância) o mesmo discurso dos senhores de escravos. De
mercadoria à moda, a mentalidade mediana segue a mesma: os brancos continuam a
negar, do alto de sua arrogante supremacia, qualquer outro direito ao negro que
não o de resignar-se à sua condição de “coisa”.
O PRECONCEITO NOSSO DE CADA DIA – Os argumentos se
sustentaram principalmente em duas premissas. A primeira, de que no Sul negros
não são valorizados porque em menor número, diferente de estados como a Bahia,
por exemplo, caiu por terra quando constatado que, mesmo lá, onde são maioria,
eles continuam a ser, por paradoxal que pareça, minoria. A segunda não é mais
consistente. Trata-se de construções sociais e midiáticas fortemente assentadas
em nosso imaginário e em nossas percepções de mundo: acostumamo-nos a perceber
como bonito e bom o que é branco, e como feio e mal o negro, disseram. Não discordo.
Mas justamente porque se trata de construtos sociais e históricos é que tais
percepções devem ser denunciadas, combatidas e transformadas. Agarrar-se a elas
como se fossem naturais e imutáveis é, na melhor das hipóteses, estupidez. Afinal,
no passado também aceitávamos a escravidão como algo “natural”. E talvez ainda
a aceitássemos não fosse a coragem de alguns homens e mulheres, negros e
brancos, que acreditaram ser necessário e possível mudar isso.
Há algo fundamental nesta discussão que escapou ao debate
provocado pelo texto do Felipe. A noção de “minoria” não é apenas numérica –
nunca é demais lembrar que na África do Sul os negros eram em muito maior
número, o que não impediu o apartheid. Ela está ligada a um conjunto de fatores
que condicionam nossa maneira de ver, interpretar e estar no mundo. Exemplos abundam:
piadas ofensivas; comentários e atitudes estigmatizantes; salários diferenciados;
humilhações públicas; anúncios de emprego a pedir “pessoas de boa aparência”;
olhares oblíquos...
Há quem insista que “não somos racistas” apegando-se às
falácias de que negros não são a única minoria, e é a pobreza o grande mal a
ser combatido, como se fosse equivalente ser um imigrante europeu ou seu descendente e negro, em
um país aonde os últimos chegaram, em sua esmagadora maioria, como escravos. Ou que basta
reduzir os níveis de desigualdade econômica para banir os preconceitos étnicos
e raciais, quando insistimos em reproduzi-los sempre que afirmamos que “os
negros no Estado [de Santa Catarina] são minoria e não tiveram a mesma
importância dos europeus. Ponto!”. O que define e sustenta o preconceito
e, por consequência, justifica e legitima as minorias – negros, mulheres, gays, etc... – afirmarem
cotidianamente o direito de serem vistos e gritarem seu orgulho, não são as estatísticas demográficas ou as condições econômicas.
É o contexto, estúpido!