quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Sobre as fantasias carnavalescas e a realidade que nos cerca

POR PATRICIA STAHL GAGLIOTI 

O Carnaval não é recente, nem sequer é festa surgida em terras brasileiras, tampouco é nossa contemporânea de nascimento. Algumas histórias dizem que a festa começou lá por volta de 500 a.C., na Grécia, como homenagem a Dionísio (deus da cultura grega, característico por ser brincalhão, debochado e irreverente).

A única intenção da festa era se divertir, comemorar a chegada da primavera e do tempo de fertilidade da terra, naquela sociedade agrária. Já era característico, naquela época, a teatralização do evento. Mulheres e homens se pintavam e usavam roupas que não eram as mesmas de seus cotidianos.

Em uma espécie de fuga dos papeis sociais que desempenhavam, homens pobres, por exemplo, se caracterizavam como reis e mulheres posavam como damas. Era um momento em que aproveitavam para fazer críticas à classe dominante, ao poder, valendo-se dos rostos encobertos e das fantasias.

Das mudanças que a festividade já sofreu, dependendo do local e época em que é realizada, a fantasia foi característica que não se perdeu. Pode ser na rua, em salões, em festas privativas, seja apenas com máscaras, pequenos adereços, fantasias completas, luxuosas ou simples, transformar-se é típico do Carnaval.

Mas, com que tipo de fantasia você foi? Quem você quis ser neste carnaval que passou? O homem que se transformou na mulher de seios fartos e bunda grande, num vestido justo; a “mulata” com cabelo black power; o desdentado; a faxineira nordestina que conjuga errado seus verbos; o homossexual performático?

A máxima de “vale tudo” é ideia que deve permanecer na música de Tim Maia, porque definitivamente não, não vale tudo. Tudo pode parecer inocente e sem intenções pejorativas quando visto como parte desse momento de festividade, em que as pessoas estão “brincando” o Carnaval. No entanto, a festa não está deslocada da realidade em que vivemos, um cenário repleto de machismo, racismo e LGBTfobia, que permanece e se reforça nas “brincadeiras” destes dias de festa.

O Carnaval traz consigo a noção de liberdade, de transformação, de ridicularização de si mesmo, em que todos os outros dias do ano não lhe permitem ser. A ideia é ser caricato e rir das fantasias e diferentes formas de representação adotadas. Então, o que se conclui é que se travestir é ridículo (não que ser uma travesti se restrinja a vestir uma vestimenta feminina, muito longe disso, mas homens vestirem-se como mulheres é a expressão debochada dessa identidade). Ter a pele preta e o cabelo avolumado é ridículo. Não ter dentes na boca é ridículo. Ser gay, igualmente ridículo.

Durante esse momentos, caro folião(ã), você não está se propondo apenas ser diferente, você está sugerindo que aquilo que veste é estranho, é anormal, é ridículo. Porque afinal, essa é a ideia de se fantasiar no Carnaval.

O problema é que a permissividade que é dada a você para ser a mulher negra, o desdentado, a nordestina, a travesti na semana de folia não se traduz em brincadeira nos outros dias do ano a quem realmente é.

A mulher que você brinca de ser no Carnaval vive numa realidade nada promissora a ela. Apenas nos dez primeiros meses de 2015, o 180 recebeu 63.090 relatos de violência, dos quais 49,82% correspondiam à violência física; 30,40% à violência psicológica; 7,33% à violência moral; 4,87% à cárcere privado; 4,86% à violência sexual; 2,19% à violência patrimonial e 0,53% a tráfico de pessoas. Os dados são do relatório de 10 anos da Central de Atendimento à Mulher (180) e correspondem apenas às denúncias feitas. Imagine você quantos inúmeros outros casos não acontecem à escura, folião.

Sabe a “mulata” black power divertida? A situação para ela é muito pior que para a mulher branca. Dos 63.090 relatos de violência, 58,55% foram cometidos contra mulheres negras. Segundo o Mapa da Violência Contra a Mulher, divulgado no ano passado, tendo como base dados de 2013, revelam que o homicídio de mulheres brancas caiu de 1.747 vítimas, em 2003, para 1.576 em 2013. Uma diminuição de 9,8%. O homicídio de mulheres negras, por sua vez, passou de 1.864 para 2.875, no mesmo período. 54,2% de aumento, folião. Não parece engraçado ser negra no Brasil, não é mesmo?

Além dessas estatísticas, outros números se somam à triste realidade, nada festiva, do país. O Brasil é o pais que mais mata travestis e transexuais no mundo. Segundo pesquisa da ONG Transgender Europe (TGEU), uma rede europeia de organizações que apoiam direitos da população transgênero, de janeiro de 2008 a março de 2014, foram registradas 604 mortes de transgêneros no país.

Dados do relatório sobre violência homofóbica no Brasil, elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos, em 2012, apontou 3.084 denúncias de violações relacionadas à população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros) pelo Disque 100. O que isso significa? Por dia, eram denunciadas 27,34 violações de caráter homofóbico.
Há quem ache que o mundo está “politicamente correto” demais, exagerado demais. Há quem ache que tudo virou preconceito e que não se pode nem mais rir da “bichosa” de sunga dourada desfilando pela avenida. Não virou preconceito, sempre foi. Há muitos que pensam que mulheres, gays, transexuais se vitimizam. Eles não se vitimizam, são vítimas.

Ser vítima não é apenas sofrer agressão física ou ser morto(a). Ser vítima é ser olhado(a) como o ser estranho, anormal, inferior dentro do conjunto de pessoas do qual você faz parte. É ser questionado(a) pelo seu modo de ser, como outros não são. É ter que policiar a fala, a maneira como anda, a roupa que veste, os gestos públicos (principalmente os de afeto) para que não seja insultado(a).

De acordo com o relatório sobre violência homofóbica, mencionado acima, as violências psicológicas foram as mais reportadas, representando 83,2% do total de denúncias em 2012, seguidas de discriminação (74,01%) e violências físicas (32,68%).

CARNAVAL DE JOINVILLE - Deixemos os números um pouco de lado e falemos de experiências. Neste ano, mais uma vez desfilei no carnaval de Joinville. Atrás da ala das baianas, na qual estava, desfilava um dos destaques da escola. Um jovem de pouco mais de 20 anos, vestido numa sunga dourada e com um adereço nas costas. No percurso pela rua até o ponto de concentração e durante o tempo em que esperávamos para entrarmos oficialmente na avenida, pude ouvir algumas “brincadeirinhas” (era carnaval, afinal) com relação ao moço.

A questão é que não são brincadeirinhas, são constrangimentos, ofensas, são violações. Há quem adore as “bichas”, pois são divertidíssimas, ótimas para se dar risada, durante o carnaval apenas, é claro.

Neste carnaval, um amigo meu foi para a rua vestido de mulher, segundo ele por pressão das pessoas que o acompanhavam, pois em sua concepção considerava a “brincadeira” desrespeitosa, machista, transfóbica, como de fato é. A questão é que ele foi. E se arrependeu. Menos mal.

Segundo seu próprio relato, estar vestido como uma mulher, apenas por algumas horas de festa, parece ter dado direito aos outros de lhe passarem a mão na bunda, de lhe encoxarem, de buzinarem para ele. “Ah! Mas isso era para zoar, para entrar no clima da festa”. Não, não é não. Quem vos escreve é uma mulher. E mulher passa por isso sempre, até quando o clima é de velório. Pessoas trans passam por isso sempre.

Há dois anos, passava o carnaval em São Francisco do Sul, com uma amiga. Estávamos sozinhas, à noite, sentadas num banco em frente ao mar, um pouco antes do local em que havia a grande concentração de pessoas com os sons dos carros ligados, dançando. Um carro parou atrás de nós, desceram alguns sujeitos com suas bebidas, dando risada, até que um falou para o outro: “Olha só, cara, tem mulher ali!”. Tem mulher ali é o mesmo que dizer: Há um banheiro ali. Há uma boneca inflável ali. Há um depósito dos meus desejos sexuais ali. Foi como me senti.

Outro dia, em turma, outro carro passou e uma cabeça colocada para fora do carro questionou bradando: “Vocês transam?”. Não me lembro se fiz algum tipo de gesto, mas minha vontade foi de gritar: “Não com animais”. Isso era carnaval. Mas teve aquele dia que ia trabalhar e fui encarada, aquele outro em que o carro buzinou, a outra ocasião em berraram sobre meu corpo, a outra, a outra e a outra.

O feminino parece ser sinônimo de ser público, um corpo público. A carne à mostra ou o corpo transformado (todo o corpo é, mas me refiro especialmente ao corpo transexual) parece serem pratos do jantar. Querem ainda me fazer pensar que é normal? Querem me fazer crer que é brincadeira certas fantasias de carnaval ou alguma espécie de elogio tirar foto da bunda de uma mulher e dizer que esse era o motivo de as pessoas terem demorado para sair de um espaço de lazer na cidade?

Ora, ora, caro folião, o carnaval é festa, mas a vida é séria demais para seus modos e suas fantasias trouxas.

Um comentário:

  1. Concordo: carnaval é mesmo uma merda!
    Mas pior do que o carnaval é essa caça às bruxas promovida pelos santinhos politicamente corretos.

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