quarta-feira, 1 de julho de 2015

A criminalização de condutas opressoras sob o manto dos discursos legitimantes

POR FÁTIMA IRENE DOS SANTOS MOSER

“A prisão se torna um meio de fazer com que as pessoas desapareçam, sob a falsa promessa de que também desaparecerão os problemas que elas representam” (Angela Davis)

Dentre os diversos meios de comunicação no campo da linguagem, o discurso encontra-se como uma forma de interação intimamente ligada com a legitimidade de seu conteúdo formal, porém não necessariamente guarda a mesma legitimidade em relação ao seu conteúdo substancial. A noção do termo discurso, por abranger diferentes enfoques culturais, históricos e sociais, pode ser estudada sob diversas perspectivas teóricas.

Contudo, pode-se afirmar, sumariamente, que tem por objetivo não somente transmitir um determinado conjunto de informações, mas transmiti-lo de maneira significativa, ou seja, de modo que adentre a esfera psicológica do interlocutor. Segundo George Orwell, “no nosso tempo, o discurso e a escrita política são em grande medida a defesa do indefensável.” Com efeito, a elaboração de um discurso não necessariamente pressupõe a utilização de um critério de racionalidade ou de comprometimento com a verdade.

Do contrário, pode desempenhar a função de produzir (arbitrariamente) uma verdade, inclusive utilizando-se de apelos emocionais para submeter o maior número possível de pessoas à sua aceitação. Este tipo de interferência – largamente utilizada para a manutenção das relações de poder nas sociedades que lhe estão submetidas – expressa a formação daquilo que se denomina discurso dominante ou legitimante.

VERDADE - A propósito, adentrando brevemente na esfera da psicologia, sabe-se que a reprodução de uma “verdade” resulta muitas vezes da herança de um senso comum coletivo (inconsciente coletivo) transmitido de uma geração à outra, sem que necessariamente se compreenda ou conheça a razão de seu surgimento. Assim, não poucas vezes um discurso legitimante é amplamente difundido sem que sequer se pondere de forma crítica e fundamentada a motivação de sua existência.

No que tange ao Direito Penal, campo de estudo do presente artigo, denota-se flagrantemente a utilização deste tipo de discurso como meio de tentar legitimar o sistema punitivista do Estado. Para tanto, induz-se a ideia de que a punição a partir da segregação dos indivíduos desviantes serve como meio de proteger os cidadãos “de bem” e garantir a paz social, uma vez que, além de proporcionar sensação de segurança, projeta-se como instrumento hábil à prevenção do crime pela (suposta) ressocialização no cárcere.

Essa ideia atua como legitimante de um discurso que, na verdade, além de esconder a real intenção do Estado de obter maior controle e poder de decisão, alimenta-se no sentimento de medo que se difunde silenciosamente no inconsciente popular – sobretudo por meio da propagação massiva de conteúdo violento pela mídia que nada almeja que não lucro em razão da audiência.

Assim, diante da sensação de violência e de impunidade, os indivíduos acabam por cobrar do Estado medidas de proteção e segurança que os tranquilizem em relação aos seus “inimigos” – e assim curiosamente cerceiam a própria liberdade em uma plena demonstração de “servidão voluntária” (La Boétie). Como resposta, o Estado fornece (mais) formas de repressão penal, seja tipificando novas condutas ou aumentando a pena de outras. 

LIBERDADES DEMOCRÁTICAS - Partindo de todas as colocações acima esboçadas, não há dúvidas que os atuais debates sobre opressões revelam a necessidade urgente de se problematizar os discursos oportunistas que tentam legitimar a criminalização das condutas opressoras específicas. É preocupante perceber que as dores dos movimentos de defesa das liberdades democráticas – lutas com um “viés de esquerda”, porém não necessariamente – têm sido usadas como argumento de captação de credibilidade política, haja vista que se trata de um segmento normalmente avesso à tutela penal como instrumento de poder do Estado. 

Isso porque o sentimento coletivo de insegurança, a ausência de senso de alteridade no convívio social e as frustrações advindas das desigualdades de toda sorte criam campo fértil para a retórica do paternalismo estatal, a qual é por vezes ingenuamente acolhida pelas vítimas das opressões. Desse modo, uma vez cegos pelo desejo de punir aqueles que apontam como responsáveis pela violência que sofrem, os adeptos desses segmentos aplaudem os processos de criminalização sem notar que, inevitavelmente, não somente esses processos são incapazes de descontruir qualquer estrutura opressora como contituem um permanente estado de conflito entre os indivíduos.

Exemplo recente deste tipo de manipulação encontra-se na criminalização do feminicídio. A lei 13.104/15, aprovada em um momento de baixa popularidade do governo, inseriu como qualificadora do crime de homicídio a conduta que atentar à vida da mulher por sua condição de sexo feminino, seja em situações de violência doméstica e familiar ou em razão de menosprezo ou discriminação a essa condição, bem como incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos da Lei 8.072/90.

Esse tipo específico de violência homicida contitui um dos mais brutais atos de violação aos direitos humanos, sobretudo por ser tão recorrente. Assim, não é difícil perceber a facilidade de manipular a legitimidade do discurso de criminalização dessa conduta. Em uma sociedade extremamente machista e misógina, na qual o regime desigual de gênero viola truculentamente os direitos da mulher tanto na sua esfera física quanto psicológica, o Estado finge dar ouvidos às vozes dos movimentos feministas e responde (apenas) com repressão penal.

Aliás, o próprio projeto de lei originário justifica a tipificação do feminicídio pelo reconhecimento da morte de mulheres causada por desigualdade de gênero e pela mensagem à sociedade de combate simbólico à impunidade. Contudo, a justificativa do projeto não passa de uma denúncia sobre uma situação fática que, embora bastante grave, não serve de sustento à existência de uma lei penal, mesmo porque criminalizar ou não uma conduta está longe de significar o desaparecimento das motivações que lhe deram origem. 

REPRESSÃO PENAL - Na verdade, esse tipo de resposta em nada contribui para o reconhecimento dos direitos da mulher e para o avanço na construção de uma sociedade igualitária. O esforço para evitar a morte das mulheres deve se concentrar em ramos distantes do sistema penal, haja vista que seu único instrumento de (tentativa de) proteção é um castigo desigualmente distribuído e incapaz de cumprir suas próprias funções (para maior entendimento acerca da problemática, veja-se o seguinte artigo: link

Não é demais lembrar que o Brasil, apesar de ocupar o segundo lugar em número de presos nos últimos 15 anos, é recordista em número de homicídios, o que leva à possível conclusão de que a repressão penal é absolutamente ineficaz para a prevenção de crimes (sobre a ineficácia do encarceramento: http://www.cartacapital.com.br/revista/838/se-cadeia-resolvesse-4312.html).

Outrossim, ainda do ponto de vista das pautas feministas, vale lembrar que a aposta no encarceramento implica diretamente no aumento de mulheres que, ao visitarem os parentes presos, são diariamente submetidas a (para não dizer “violentadas com”) revistas vexatórias e extremamente humilhantes. Abraça-se o paternalismo estatal sem que se enxergue a faca nas costas dos próprios direitos e garantias.

Não se questiona a própria (e mais devastadora) opressão do Estado. Não há dúvidas, portanto, que é preciso reconhecer que a crescente adesão de diversos setores dos movimentos sociais à ideologia punitivista proporciona um controle ainda maior do poder do Estado e derruba as perspectivas de construção gradativa de uma nova sociedade.

Clamar por poder punitivo significa sucumbir à uma estrutura política pragmática e imediatista, na qual pouco interessa atender de fato aos anseios dos oprimidos senão quando sob pressão das agendas eleitorais ou quando em situação de baixa popularidade.
Significa incentivar a crueldade da repressão informal contra aqueles que correspondem à imagem de criminosos, aqueles que invariavelmente são selecionados pelo sistema em razão de sua vulnerabilidade social, em razão de sua cor, em razão de qualquer diferença incômoda em relação ao resto da sociedade considerada “normal” e “controlável”.

Significa, ademais, compactuar com um método comprovadamente ineficaz, no qual suas falhas estruturais permitem que somente uma pequena parte da totalidade dos crimes cometidos seja alcançada pelas mãos do sistema. Isto é, punem-se certos grupos sociais em vez dos delitos em si. Em outras palavras, significa apoiar um sistema que pune somente uma parte da sociedade composta majoritariamente por pretos e pobres.

Um sistema que objetifica os indivíduos que por ele passam, tornando-os escravos eternos de uma estigmatização capaz de afastá-los cada vez mais da aceitação social e de suas próprias identidades, isto é, uma estigmatização que atua na direção justamente contrária da ressocialização pretendida. Significa, por fim, compactuar com a institucionalização da violência, com o aumento da reincidência, com as privações ilegais de liberdade, com as torturas, com as desigualdades, com a intolerância, com a marginalização e com as revistas vexatórias – tudo aquilo que os movimentos de direitos humanos deve(ria)m repelir.

Em resumo: é preciso transcender o imaginário punitivista e adentrar em debates construtivos sobre práticas éticas para abolição dessas opressões, defendendo os direitos humanos em quaisquer circunstâncias e reafirmando os valores de liberdade. Há outros meios de intervenção mais efetivos para enfrentamento dos comportamentos indesejados e para a concretização de direitos humanos fundamentais.

Segundo Karam, juíza aposentada, “É preciso buscar instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o fácil, simplista e meramente simbólico apelo à intervenção do sistema penal, que, além de não realizar suas funções explícitas de proteção de bens jurídicos e evitação de condutas danosas, além de não solucionar conflitos, ainda produz, paralelamente a injustiça decorrente da seletividade inerente à sua operacionalidade, um grande volume de sofrimento e de dor, estigmatizando, privando da liberdade e alimentando diversas formas de violência.”

Afinal, sucumbir ao sistema penal nada mais é que perder a luta pelos próprios direitos e subestimar a força do maior instrumento de opressão e promoção de desigualdades. Um sistema de sofrimento estéril. 

 Fátima Irene dos Santos Moser é acadêmica do 10.º semestre do Curso de Direito (Univille)

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