quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Precisamos falar sobre o Bolsonaro

POR CLÓVIS GRUNER
Não sou daqueles que acham que não se pode falar de Bolsonaro. Aliás, acho que precisamos falar mais dele, e basta uma razão: ele é líder nas pesquisas, aquelas que valem alguma coisa, já que Lula, na prática, não é candidato nem será. Isso pode mudar? Espero que sim, porque Bolsonaro é a maior ameaça à democracia brasileira desde que a restabelecemos. E isso depende, em grande medida, de falarmos dele todos os que, das esquerdas aos liberais de direita, acreditamos que dar as costas à democracia não é alternativa para superarmos nosso momento de crise.

A questão é com quem e como falamos. No universo de seus eleitores, há aqueles sinceramente atraídos pela truculência, o autoritarismo, o racismo, o machismo e a homofobia. Trata-se daquela parcela do eleitorado que vota em Bolsonaro não apesar dos elogios que fez e faz a um torturador, estuprador e assassino como Ustra, ou pelo seu profundo desprezo pelas liberdades individuais e os direitos humanos, mas justamente por causa disso.

Não é difícil identificá-los: são aqueles comentaristas de portais e blogs que conseguem falar de Venezuela e Lula em um texto sobre Portugal, ou que defendem, sem corar, que elevadores de serviço existem para transportar animais de estimação. Com esses, não há diálogo possível. Mas há uma parcela disposta a acreditar nas suas falsas soluções, que votam nele por alguma motivação pragmática. E há os indecisos, mais de 50%, segundo as últimas pesquisas. É com eles que precisamos falar sobre Bolsonaro.

Com parcos oito segundos no programa eleitoral, é quase certo que uma das suas estratégias será continuar a apostar nas redes sociais. Como a linguagem do Facebook e dos grupos de Whatsapp facilita a disseminação de fake news, da desinformação e de lugares comuns, onde o candidato transita com tranquilidade, e dificulta aprofundar o debate, parece pouco proveitoso tentar trazer eleitores e indecisos para nossas trincheiras na guerra cultural. É tentador, mas é uma batalha que estamos fadados a perder em um ambiente polarizado como é o eleitoral.

Não se trata de deixar de lado temas ligados aos direitos humanos, caros a qualquer democracia que ambicione ser tratada como tal. Mas se a intenção é enfraquecer a candidatura de Bolsonaro, alguns desses temas passam muitas vezes ao largo das preocupações de quem convive diariamente com o fantasma do desemprego e a insegurança, por exemplo, e quer ouvir de seu candidato o que ele tem a oferecer como alternativa para seus problemas cotidianos. É um caminho mostrar que Bolsonaro não tem absolutamente nada a dizer ou propor sobre esses assuntos, e seu desempenho no Roda Viva fornece bons elementos para isso.

Um pouco do possível - Em quase 30 anos como deputado, Bolsonaro não apresentou um único projeto para a segurança pública, área em que afirma ser especialista. Perguntado sobre o aumento nos índices de mortalidade infantil por diarreia, doença diretamente relacionada à pobreza e a condições sanitárias precárias, entre outros absurdos responsabilizou diretamente a mãe, “que não dá bola para sua saúde bucal ou não faz os exames do seu sistema urinário com frequência”. Há outros exemplos, no mesmo Roda Viva.

Bolsonaro defendeu a redução da porcentagem das cotas, uma proposta baseada unicamente no seu racismo. Ele ignora, entre outras coisas e desconsiderando a sua matemática tortuosa, que as elas são antes de tudo sociais, ou seja, 50% das vagas nas instituições públicas são para candidatos egressos exclusivamente do ensino público, e é dentro dessa porcentagem que são alocadas as chamadas “cotas raciais”. Em outras palavras, ele mente.

E mente também sobre negros “tirarem as vagas” de candidatos brancos: desde que a política de cotas foi instituída, o número de ingressantes nas universidades federais passou de 100 para 230 mil. Ou seja, a política de cotas acompanhou um crescimento no acesso, democratizando, e não cerceando o ingresso no ensino superior. Além disso, estudos mostram que o desempenho de discentes cotistas, brancos e negros, uma vez na universidade acompanha o de não cotistas, confirmando que, no caso brasileiro, as políticas afirmativas têm produzido resultados positivos.

Ainda sobre educação, defendeu maiores investimentos no ensino fundamental, quando nossos maiores problemas estão no ensino infantil (o número de creches é insuficiente para atender as famílias de trabalhadoras e trabalhadores que dependem delas) e no ensino médio – no caso desse último, um problema agravado com uma reforma irresponsável e inviável aprovada pelo governo Temer. As propostas para diminuir o desemprego ou alavancar a economia talvez agradem os donos do agronegócio, os industriais e os banqueiros, mas nada dizem para quem depende de salário e carteira assinada.

Mais? Bolsonaro diz que é honesto e vai combater a corrupção, mas de partido em partido, esteve na base aliada de todos os governos desde FHC, incluindo Lula e Dilma, e só não firmou aliança com o Centrão, composto pela fina nata do fisiologismo brasileiro, porque o PSDB de Alckmin tem mais valor no mercado de troca que o PSL de Bolsonaro. Ele não é um outsider, como tenta fazer crer. Aliás: se ele não aprova seus projetos porque os colegas parlamentares o boicotam e não votam propostas que sabem ser suas, como pretende negociar com o Congresso se eleito presidente?

Meu ponto é simples: Bolsonaro deixou de ser apenas uma caricatura à medida que sua candidatura tornou-se eleitoralmente viável. Por isso, desconstruí-la se tornou uma tarefa democrática fundamental. Mas para isso, é preciso mostrar suas fragilidades programáticas (passe o exagero), porque tem se revelado cada vez menos produtivo apostar em um discurso “humanista” contra um candidato que se notabilizou, justamente, por desdenhar de qualquer “humanismo”. A saída, se há, é mostrar que, além do ódio, ele não tem nada a oferecer ao país.

terça-feira, 31 de julho de 2018

Não venham "acoxinhar" Portugal...

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Um dia destes uma amiga pediu a minha opinião sobre essa vaga migratória dos brasileiros para Portugal, em especial nos últimos anos. A resposta é simples: são todos bem-vindos, até porque precisamos de gente jovem para trabalhar e pagar impostos. A população portuguesa está envelhecida e, segundo especialistas, para manter os atuais índices de população ativa é preciso atrair 75 mil novos imigrantes adultos por ano.

O país deve estar aberto a receber gente de todo o mundo, mas no caso dos brasileiros há uma preocupação específica: as mudanças culturais que isso pode produzir. Grosso modo, há dois tipos de imigrantes brasileiros na vaga atual: os muito ricos, que procuram o país em busca de segurança e das vantagens da Europa, e os mais pobres, que são migrantes econômicos à procura de uma vida melhor.

Mas o foco do texto fica nos endinheirados com ideias coxinhas.

A CASA GRANDE - Por que falar em cultura? Porque há o risco de influências indesejáveis. Ainda recentemente uma nota de um jornal de Santa Catarina, que viralizou na internet, trouxe esta infausta notícia: “Construtoras de Lisboa estão erguendo prédios com elevadores de serviço. Elas não faziam isso desde a década de 60. Fazem agora para atender desejos de endinheirados brasileiros que invadem a capital portuguesa”, revelava o texto.

Não. É o tipo de coisa que não se deseja. E é sintomático estarmos a falar do elevador de serviço, um dos maiores símbolos do apartheid social que existe no Brasil. Não tem a ver com a cultura portuguesa. É claro que o país também tem os seus ricos, mas eles são mais moderados e moldados pela regra democrática. A ideia de que o dinheiro pode tudo não é usada de forma tão ostensiva como no Brasil.

Mas não é só. Outra nota, desta vez publicada em “O Globo”, diz que “para atender à demanda dos brasileiros, as construtoras vêm fazendo pequenas adaptações nos projetos, como a inclusão de área de serviço, quarto dos fundos e tanque”. Ora, o quarto dos fundos é o famoso quartinho da empregada, outro sinal desse apartheid social. Não por acaso li, um dia destes, uma frase incômoda: "os brasileiros são bem~vindos, mas mal-vistos".

Eis o problema. A casa grande precisa de uma senzala para ter a sua existência justificada. Os portugueses evoluíram culturalmente desde que voltaram à democracia e retroceder aos níveis das sociedades escravocratas não faz sentido. Enfim, não venham acoxinhar Portugal. Para a frente - em direção à civilização - é que se anda.

É a dança da chuva.






segunda-feira, 30 de julho de 2018

Plano Diretor ou Plano Dirigido? Para crianças de 7 anos...


POR JORDI CASTAN
Na quinta feira participei daquilo que o pessoal da SEPUD denominou "Oficina de Revisão do Plano Diretor". O evento contou com menos participação que a esperada. Metade dos lugares previstos ficaram vazios e a dita oficina pareceu mais uma divertida quermesse - ou uma improvisação cênica aberta a participação do público - do que uma oficina, para revisar o Plano Diretor. Sobrou boa vontade e faltou seriedade e organização, mas isso por estes lados não é nada novo.

Primeiro é importante ressaltar que não houve nesta oficina (e parece que tampouco nas anteriores) nenhum controle sobre quem participava de cada mesa temática. Ora, isso permitiu que várias pessoas do mesmo setor, ou até da mesma empresa, sentassem na mesma mesa e votassem os temas do seu interesse. Assim, o princípio da representatividade e da equidade não foi cumprido.

Ainda mais curioso foi que os próprios representantes comissionados da SEPUD e de outros órgãos da Prefeitura Municipal escrevessem tarjetas com os temas a serem posteriormente priorizados. E assim ao mesmo tempo que escreviam também votavam nos temas que haviam escrito. O modelo é afinado com a linha dirigista e autoritária de que tanto gostam o prefeito e sua equipe. O resultado é que a população acredita estar participando e mesmo que é ouvida. A Prefeitura cria a fantasiosa ilusão de que as oficinas, assim como as audiências públicas, são um processo aberto, democrático e participativo.

Não há rastreabilidade sobre o que foi escrito pelos participantes, nem sobre os critérios seguidos para a priorização, E, pior ainda, não houve tempo para um debate aprofundado porque cada tema só poderia ser debatido, no máximo, por 15 minutos. A pressa obrigava a cumprir o horário, pelo que não foram permitidos debates consistentes. Tudo bem ao gosto desta gestão, evidenciando cada vez mais a conhecida dificuldade dos atuais gestores para compreender e tratar temas complexos. Por isso a necessidade que qualquer tema seja apresentado de forma superficial. Se uma criança de 7 anos não consegue entender, nem o prefeito, nem a maioria do corpo técnico tampouco.

Para concluir - e para forçar ainda mais o direcionamento dos temas -, os participantes deveriam escolher unicamente três e só três tópicos. A obsessão pela simplificação chega a ser simplória. E tem como objetivo evidente evitar os debates e discussões. O resultado das ditas oficinas caso se concretize a metodologia proposta pela Prefeitura, será um exemplo de eficiência. Se não fosse uma afronta à legislação vigente, claro. Onde? No que se refere à participação popular e a cidade de direito, além de pela superficialidade da abordagem, pela falta de preparação da sociedade para poder debater sobre o tema, agravado pela pouca qualidade dos documentos e dados apresentados e a nula informação entre o que foi previsto no Plano Diretor vencido e realmente precisa ser atualizado ou revisto.

É bom lembrar que estudos consistentes, análises e textos mais extensos que três linhas escritas em um pequeno post-it são o máximo que deve caber na memória RAM dos organizadores das oficinas e da equipe mais próxima ao prefeito. Não se pode pedir muito mais que isso. Ao que parece indicar, a revisão do Plano Diretor estaria pronta, não duvidaria, que os resultados e as conclusões já estejam definidos e redigidos antes mesmo de realizar as oficinas. 

domingo, 29 de julho de 2018

Clóvis Gruner e o meu “whataboutism” (a tréplica)

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Ueba. Temos tréplica. Para entender a zaragata, recomendo que leia o meu texto (aqui) e a replica do Clóvis Gruner (aqui), publicados no Chuva Ácida... (tempo de espera)... Já leu? Ok… não ia responder, mas parece haver inúmeros equívocos em relação à minha posição e acho útil esclarecer. Então vamos lá. E, como diria Jack - The Stripper, vamos por partes (se me permitem, vou usar bullets – gráficas, não balas de revólver).

- Em primeiro lugar, parece que o Clóvis Gruner não me toma por interlocutor a sério (atenção: não há desavença, porque somos amigos há mais de três décadas)O resultado é que o meu “oponente” me acusa de estar rendido ao “whataboutism”. O quê? É a forma que os ingleses e norte-americanos encontraram para definir um fenômeno muito comum na internet. A pessoa tenta criar uma balança na discussão. Coisa do tipo: “Você fala na Nicarágua. Por que não fala de Moçambique?”. Ou seja, em vez de discutir o assunto proposto, desvia para uma discussão sobre outro tema. What about “x”? Ok... mas eu não seria tão básico.

- Outra afirmação de Clóvis Gruner, ainda no plano do whataboutism, acaba num erro rotundo. Ele diz que a minha proposta era trocar uma discussão sobre a Nicarágua e Venezuela por uma discussão sobre Moçambique. Nem de longe. A minha questão era apenas exemplificar que há outros temas para debater, para além daquele que a mídia brasileira impõe. Por que não discutir o Paraguai? Ou a Argentina. Ou o Peru? Ora, por que a mídia brasileira não tem interesse nessa agenda. Mas que só serão temas se não estivermos condicionados pela mídia mainstream (que no Brasil está a serviço da direita).

- Clóvis Gruner fez um exercício de dedução - baseado numa lógica correta, diga-se - para explicar o surgimento de Moçambique na conversa. “Talvez o fato do país ter sido colônia portuguesa até meados dos anos de 1970”, escreveu. Mas errou. A escolha de Moçambique foi apenas porque tinha sido um dos temas da reunião da CPLP, acontecida nessa altura e que, por sinal, teve a participação de Michel Temer. Imagino que a mídia brasileira tenha feito ouvidos moucos para o assunto. Nem mesmo o fato de os Estados-membros da CPLP terem aprovado oito observadores associados, entre eles países como Reino Unido e França (o que também pediria uma reflexão) parece comover a imprensa nacional. 

- Eis um fato. Clóvis Gruner tem essa tendência de estar sempre a pedir reflexões à esquerda (uma certa esquerda que não lhe desce pelo gargumilho). E é aí que os nossos caminhos se separam. Defendo a autocrítica como processo natural. Mas não a autoflagelação. Do meu ponto de vista é mais útil ir à jugular da direita. Por que não cobrar reflexões à direita? Entendo que o papel do intelectual – e não estou a citar o Clóvis – não é jogar para a torcida, mas mostrar os tomates no lugar e não se render aos ditames da mídia. Tenho repetido que não me sinto capaz de debater sobre a Venezuela, por exemplo, sem estar de posse de todos os dados. E pouca gente – ou ninguém – tem todos os dados. Temos versões. E superstições (ainda mais no Brasil). A título de comentário, tomei o lema de Karl Marx como inspiração: “de omnibus dubitandum”. Duvidar de tudo. 

- Estranhas coincidências. Neste exato dia ressurge o exemplo de um intelectual que não joga para a torcida. Faz um ano que publiquei um post no Facebook a falar de Boaventura Sousa Santos. Escrevi: “Maduro cometeu uma série de erros na Venezuela. Mas quem acompanha a imprensa internacional - em especial a portuguesa - percebe que há um massacre midiático. A questão nunca tem dois lados, é sempre o lado da oposição a prevalecer. Aí aparece o Boaventura e escreve um texto chamado ‘Em Defesa da Venezuela’. Ora, ‘defender’ a Venezuela, num momento em que a mídia é muito hostil, soa a heresia. Mas também mostra um intelectual com os tomates no lugar”. O nome do texto era “Em Defesa da Venezuela” (aqui). Sim... é uma questão de tomates. O texto de Boaventura Sousa Santos é aquele que separa os homens dos meninos do coro.

- A diferença de opiniões é compreensível. O Clóvis Gruner é professor na área de História e eu de Comunicação. É natural que o meu objeto seja a mídia e ele tente percorrer outro caminho. Mas há um lugar onde os dois campos acabam por se tocar: é que em termos de política internacional o Brasil vive um claro isolamento. E a mídia – que, recordemos, media as relações das pessoas com os fatos – tem um papel muito relevante nesse apagamento. E vou mais longe. É muito improvável entender a história destes dias sem refletir sobre a história da mídia.

Enfim, não é whataboutism

sábado, 28 de julho de 2018

Moçambique importa. Nicarágua também

POR CLÓVIS GRUNER
Na quinta-feira (26), desde suas trincheiras lusitanas, José António Baço repercutiu um “ligeiro desaguisado” que começou nas redes sociais e veio parar no Chuva. As razões e o roteiro da pequena desavença já foram contadas em seu texto, por isso as resumo brevemente. Em suma, Baço credita minha preocupação com a crise na Nicarágua – e também na Venezuela – ao que chama de uma “indicação midiática”.

Trocando em miúdos, e um pouco grosso modo, o país latino e os quase 400 cadáveres – um deles de uma brasileira, a estudante de Medicina Rayneia Gabrielle Lima – produzidos desde abril pelo governo de Daniel Ortega e Rosario Murillio, esposa de Ortega e sua vice-presidente, nos interessam (supondo que não seja apenas eu o interessado) tão somente porque estamos a seguir o que a mídia indica – e, é lícito supor, não exatamente qualquer mídia.

A atestar sua tese, Baço cobra a pouca repercussão entre nós do ataque em Moçambique, há algumas semanas, perpetrado por extremistas islâmicos, com um saldo de 20 mortos. Ante o silêncio do Brasil – que, como Portugal e Moçambique, é parte integrante da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – e dos brasileiros, pergunta: “Se é para propor uma reflexão, que tal refletir sobre uma ação conjunta dos países da CPLP em Moçambique?”.

Embora não tenha ficado claro porque ele pede que deixemos de nos ocupar com a Nicarágua para nos preocuparmos com Moçambique quando, me parece, o desejável seria nos preocuparmos com os dois, ele está certo ao chamar a atenção para nossa indiferença. Uma pesquisa breve nos sites noticiosos é suficiente para mostrar a desproporção entre os portais de Portugal e Brasil, com uma vergonhosa desvantagem para nós, na cobertura dos ataques terroristas em Moçambique.

Talvez o fato do país ter sido colônia portuguesa até meados dos anos de 1970, ajude a entender o interesse maior, em Portugal, pelo que acontece na região. Mas é igualmente correto, que um dos motivos a explicar esse descompasso é nossa óbvia ignorância em relação a quase tudo que diz respeito ao continente africano. Uma ignorância que é, em certa medida, alimentada pela pálida presença da África e seus países, mesmo os de língua portuguesa, na mídia brasileira. E também nisso Baço tem razão.

Esse outro continente, a América Latina – Mas não me parece estranho, nem apenas fruto de algum interesse escuso das mídias tradicionais, que dispensemos uma atenção maior à Nicarágua ou Venezuela e à crise política que atravessa os dois países. Crise que, entre outras coisas e mais especificamente no caso venezuelano, repercute diretamente no Brasil, que já recebeu cerca de 50 mil refugiados do regime de Maduro nos últimos dois anos.

Diferente do que sugere Baço, um posicionamento menos conformista em relação à escalada do terror de Estado na Venezuela e Nicarágua não é inócuo do ponto de vista prático. Entre outras razões, porque parte importante da legitimidade de Maduro e Ortega advêm justamente do apoio de partidos e lideranças de esquerda, que insistem em ignorar o caráter autoritário assumido por ambos os governos e o desrespeito sistemático aos direitos humanos.

O desgaste dos dois regimes não é novo, bem como os movimentos contestatórios duramente reprimidos pelas forças militares. Na Venezuela, protestos e denúncias de abuso, como prisões arbitrárias e torturas, remontam a 2014, pelo menos. Mais de 100 pessoas já foram mortas e outras tantas continuam presas. A tentativa de nivelar toda a oposição à direita comandada pelo opositor Henrique Capriles, homogeneizando-a, peca por transformar em caricatura um movimento, além de legítimo, bastante diverso em sua formação.

A situação é mais grave na Nicarágua: desde a “piñata sandinista”, a relação com a outrora revolucionária FSLN entrou em uma espiral descendente de que os protestos dos últimos meses são apenas a face mais trágica e visível. Em ambos, boa parte da oposição e das críticas parte, justamente, de grupos, intelectuais e lideranças de esquerda, incluso antigos colaboradores de Hugo Chavez e ex-guerrilheiros que participaram ativamente da revolução e do primeiro governo sandinista, após a queda do ditador Anastasio Somoza – com quem Ortega é comparado.

“Liberdade é a liberdade de quem pensa diferente” – Talvez porque esteja a pensar apenas na esquerda brasileira – o que já seria um equívoco –, Baço trata como “fazer um frete para a direita”, “lançar a esquerda num processo de autoflagelação” e “dobrar a coluna aos ditamos dos conservadores” cobrar dela uma reflexão e uma postura mais críticas. Aliás, diz, não é uma reflexão, mas uma inflexão. Acho que reside especialmente aí o cerne de nosso “ligeiro desaguisado”.

Na terça-feira da semana passada (17), o Senado uruguaio aprovou, por unanimidade, uma declaração que condena a violência e a repressão na Nicarágua. O ex-presidente José “Pepe” Mujica – principal protagonista de uma experiência democrática de esquerda e preso político durante a última ditadura uruguaia –, é um dos seus signatários. Com o título “Declaración urgente por Nicaragua”, uma carta assinada por inúmeros intelectuais e ativistas de esquerda – entre outros, Beatriz Sarlo, Alberto Acosta e Edgardo Lander – manifesta repúdio à violência estatal e os abusos cometidos contra os direitos humanos.

Menciono esses casos porque envolvem figuras públicas, algumas delas – como Mujica – bastante conhecidas. E é improvável que ao manifestarem preocupação e recusarem o autoritarismo, elas estejam a se dobrar à direita, ou simplesmente seguindo uma indicação midiática. Mas com alguma boa vontade, é possível encontrar outras inúmeras reflexões à esquerda, que sem desconsiderarem contextos e interesses geopolíticos mais amplos, escapam ao lugar comum de atribuir ao “imperialismo ianque” ou a “ditames conservadores” a crise em que os dois países estão mergulhados.

Em seu discurso no Senado no dia 17, Mujica disse que se sentia mal “porque conheço gente tão velha como eu, porque recordo nomes e companheiros que perderam a vida na Nicarágua lutando por um sonho. Sinto que algo se foi, como em um sonho, se desviou, caiu na autocracia, e entendo que aqueles que antes foram revolucionários perderam o sentido de que há momentos na vida para dizer `vou embora´”. Não é quando reivindica sua tarefa crítica, mas quando se recusa a denunciar a violência e opta por legitimar a barbárie em nome de um “bem maior”, que a esquerda “faz frete para a direita”. E convenhamos, a gente tem feito isso com uma irritante frequência ultimamente.