quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Essa nossa obtusa e anônima cordialidade


POR CLÓVIS GRUNER

No dia 19 de setembro de 2014, Hiago Augusto Jatobá de Camargo, de 21 anos, cabo eleitoral da campanha de Dilma Rousseff, do PT, foi esfaqueado durante uma briga na praça da Ucrânia, em um bairro nobre de Curitiba, durante uma discussão com outros cabos eleitorais e um morador local que chutara uma das placas da candidata. Embora a polícia tenha descartado, rápido demais, a hipótese de crime com motivação política, a morte de Hiago foi um dos primeiros e mais trágicos indícios de que o acirramento não era algo restrito ao ambiente eleitoral. 

O clima de hostilidade já afetou gente à direita e à esquerda – de Janaína Paschoal a, mais recentemente, Letícia Sabatella –, em graus variados de violência. Uma de suas faces mais visíveis não é necessariamente nova, embora esteja a ganhar contornos cada vez mais sombrios. Falo de uma moral e uma conduta conservadoras (porque, a rigor, não se pode falar de um “pensamento conservador”), franca e abertamente reacionárias, responsáveis diretas pela proliferação da ignorância, o empobrecimento do debate e do ambiente políticos, a disseminação da truculência e a legitimação da intolerância como práticas cotidianas.

É interessante (e não deixa de ser também um pouco incômodo) que depois de oito décadas o “homem cordial”, o tipo ideal weberiano forjado por Sérgio Buarque de Holanda em seu “Raízes do Brasil”, ainda nos sirva como uma categoria de análise capaz de iluminar aspectos do comportamento político do brasileiro médio de hoje. Em linhas gerais, a cordialidade, segundo Sérgio Buarque, sintetiza nossa distância e indiferença em relação aos ritos que caracterizam a vida pública, mantendo a supremacia dos valores privados e domésticos. 

No Brasil, essa separação rígida entre as esferas pública e privada constitui-se na contramão dos valores liberais que estão no cerne das democracias modernas. Historicamente, foi a “vida doméstica” quem forneceu o modelo no interior do qual foram forjadas nossas composições sociais. E não há nada de positivo nisso: fundada nos laços e arranjos familiares, a cordialidade se estendeu até o espaço público, precarizando-o ao subordiná-lo aos interesses privados e familiares. 

O custo ético e político dessa subordinação é altíssimo. Porque no mundo moderno a palavra “público” não designa apenas “uma região da vida social localizada em separado do âmbito da família e dos amigos íntimos”, de acordo com o sociólogo americano Richard Sennett. Mas também, e principalmente, a possibilidade de conviver com uma diversidade significativa de pessoas pertencentes a classes, gêneros, etnias, religiões, hábitos, etc..., distintos dos nossos e daqueles que nos são próximos e íntimos. Ao abolirmos a distância entre as esferas privada e pública, fragilizamos nossa capacidade de conviver com o outro e passamos a tratar os assuntos e problemas públicos como se fossem, nas palavras de Sennett, “questões de personalidade”. 

“Em verdade, temos medo” – O resultado está aí, nas ruas, redes socais e caixas de comentários de blogs e sites de notícias. Em debates, tornou-se corrente o uso de termos como “idiota”, que eximem quem o utiliza de argumentar com o mínimo de razoabilidade. Se o assunto são os direitos humanos e das chamadas minorias – negros, gays e mulheres, principalmente –, os parâmetros para o diálogo, invariavelmente, reafirmam a incapacidade de compreender e conviver com as razões e motivações do outro em uma arena comum de coexistência, com a prevalência do “eu não gosto” ou o “eu não concordo” como arremedos de argumentação. 

Fala-se na precariedade das penitenciárias, na violência urbana e policial ou contra a redução da maioridade penal, e não faltará quem sugira “levar para casa” criminosos maiores ou menores de idade, porque não ocorre a quem o sugere que a segurança é um problema público, cujas soluções não são domésticas nem familiares. Gente que mal sabe localizar a Venezuela no mapa se arvora uma autoridade no país e em seus problemas. São os mesmos que falam em “meritocracia” e “Estado mínimo” quando o que está em jogo é assegurar direitos básicos e elementares à população mais fragilizada, mas não hesitam em apoiar o Estado no uso do aparato militar e repressivo contra movimentos sociais, por exemplo.

Nas páginas iniciais de “Kaputt”, o misto de reportagem e ficção escrito pelo italiano Curzio Malaparte nos anos de 1940 (e adaptado, no Brasil, para uma graphic novel simplesmente maravilhosa pelo quadrinista Guazzelli), o narrador apresenta os alemães como indivíduos amedrontados, que matavam e destruíam por medo: “Os alemães têm medo. (...) têm medo de tudo que é vivo, de tudo que é vivo fora deles. Medo de tudo que é diferente. (...) Têm medo sobretudo dos fracos, dos indefesos, dos enfermos, dos velhos, das crianças...”. 

Foi a gestão desse medo que produziu indivíduos precarizados e atomizados, dispostos a legitimar a barbárie nazista, ainda que pela indiferença. E pelo menos desde a análise do julgamento de Eichmann pela filósofa alemã Hannah Arendt, tornou-se mais ou menos comum a afirmação de que os regimes totalitários e autoritários – além do próprio nazismo, o stalinismo e outros tantos – sobreviveram não apenas pelo poder da força, mas pela sua capacidade de mobilizar afetos e lealdades do chamado “cidadão comum”, honesto, trabalhador e de bem. 

E ainda que se possa falar de uma “cultura do medo”, não devemos perder de vista que se trata, uma vez mais, de organizar o espaço público a partir de afetos privados. Há diferentes motivos que explicam essa permanência, atualizada, de nossa cordialidade, e a sistemática política do esquecimento que vigora desde o processo de abertura, no final dos anos de 1970, é um deles. O homem cordial brasileiro do século XXI, como o alemão dos anos de 1940, tem medo. E sabemos muito bem que o medo pode gestar e parir bem mais que a estupidez verborrágica dos comentários anônimos.

8 comentários:

  1. Pois é, toda essa falta de educação, que vem dos simpatizantes da direita e da esquerda (aliás, de onde partem as batalhas campais com direito a depredação de bens públicos e privados, além da compra de “correligionários” e lanchinho de mortadela?), poderia diminuir se houvesse investimentos federeis maciços em EDUCAÇÃO, SAÚDE e SEGURANÇA, sobretudo na última década, através de um partido que foi alçado ao poder porque nos últimos trinta anos de sua existência encheu o saco de todos e impediu, inclusive, o avanço do país em várias áreas, tudo em troca de um “oportunidade” para “fazer a diferença”.
    Tá aí! Anota isso nos anais da história.

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    1. Vai carpir uma roça.Hoje estou cursando uma faculdade graças a um campus do IFSC que foi inaugurado no primeiro mandato da Presidenta.

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    2. É, Anônimo... busque o número de universidades federais criadas no país de 1500 a 2002 e de 2002 a 2015.

      Claro que não é um mar de rosas, mas não dá pra negar o avança.

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  2. Você está triplamente enganado.

    Primeiro, porque os investimentos em educação nos últimos governos, especialmente nas gestões Lula, foram significativos tanto no ensino superior - competência do governo federal - como na rede básica que, mesmo sem ser da alçada federal, recebeu investimentos vindos de Brasília por meio de parcerias com os governos estaduais e municipais.

    Segundo, porque "EDUCAÇÃO, SAÚDE e SEGURANÇA" são de competência compartilhada, então não se pode responsabilizar apenas uma esfera, a federal, pelo que é também responsabilidade de estados e municípios. Você deveria saber disso, mas pelo jeito não sabe. Fica a dica: o Google existe também para que a gente não pareça assim tão mal informado.

    Por fim e por último, você está enganado porque acesso à educação formal não é, necessariamente, garantia e inteligência política e sensibilidade social. Você, por exemplo, é letrado.

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    1. É sempre essa a desculpa, "a competência é de outras esferas federais", mas qual delas retêm a maior fatia dos impostos? E, convenhamos, se houvesse o mínimo interesse do poder executivo federal não haveria restrição do parlamento em abrir exceções, mesmo que através de emendas provisórias, em investimentos providos da união nas áreas da educação, saúde e segurança. Ué, eles não fizeram isso com a lei das cotas raciais que rasga o artigo quinto da constituição?

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    2. Como eu disse, mas parece que você ignorou, nas gestões petistas e, particularmente, nos governos Lula, investimentos em educação foram feitos, mais do que compete ao governo federal.

      Agora cabe a você cobrar do Temer que ele continue a fazer aquilo para o que ele foi eleito, que é implementar o plano de governo da chapa que o elegeu.

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  3. Até 2007, Santa Catarina tinha somente uma Escola Técnica Federal inaugurada em 1909 na capital. De 2007 até 2014 foram construídas 23 em todo o estado e mais de 400 em todo o país. Quem quiser conhecer a estrutura de uma delas, basta entrar no portal do IFSC e conhecer por exemplo a de Joinville, que não fica devendo nada a FEJ/UDESC, tanto no quesito equipamentos de alta tecnologia, quanto no que diz respeito ao nível dos professores, doutores inclusive. Esses comentários rasos sobre a falta de investimentos na educação durante os governos Lula/Dilma, é mais um senso comum disseminado pela rádio peão, por gente que como o Clóvis bem disse, não sabe nem apontar a Venezuela no mapa.

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  4. Parabéns pela análise. Uma prova que o pensamento de Sérgio Buarque sobrevive ao tempo. Infelizmente o espectro do homem cordial não é o tipo de fenômeno social datado, daqueles que desaparecem com o tempo. Aliás acho que daria para criar um catálogo da cordialidade contemporânea. Abs.
    Záia Freire

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