POR CLÓVIS GRUNER
Na mesma semana em que a hashtag #somostodosmacacos viralizou
nas redes sociais, em reação a atitude de um torcedor espanhol que jogou uma banana para o
jogador brasileiro Daniel Alves; o juiz Marcelo Matias Pereira, da 10ª Vara Criminal da Justiça do
Estado de São Paulo, inocentou o humorista Danilo Gentili, acusado de
racismo por ter, no Twitter, chamado um internauta negro, Thiago Ribeiro, de “macaco”
e lhe oferecido uma banana, conclamando seus seguidores a fazer o mesmo. A
alegação do magistrado, de que Gentili, mesmo tratando o internauta agressivamente
não pretendia ofendê-lo, tendo apenas “a intenção de fazer rir”, parece contrastar
com a onda de indignação que varreu a internet em solidariedade ao jogador do
Barcelona.
Mas a apenas aparente contradição revela a lógica pervertida
da maioria dos repentinamente convertidos ao ideário anti-racista, bem como a
perversão da trajetória de luta contra o racismo no Brasil. Em outra ocasião,
tratei do humor dito “politicamente incorreto”, do qual Danilo Gentili é
um dos principais expoentes, a reforçar diuturnamente nossos muitos
preconceitos; não pretendo voltar ao assunto. Mas a absolvição do humorista,
acusado de praticar justamente aquilo que inúmeros internautas, entre eles uma
variedade de celebridades e subcelebridades, tanto condenaram – chamar negro de
macaco e oferecer-lhe uma banana – sem que absolutamente nenhum deles manifestasse
mesmo um esboço de repúdio, nem agora nem na ocasião da agressão, é reveladora.
O silêncio tácito e cúmplice reforça a impressão que a solidariedade
em rede deveu-se mais aos interesses do marketing de oportunidade que,
necessariamente, ao engajamento no combate às muitas formas de racismo que
grassam no país. Não bastasse a atitude de Neymar ter sido fruto de uma “sacada
publicitária” da agência Loducca, e não um gesto espontâneo de indignação,
o oportunismo de Luciano Huck conseguiu lucrar com um problema delicado e
grave, que afeta a vida de milhares de brasileiros – mas certamente não a dele –
vendendo pela bagatela de 69 dinheiros as camisetas da campanha.
Em jogo estava muito mais a imagem que muitos dos
protagonistas quiseram projetar de si do que, necessariamente, a repulsa contra
um racismo que, é bastante provável, a maioria deles
sequer admita existir. Nesse sentido, não deixa de ser curioso que o elenco de
rostos a exibir ou comer bananas era majoritariamente branco. Gente que faz
questão de manter uma calculada indiferença quando o racismo denunciado
nas redes sociais à preço de banana se manifesta não contra um jogador de time europeu, mas afeta
indivíduos anônimos, submetidos cotidianamente às muitas formas de
violência física e simbólica que o caracterizam – como ser constantemente vítima da violência policial ou chamado de macaco por uma subcelebridade no Twitter. Entre a
realidade e o espetáculo, celebridades e subcelebridades preferiram, uma vez
mais, o espetáculo. Não deixa de ser coerente.
REFORÇAR O ESTEREÓTIPO – Desde o começo a campanha me
incomodou. Desconfiava do excesso de boas intenções, da rapidez com que a
denúncia tomou as redes sociais. Para além de todo oportunismo, do bom mocismo de
fachada e de outros “ismos”, achei-a bizarra pelo simples
fato de reforçar um lugar comum do discurso racista. Afinal,
o ideal de todo discurso e gesto que se pretendem críticos não deveria ser,
justamente, confrontar o racismo desconstruindo seus estereótipos, ao invés de
reafirmá-los, mesmo que na base da boa intenção?
O ato falho – ou talvez nem tão falho
– reforçou, em milhares de retweets e compartilhamentos, um comportamento e um
discurso comuns no tratamento dispensado ao negros e demais “minorias”:
piadas ofensivas; comentários e atitudes estigmatizantes; salários
diferenciados; humilhações públicas; anúncios de emprego a pedir “pessoas de
boa aparência”; olhares oblíquos. Particularmente no caso do racismo, o uso
recorrente da imagem do “macaco” reafirma um estigma que desumaniza
negros e negras: subjacente a ela está o discurso que lhes atribui um atavismo
incontornável, com toda a carga de inferiorização – física, psíquica,
intelectual, moral, etc... – que isto implica. A comparação de negros a macacos,
pouco importa o contexto em que ela aparece e as intenções que a motivam, é racista.
Ela reproduz estigmas, há até pouco tempo considerados científicos e hoje presentes
no chamado senso comum, reiterados principalmente pelas linguagens midiáticas e
fortemente assentados em nosso imaginário e percepções de mundo.
Além de histórica e moralmente ofensiva, a aproximação despolitiza décadas de luta contra o racismo, tratando-o como
coisa que se resolve com alguns
tweets e outros tantos
likes; um espetáculo,
enfim. E é também significativo que algumas das vozes mais autorizadas entre as
lideranças negras tenham, desde o primeiro momento, rechaçado-a. Isso não
significa conferir aos negros o monopólio do discurso anti-racista,
desautorizando quem não o é de denunciar o preconceito e a discriminação: fosse
isso e eu, homem, branco e hetero, não poderia manifestar-me contra o racismo,
o machismo e a homofobia, por exemplo, nem solidarizar-me com as muitas
manifestações políticas que visam, justamente, combatê-los.
Por outro lado, há determinadas experiências impossíveis de
serem narradas por mim que, homem, branco e hetero, nunca sofri nem senti os
efeitos deletérios da violência discriminatória. Dito de outra forma, posso
manifestar minha solidariedade, mas jamais poderei falar pelo outro: a empatia pelo
sofrimento alheio não me autoriza a falar em outro nome se não em meu próprio. As
celebridades, subcelebridades e seus seguidores que se imaginaram macacos e
exibiram suas bananas se equivocaram ao imaginar que o podiam e em tentar traduzir
num gesto despolitizado e vazio séculos de humilhação. Além, claro, de vender
camisetas.