sábado, 3 de maio de 2014

Sobre a Comissão Municipal da Verdade e o Dia dos Trabalhadores


POR FELIPE SILVEIRA

É bem provável que ainda neste ano seja criada a Comissão Municipal da Verdade em Joinville. Uma vitória dos movimentos sociais, que fizeram a proposta no evento de comemoração dos 35 anos do Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Bráz (CDH), do qual participou o coordenador da Comissão Estadual da Verdade. Escrevi sobre isso há cerca de um mês.

A comissão municipal está próxima porque, de fato, os vereadores Adilson Mariano e Rodrigo Fachini levaram a proposta a sério e, na quarta-feira (29), foi realizada uma reunião para debater a formação da futura comissão. Trata-se de um passo fundamental de resgate da memória – muitas vezes apagada de propósito - e conscientização sobre quem somos enquanto comunidade. Afinal, somos resultado do passado.

Sobre o resgate da memória, um exemplo bem claro e praticamente extremo foi dado pela professora e pesquisadora Iara Andrade Costa, chefe do Departamento de História da Univille. Presente na reunião sobre a comissão municipal, ela contou que vários jornais do ano de 1964 simplesmente desapareceram do Arquivo Histórico Municipal. Um apagamento escancarado da memória, promovido por aqueles que tem muito do que se envergonhar, certamente.

De fato, muitos não querem que se saiba sobre o passado recente. Muitos dos beneficiados ainda gozam os privilégios dos anos de chumbo. Aqueles anos em que “poucos” enriqueceram ao lado do governo militar, enquanto o povo explorado migrava do interior do Paraná e de Santa Catarina para cidades como Joinville, onde abundava emprego no chão de fábrica para quem “se comportasse direitinho”. Também escrevi sobre a coisa grotesca que é o “milagre econômico” aqui.

E quem lucrou continua a lucrar com o silêncio do povo que, na marra, aprendeu a ficar calado e assim se acostumou. Em Joinville, como em muitos outros lugares, tentam roubar o Dia dos Trabalhadores e colocar no lugar o “dia do trabalho”, esse troço tão glorificado por aqui. Não é à toa que as emissoras de televisão promovem grandes festas para comemorar o TRABALHO.

Ignora-se, assim, a origem do dia dos trabalhadores e a lutas dos mesmos por direitos básicos, assim como são ignoradas as lutas históricas e atuais da classe trabalhadora. O mundo, porém, pega fogo. Em todo o mundo os trabalhadores e oprimidos estão nas ruas, enfrentando tudo e todos. As “primaveras” ao redor do mundo, os occupy, as jornadas de junho, os garis do RJ...

Até dá pra entender quem faz de tudo para apagar a memória.
Além da vergonha, o medo...

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Yes, nós temos bananas!


POR CLÓVIS GRUNER

Na mesma semana em que a hashtag #somostodosmacacos viralizou nas redes sociais, em reação a atitude de um torcedor espanhol que jogou uma banana para o jogador brasileiro Daniel Alves; o juiz Marcelo Matias Pereira, da 10ª Vara Criminal da Justiça do Estado de São Paulo, inocentou o humorista Danilo Gentili, acusado de racismo por ter, no Twitter, chamado um internauta negro, Thiago Ribeiro, de “macaco” e lhe oferecido uma banana, conclamando seus seguidores a fazer o mesmo. A alegação do magistrado, de que Gentili, mesmo tratando o internauta agressivamente não pretendia ofendê-lo, tendo apenas “a intenção de fazer rir”, parece contrastar com a onda de indignação que varreu a internet em solidariedade ao jogador do Barcelona.

Mas a apenas aparente contradição revela a lógica pervertida da maioria dos repentinamente convertidos ao ideário anti-racista, bem como a perversão da trajetória de luta contra o racismo no Brasil. Em outra ocasião, tratei do humor dito “politicamente incorreto”, do qual Danilo Gentili é um dos principais expoentes, a reforçar diuturnamente nossos muitos preconceitos; não pretendo voltar ao assunto. Mas a absolvição do humorista, acusado de praticar justamente aquilo que inúmeros internautas, entre eles uma variedade de celebridades e subcelebridades, tanto condenaram – chamar negro de macaco e oferecer-lhe uma banana – sem que absolutamente nenhum deles manifestasse mesmo um esboço de repúdio, nem agora nem na ocasião da agressão, é reveladora.

O silêncio tácito e cúmplice reforça a impressão que a solidariedade em rede deveu-se mais aos interesses do marketing de oportunidade que, necessariamente, ao engajamento no combate às muitas formas de racismo que grassam no país. Não bastasse a atitude de Neymar ter sido fruto de uma “sacada publicitária” da agência Loducca, e não um gesto espontâneo de indignação, o oportunismo de Luciano Huck conseguiu lucrar com um problema delicado e grave, que afeta a vida de milhares de brasileiros – mas certamente não a dele – vendendo pela bagatela de 69 dinheiros as camisetas da campanha.

Em jogo estava muito mais a imagem que muitos dos protagonistas quiseram projetar de si do que, necessariamente, a repulsa contra um racismo que, é bastante provável, a maioria deles sequer admita existir. Nesse sentido, não deixa de ser curioso que o elenco de rostos a exibir ou comer bananas era majoritariamente branco. Gente que faz questão de manter uma calculada indiferença quando o racismo  denunciado nas redes sociais à preço de banana se manifesta não contra um jogador de time europeu, mas afeta indivíduos anônimos, submetidos cotidianamente às muitas formas de violência física e simbólica que o caracterizam – como ser constantemente vítima da violência policial ou chamado de macaco por uma subcelebridade no Twitter. Entre a realidade e o espetáculo, celebridades e subcelebridades preferiram, uma vez mais, o espetáculo. Não deixa de ser coerente.

REFORÇAR O ESTEREÓTIPO – Desde o começo a campanha me incomodou. Desconfiava do excesso de boas intenções, da rapidez com que a denúncia tomou as redes sociais. Para além de todo oportunismo, do bom mocismo de fachada e de outros “ismos”, achei-a bizarra pelo simples fato de reforçar um lugar comum do discurso racista. Afinal, o ideal de todo discurso e gesto que se pretendem críticos não deveria ser, justamente, confrontar o racismo desconstruindo seus estereótipos, ao invés de reafirmá-los, mesmo que na base da boa intenção?

O ato falho – ou talvez nem tão falho – reforçou, em milhares de retweets e compartilhamentos, um comportamento e um discurso comuns no tratamento dispensado ao negros e demais “minorias”: piadas ofensivas; comentários e atitudes estigmatizantes; salários diferenciados; humilhações públicas; anúncios de emprego a pedir “pessoas de boa aparência”; olhares oblíquos. Particularmente no caso do racismo, o uso recorrente da imagem do “macaco” reafirma um estigma que desumaniza negros e negras: subjacente a ela está o discurso que lhes atribui um atavismo incontornável, com toda a carga de inferiorização – física, psíquica, intelectual, moral, etc... – que isto implica. A comparação de negros a macacos, pouco importa o contexto em que ela aparece e as intenções que a motivam, é racista. Ela reproduz estigmas, há até pouco tempo considerados científicos e hoje presentes no chamado senso comum, reiterados principalmente pelas linguagens midiáticas e fortemente assentados em nosso imaginário e percepções de mundo.

Além de histórica e moralmente ofensiva, a aproximação despolitiza décadas de luta contra o racismo, tratando-o como coisa que se resolve com alguns tweets e outros tantos likes; um espetáculo, enfim. E é também significativo que algumas das vozes mais autorizadas entre as lideranças negras tenham, desde o primeiro momento, rechaçado-a. Isso não significa conferir aos negros o monopólio do discurso anti-racista, desautorizando quem não o é de denunciar o preconceito e a discriminação: fosse isso e eu, homem, branco e hetero, não poderia manifestar-me contra o racismo, o machismo e a homofobia, por exemplo, nem solidarizar-me com as muitas manifestações políticas que visam, justamente, combatê-los.

Por outro lado, há determinadas experiências impossíveis de serem narradas por mim que, homem, branco e hetero, nunca sofri nem senti os efeitos deletérios da violência discriminatória. Dito de outra forma, posso manifestar minha solidariedade, mas jamais poderei falar pelo outro: a empatia pelo sofrimento alheio não me autoriza a falar em outro nome se não em meu próprio. As celebridades, subcelebridades e seus seguidores que se imaginaram macacos e exibiram suas bananas se equivocaram ao imaginar que o podiam e em tentar traduzir num gesto despolitizado e vazio séculos de humilhação. Além, claro, de vender camisetas.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Trabalhar dá muito trabalho


POR JOSE ANTÓNIO BAÇO

Gente, estes últimos dias têm sido muito bons. É que aqui na terrinha tivemos dois feriados nas duas últimas semanas e amanhã vem outro (para todos nós). Que crise, que nada. Têm sido tempos de relax, de dolce far niente e de manter o cérebro a vadiar. Mas acontece que cabeça vazia é a oficina do diabo. Aliás, foi São Jerônimo quem avisou, por outras palavras:

       - Trabalha em algo, para que o diabo te                                encontre sempre ocupado.

Mas em meio a essa malemolência toda, Batman e Robin, os meus dois neurônios bêbados, ficaram a ter ideias estranhas. 
-       Huuummm. O trabalho é aquela coisa chata que acontece no meio da diversão.

Bem... a esta hora imagino que haja leitores e leitoras a torcer o nariz e a me chamar de vagabundo (pode ser, mas sou um vagabundo que trabalha muito). E não deixa de ser irônico que as pessoas nunca questionem o trabalho, que em outros momentos da história já foi visto como uma maldição, uma vergonha. É só lembrar que os nobres, antes da queda do feudalismo, tinham pavor a pegar no duro.

O leitor sabe, por exemplo, de onde surgiu aquele hábito dos ricos, que esticavam o dedo mindinho sempre que seguravam uma xícara? Era um forma de mostrar que eram diferentes dos trabalhadores que, por terem as mãos grossas e calejadas do trabalho, não conseguiam estender o tal dedinho. Viu? Cabo de enxada também é cultura.

UM DEFUNTO NA SOCIEDADE - Para que o leitor não fique aí a imprecar contra a minha pessoa, não sou apenas eu a questionar o trabalho. E apresento aqui um excerto de um texto de Paul Lafargue, genro de Karl Marx (o velho barbudo, por sinal, achava que a emancipação do homem viria justo pelo trabalho):

-       Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho.

Aliás, Lafargue relembra que o trabalho foi um castigo de Deus, com aquela coisa do “suor do teu rosto”. Não concorda? Pois fique a saber que há opiniões piores. E atuais. O Grupo Krisis, por exemplo, diz que o trabalho é um defunto que domina a sociedade.

-       A produção de riqueza desvincula-se cada vez mais, na sequência da revolução microeletrônica, do uso de força de trabalho humano - numa escala que há poucas décadas só poderia ser imaginada como ficção científica. Ninguém poderá afirmar seriamente que este processo pode ser travado ou, até mesmo, invertido. A venda da mercadoria ‘força de trabalho’ será no século XXI tão promissora quanto a venda de carruagens de correio no século XX.

Os homens do Krisis pegam pesado. E dizem também que “quanto mais fica claro que a sociedade do trabalho chegou a seu fim definitivo, tanto mais violentamente este fim é reprimido na consciência da opinião pública”. Ooops!

Não adianta. Esqueçam essa coisa de pleno emprego, porque é sol de pouca dura. Quem viver verá.

domingo, 27 de abril de 2014

As tuitadas matinais do prefeito

POR JORDI CASTAN

A cada manhã, os seguidores de @UdoDohler recebem suas mensagens de autoajuda no Twitter. O prefeito de Joinville assume seu "alter ego" e se converte em um "Paulo Coelho" sambaquiano. Alguns temas são recorrentes. Não faltam conselhos, frases de pensadores conhecidos, agradecimentos e críticas mais ou menos veladas.

Ultimamente, o foco das suas críticas  tem sido "os de sempre", "os que não querem ver o desenvolvimento da cidade". O prefeito não identifica quem são "os de sempre" e isso tem dado pé a diversas teorias das mais curiosas. Há quem ache que ele esta se referindo aos partidos que, na última eleição, se agruparam na coligação KCT, aí se incluem o PSDB, o PT e o PSD. Outros acham que está a se referir às chamadas viúvas do PT. 

Leitores mais atentos identificam em "os de sempre" pessoas do seu próprio partido, o PMDB, algumas enquistadas na administração municipal desde antes de Joinville deixar de ser colônia. São eles os que, com sua incompetência, torpedeiam a gestão desde dentro. Atrasam a inauguração de obras públicas, cometem erros crassos nos projetos e ocasionam graves prejuízos à cidade. E têm perdido prazos para buscar recursos vitais para Joinville. Há os que chegam sistematicamente tarde às reuniões, marcadas ao alvorecer.

Outros vivem dando declarações desafortunadas e que a realidade e a luz do sol desmentem poucas horas depois. E, claro, acabam pondo em xeque toda a credibilidade da gestão, dizendo e desdizendo-se na mesma velocidade em que muda a forma das nuvens. Pior que isso tudo? Não há força humana capaz de fazer que concluam - no prazo e corretamente - qualquer das licitações em andamento, seja a do transporte coletivo, a do estacionamento rotativo, a dos móveis e equipamentos do restaurante popular, a dos parques do Fonplata e tantas outras que atrasam o desenvolvimento de Joinville.



"Os mesmos de sempre que não querem ver uma cidade melhor" podem ser também identificados entre os vereadores que votam qualquer projeto que venha do Executivo, sem cumprir prazos regimentais, sem analisá-lo adequadamente, sem promover o amplo debate com a sociedade e permitindo, com a sua torpeza, que a justiça conceda liminares, obrigando que todos os processos tenham que ser refeitos corretamente.

E não só os vereadores poderiam estar nesse grupo. Também poderíamos incluir os que prometeram ao prefeito aprovar a LOT antes dessa ou daquela data. Ou os que insistem em cometer reiteradamente os mesmos erros: marcam audiências públicas que não cumprem a lei, para ver aprovada, de forma expedita e sem permitir a efetiva participação da população, uma lei que se tivesse sido aprovada na sua redação original só traria benefícios para "os mesmos de sempre".

Erraria o prefeito se, ao se referir aos "mesmos de sempre", estivesse se referindo, mesmo que indiretamente, ao grupo de associações de moradores que, de forma sistemática, não pedem outra coisa a não ser que a lei seja cumprida. Que os joinvilenses tenham acesso a informações transparentes e precisas. Que sejam feitos - e apresentados no prazo -, os estudos técnicos a provar e justificar as mudanças que a LOT propõe. Que informem quem comprou áreas de terra em áreas rurais recentemente, com o objetivo de se beneficiar com a valorização pelo aumento do perímetro urbano, se há doadores de campanha nessa relação, a quem interessa permitir a instalação de indústrias e atividades de alto potencial poluidor ou de geração de trânsito junto a áreas exclusivamente residenciais.

De que forma espigões verticais de mais de 20 pavimentos impactarão na insolação e na ventilação dos imóveis próximos? Qual é o plano de mobilidade previsto para Joinville e como as Faixas Viárias previstas na LOT afetam a mobilidade atual e futura da cidade? Seria um erro grave! Porque são justamente estes os setores da sociedade que querem uma cidade melhor e lutam por ela. E o prefeito faria bem em começar a escutá-los. Ganharia ele, ganharia Joinville. E melhoraria muito a qualidade das suas tuitadas matinais.


sexta-feira, 25 de abril de 2014

The Walking Greve - O Retorno.


Leis para velhinhas, carolas e cretinos

POR FELIPE SILVEIRA

Algumas leis são criadas para agradar velhinhas e carolas. É o caso das leis Schroeder e Peixer. Uma proíbe o consumo de bebidas alcoólicas em logradouros públicos e a outra proíbe a venda de bebidas alcoólicas e não alcoólicas em latas e garrafas de vidro em eventos públicos. Leis que tem tudo a ver com a tradição de Joinville: retrógrada, conservadora, bisbilhoteira, frígida...

Em Joinville é praticamente proibido andar na rua. Exceto se for na tal da rua do lazer, “lugar da família”. Se está na rua, na rua de verdade, aqui pensam, é vagabundo. Exceto se for em algum evento como o stammtisch, onde todos vigiam todos, competindo pra ver quem pode ostentar mais.

A diversão do joinvilense sempre foi privada, vigiada, controlada. As empresas que cresceram no período da ditadura civil-militar, com o dinheiro do povo espoliado, construíram grandes espaços de diversão e lazer para os funcionários (com o dinheiro deles, é óbvio). Quadras esportivas, restaurante, parquinho para as crianças... tudo estava ali para o funcionário levar a família durante a hora de folga. Ali, onde o patrão poderia ficar de olho, e o cagueta também.

Certas práticas permanecem. A vigilância e a caguetagem, fortemente. A política voltada aos interesses da classe dominante também. Ora, se tomar uma cerveja já é razão para ser mal visto, imagina pensar diferente. Política para agradar velhinhas, carolas e interessados em manter as coisas como estão. Pobres velhinhas que entram de gaiato.

Em uma entrevista a um programa esportivo, um dos vereadores explicou a lei, deixando bem claro que ela se destinava a inibir o comportamento de um certo tipo de grupo que ele e os radialistas já conheciam. Acho, só acho, que alguém na avenida Hermann Lepper curte a ideia de higienização social...

Com o tempo a sociedade passa a ter vergonha de certos costumes e práticas passadas, como a escravidão e a ditadura. Certamente teremos vergonha de certos vereadores e suas leis para agradar velhinhas, carolas e certos tipos de cretinos.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

A persistência dos vaga-lumes


POR CLÓVIS GRUNER

Revi esses dias “Febre do rato”, filme de 2011 do diretor pernambucano Claudio Assis. Quando do seu lançamento, o crítico Inácio Araújo afirmou tratar-se de um filme “feito porque tem algo a dizer, não porque tem um negócio a fazer”. A frase me parece sintetizar não apenas este, mas a breve e intensa filmografia de Assis, composta de alguns curtas e outros dois longas: “Amarelo manga”, de 2002; e “Baixio das bestas”, de 2006. À mesma época, li uma crítica comparado-o a Glauber Rocha, aproximação não me parece pertinente: Glauber Rocha e o Cinema Novo, Glauber principalmente, tinham uma dicção politizante, um indisfarçável tom messiânico em sua pretensão a fazer do cinema uma experiência conscientizadora.

O cineasta pernambucano está mais próximo do Cinema Marginal, contemporâneo do Cinema Novo mas, diferente deste, despretensioso, debochado, iconoclasta, sem por isso renunciar à sua dimensão crítica e incômoda. Aliás, arrisco dizer que Assis é, no cinema brasileiro atual, o principal herdeiro de Rogério Sganzerla, que soube como poucos transitar entre a erudição e o escracho, articular o exame crítico e o riso cínico. Na trilogia iniciada com “Amarelo manga” tais elementos se articulam atravessados por algumas características comuns: da paisagem pernambucana – a capital, Recife, em “Amarelo...” e “Febre...”, a Zona da Mata em “Baixio...” –; a alguns “atores fetiches”; passando pelo olhar que procura apreender as vidas em risco, experiências e vivências marginais, não são poucos os elementos comuns que corroboram para a sensação de que um filme se desdobra em outro, uma história encontra outra.

Por outro lado, cada película carrega especificidades. Em “Amarelo...” são as múltiplas realidades e possibilidades de sobrevivência em uma realidade urbana precária o foco de interesse. Os personagens, em sua maioria vivendo no ou em torno ao Texas Hotel, tem suas existências marcadas pela violência em suas muitas formas – institucional, econômica, social, simbólica, etc. –; se resistem e sobrevivem a ela o fazem mais por inércia e necessidade. Trata-se de um universo quase estático, praticamente imóvel, incapaz de se transformar e de autorizar qualquer mudança em suas personagens: da primeira à última cena, há uma pobreza, um desamparo, uma impotência que nada nem ninguém podem mudar.

Esta opção é radicalizada em “Baixio das bestas”, dos três o mais contundente, cru em sua violência desmedida e sem vergonha, mas que pouco tem a ver com a estetização da violência que é marca de parte significativa do cinema brasileiro recente, de “Cidade de Deus” a “Tropa de elite”. Ao longo de pouco mais de uma hora, somos confrontados com espancamento de mulheres, exploração de menores, pedofilia, sodomia, estupro... Em certo momento, o personagem de Matheus Nachtengaele nos provoca: “Tá sentindo um cheiro estranho? É a podridão do mundo”. Eis, em uma pergunta e sua resposta, aquilo que o filme se propõe mostrar.

RECUSA DO SERVIR – “Febre do rato” é diferente. Há a periferia recifense e os despossuídos que nela habitam. Mas há também uma disposição a afirmar a vida para além de qualquer risco. Zizo – interpretado por Irandhir Costa –, personagem central da história, não é apenas um poeta, mas um poeta que fez de sua vida uma obra de arte: vive intensa e plenamente o que pensa, sente e escreve. Em torno a ele, bebendo cachaça e cerveja, fumando maconha, trepando, orbitam personagens que experimentam, igualmente, modos alternativos de existência. Amigos e libertários, eles são “pobres, pontiagudos, anárquicos”, na feliz definição de Inácio Araújo. A seu modo, e porque vivem e experimentam cotidianamente uma violência que insiste em condená-los à marginalidade, ao risco, à precariedade, o coveiro Pazinho (Matheus Nachtengaele), sua namorada, a travesti Mariana (Tania Guanussi), Eneida (Nanda Costa), entre outros personagens que compõem o lúmpen que interessa ao olhar inquieto de Assis, sabem que a amizade é uma virtude que só se concretiza entre pessoas de bem, que ela não existe onde há crueldade, injustiça e deslealdade.

“Entre os maus há sempre uma conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas se entre-temem; não são amigos, mas cúmplices”, escreveu o jovem Etienne de La Boétie, que foi amigo de Montaigne. Em seu “Discurso da servidão voluntária”, Boétie defende que a cumplicidade é baseada na desconfiança, desconfiança que é também renúncia da liberdade: para merecer a cumplicidade do tirano, é preciso, antes, servi-lo. A amizade, por sua vez, é baseada no amor, no respeito e na confiança, na igualdade entre os pares. Recusa do servir, ela é a condição da liberdade. Visto sob esta ótica, não me parece casual que seja a amizade, em “Febre do rato” – e em filme mais recente, “Tatuagem”,  sob muitas formas como que sua continuação –, a alternativa possível ao estado de exceção em que estamos, em maior ou menor grau, enredados. E ela transborda por todo a película: erótica, alegre, sensual, despojada, desbocada, chapada.

Em uma leitura a contrapelo de Giorgio Agamben, o historiador francês Georges Didi-Huberman critica, no filósofo italiano, a ênfase que este dá à destruição da experiência na modernidade, ao ponto de “estabelecer uma espécie de equivalência desencantada entre democracia e ditadura”. Recusando-se a ver, diz Didi-Huberman,  alternativa “à assustadora glória do espetáculo”, entendido este último como o equivalente, nas democracias contemporâneas, ao que foi em passado recente a submissão da massa aos regimes totalitários, não resta opção se não definir negativamente o povo e o que quer que ele represente. Contra a “cor sombria, cinzenta, de uma consciência infeliz condenada a seu próprio horizonte, a sua própria clausura”, Didi-Huberman opõem a claridade fugidia, o lampejo do vaga-lume.

Em “Febre do rato” as personagens vivem esta contraditória e corajosa experiência: marginalizados, eles fazem da sua existência, de seu cotidiano, uma experiência de recusa e negação – o de viver uma vida nua, desprovida de sentidos e significados simbólicos e reduzida à sua natureza biológica –, que se desdobra na afirmação de uma vida que quer ser plenamente vivida. Não se trata, por isso, de um filme otimista; mas de uma narrativa que coloca em cena a resistência, a insubmissão, a alegria e a poesia. Elementos que fazem de “Febre do rato” uma história que aborda ainda, sob uma perspectiva singular, a atualidade de nosso presente: poucas vezes carecemos tanto de resistências e insubmissões, de alegria e de poesia, como agora. “Febre do rato” é um filme sobre a necessidade, corajosa e incontornável, de viver. É um filme sobre o lampejo dos vaga-lumes a contrastar e desafiar a escuridão cega das muitas noites que nos desafiam e ameaçam.

PS.: Para quem já viu e quer rever, para quem ainda não viu, uma versão completa do filme está disponível no youtube.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Manifesto pelo parlamentarismo-viajandão

Traduzindo: next stop

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Bom dia, leitor-eleitor. Hoje tenho uma proposta política a fazer: quero o seu voto. Eu explico.

Tenho pensado em voltar a viver no Brasil. É uma mudança que, claro, traria perdas e ganhos. A maior perda, com toda a certeza, seria deixar de viajar pela Europa com certa frequência. Porque aqui as viagens para os países vizinhos são muito comuns. E com o surgimento das empresas aéreas low-cost, até pobres como eu podem andar por aí.

E nem é preciso ser de avião. Imagine, leitor-eleitor, que se neste momento eu decidir pegar no meu carro e andar 160 quilômetros, vou a Espanha tomar uma cerveja e comer gambas. Atenção, eu disse gambas e não gambás. Fique ligado, porque gambas por estas bandas são inocentes camarões. 


O fato é que, depois de muito refletir, encontrei a solução para o meu problema. Volto para o Brasil e entro para a política. Se conseguir me eleger deputado, governador ou o escambau, tenho a certeza de que continuarei a viajar à grande e à francesa. Os políticos brasileiros são os campeões mundiais de viagens aéreas, os paladinos dos programas de milhas.


Só não decidi o cargo a que vou concorrer e nem o partido. O cargo pode ser qualquer um, porque os políticos brasileiros ganham muito bem em qualquer nível (hummm… palavra mal escolhida, porque a falta de nível é evidente). E só não aceito ir para o DEMo, porque não estou disposto a vender a minha alma ao diabo. Se bem que os caras devem precisar de mim. Um partido que decide se chamar DEM de livre vontade está mesmo a precisar de uns conselhos publicitários. Porque se você tem que afirmar que é democrata, então é porque há dúvidas.


Mas voltemos às viagens, a descoberta mais genial dos nossos políticos. Os caras andam aí pelo mundo feito saltimbancos com o dinheiro público… e muitos eleitores acreditam que eles estão a trabalhar a sério. É uma teta. E é para isso que eu conto com essa forcinha do leitor-eleitor: você vota, eu viajo.


PARLAMENTARISMO-VIAJANDÃO - Mas não se pense que parto para essa candidatura sem um programa de governo. Bem… na verdade é mais um programa de viagens, o que vai dar no mesmo. Para começar, proponho a mudança na forma de governo. A idéia é implantar um novo sistema: o parlamentarismo-viajandão.


Traduzindo. É um sistema onde há os chefes de governo e os chefes de estado. Os chefes de governo ficam no país a governar. O chefe de estado viaja (é aqui que eu entro). E vou abrir escritórios de trabalho em alguns pontos estratégicos do planeta. Na Côte D’Azur, nas Seichelles e nas Bahamas.


Ahá… o leitor-eleitor mais antenado já percebeu a diferença. É que os nossos políticos tradicionais, em especial em Joinville, são breguésimos e têm um péssimo gosto. Só viajam para lugares chatos, cinzentões e sem charme como a China, a Rússia e todos os cus-de-mundo dos EUA. Morons!


Ah… e a grande inovação. Não vou fazer como fazem os políticos tradicionais, que convidam certos “jornalistas” amigalhaços do poder para as viagens. Eu explico. É que esses caras tornam a viagem um desassossego, porque a gente precisa estar sempre de olho na carteira. Aliás, leitor-eleitor, não parece estranho levar para os EUA um “jornalista” que não fala inglês? E nem o português… Pior é que já aconteceu.


A boa notícia, caro leitor-eleitor, é que todos os meses eu pretendo sortear uma viagem entre os meus eleitores e eleitoras, com direito a todas as mordomias com o dinheiro público. Isso é corrupção? Perfeito. Quer dizer que já estou pegando o jeito.


Cruzcampo, olé!