quinta-feira, 24 de abril de 2014

A persistência dos vaga-lumes


POR CLÓVIS GRUNER

Revi esses dias “Febre do rato”, filme de 2011 do diretor pernambucano Claudio Assis. Quando do seu lançamento, o crítico Inácio Araújo afirmou tratar-se de um filme “feito porque tem algo a dizer, não porque tem um negócio a fazer”. A frase me parece sintetizar não apenas este, mas a breve e intensa filmografia de Assis, composta de alguns curtas e outros dois longas: “Amarelo manga”, de 2002; e “Baixio das bestas”, de 2006. À mesma época, li uma crítica comparado-o a Glauber Rocha, aproximação não me parece pertinente: Glauber Rocha e o Cinema Novo, Glauber principalmente, tinham uma dicção politizante, um indisfarçável tom messiânico em sua pretensão a fazer do cinema uma experiência conscientizadora.

O cineasta pernambucano está mais próximo do Cinema Marginal, contemporâneo do Cinema Novo mas, diferente deste, despretensioso, debochado, iconoclasta, sem por isso renunciar à sua dimensão crítica e incômoda. Aliás, arrisco dizer que Assis é, no cinema brasileiro atual, o principal herdeiro de Rogério Sganzerla, que soube como poucos transitar entre a erudição e o escracho, articular o exame crítico e o riso cínico. Na trilogia iniciada com “Amarelo manga” tais elementos se articulam atravessados por algumas características comuns: da paisagem pernambucana – a capital, Recife, em “Amarelo...” e “Febre...”, a Zona da Mata em “Baixio...” –; a alguns “atores fetiches”; passando pelo olhar que procura apreender as vidas em risco, experiências e vivências marginais, não são poucos os elementos comuns que corroboram para a sensação de que um filme se desdobra em outro, uma história encontra outra.

Por outro lado, cada película carrega especificidades. Em “Amarelo...” são as múltiplas realidades e possibilidades de sobrevivência em uma realidade urbana precária o foco de interesse. Os personagens, em sua maioria vivendo no ou em torno ao Texas Hotel, tem suas existências marcadas pela violência em suas muitas formas – institucional, econômica, social, simbólica, etc. –; se resistem e sobrevivem a ela o fazem mais por inércia e necessidade. Trata-se de um universo quase estático, praticamente imóvel, incapaz de se transformar e de autorizar qualquer mudança em suas personagens: da primeira à última cena, há uma pobreza, um desamparo, uma impotência que nada nem ninguém podem mudar.

Esta opção é radicalizada em “Baixio das bestas”, dos três o mais contundente, cru em sua violência desmedida e sem vergonha, mas que pouco tem a ver com a estetização da violência que é marca de parte significativa do cinema brasileiro recente, de “Cidade de Deus” a “Tropa de elite”. Ao longo de pouco mais de uma hora, somos confrontados com espancamento de mulheres, exploração de menores, pedofilia, sodomia, estupro... Em certo momento, o personagem de Matheus Nachtengaele nos provoca: “Tá sentindo um cheiro estranho? É a podridão do mundo”. Eis, em uma pergunta e sua resposta, aquilo que o filme se propõe mostrar.

RECUSA DO SERVIR – “Febre do rato” é diferente. Há a periferia recifense e os despossuídos que nela habitam. Mas há também uma disposição a afirmar a vida para além de qualquer risco. Zizo – interpretado por Irandhir Costa –, personagem central da história, não é apenas um poeta, mas um poeta que fez de sua vida uma obra de arte: vive intensa e plenamente o que pensa, sente e escreve. Em torno a ele, bebendo cachaça e cerveja, fumando maconha, trepando, orbitam personagens que experimentam, igualmente, modos alternativos de existência. Amigos e libertários, eles são “pobres, pontiagudos, anárquicos”, na feliz definição de Inácio Araújo. A seu modo, e porque vivem e experimentam cotidianamente uma violência que insiste em condená-los à marginalidade, ao risco, à precariedade, o coveiro Pazinho (Matheus Nachtengaele), sua namorada, a travesti Mariana (Tania Guanussi), Eneida (Nanda Costa), entre outros personagens que compõem o lúmpen que interessa ao olhar inquieto de Assis, sabem que a amizade é uma virtude que só se concretiza entre pessoas de bem, que ela não existe onde há crueldade, injustiça e deslealdade.

“Entre os maus há sempre uma conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas se entre-temem; não são amigos, mas cúmplices”, escreveu o jovem Etienne de La Boétie, que foi amigo de Montaigne. Em seu “Discurso da servidão voluntária”, Boétie defende que a cumplicidade é baseada na desconfiança, desconfiança que é também renúncia da liberdade: para merecer a cumplicidade do tirano, é preciso, antes, servi-lo. A amizade, por sua vez, é baseada no amor, no respeito e na confiança, na igualdade entre os pares. Recusa do servir, ela é a condição da liberdade. Visto sob esta ótica, não me parece casual que seja a amizade, em “Febre do rato” – e em filme mais recente, “Tatuagem”,  sob muitas formas como que sua continuação –, a alternativa possível ao estado de exceção em que estamos, em maior ou menor grau, enredados. E ela transborda por todo a película: erótica, alegre, sensual, despojada, desbocada, chapada.

Em uma leitura a contrapelo de Giorgio Agamben, o historiador francês Georges Didi-Huberman critica, no filósofo italiano, a ênfase que este dá à destruição da experiência na modernidade, ao ponto de “estabelecer uma espécie de equivalência desencantada entre democracia e ditadura”. Recusando-se a ver, diz Didi-Huberman,  alternativa “à assustadora glória do espetáculo”, entendido este último como o equivalente, nas democracias contemporâneas, ao que foi em passado recente a submissão da massa aos regimes totalitários, não resta opção se não definir negativamente o povo e o que quer que ele represente. Contra a “cor sombria, cinzenta, de uma consciência infeliz condenada a seu próprio horizonte, a sua própria clausura”, Didi-Huberman opõem a claridade fugidia, o lampejo do vaga-lume.

Em “Febre do rato” as personagens vivem esta contraditória e corajosa experiência: marginalizados, eles fazem da sua existência, de seu cotidiano, uma experiência de recusa e negação – o de viver uma vida nua, desprovida de sentidos e significados simbólicos e reduzida à sua natureza biológica –, que se desdobra na afirmação de uma vida que quer ser plenamente vivida. Não se trata, por isso, de um filme otimista; mas de uma narrativa que coloca em cena a resistência, a insubmissão, a alegria e a poesia. Elementos que fazem de “Febre do rato” uma história que aborda ainda, sob uma perspectiva singular, a atualidade de nosso presente: poucas vezes carecemos tanto de resistências e insubmissões, de alegria e de poesia, como agora. “Febre do rato” é um filme sobre a necessidade, corajosa e incontornável, de viver. É um filme sobre o lampejo dos vaga-lumes a contrastar e desafiar a escuridão cega das muitas noites que nos desafiam e ameaçam.

PS.: Para quem já viu e quer rever, para quem ainda não viu, uma versão completa do filme está disponível no youtube.

2 comentários:

  1. Os críticos de cinema que se cuidem, está surgindo um novo nome...
    A sua descrição da cumplicidade e amizade é perfeita, percebo isto diariamente até nas relações familiares e profissionais.
    Parabéns.

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    1. Obrigado, Manoel.

      E ser crítico de cinema tem suas vantagens: assistir aos filmes de graça, em sessão fechada e antes de quase todo mundo são algumas delas.

      Eu curtiria a brincadeira.

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