POR CLÓVIS GRUNER
Revi esses dias “Febre do rato”,
filme de 2011 do diretor pernambucano Claudio Assis. Quando do seu lançamento, o
crítico Inácio Araújo afirmou tratar-se de um filme “feito porque tem algo a
dizer, não porque tem um negócio a fazer”. A frase me parece sintetizar não
apenas este, mas a breve e intensa filmografia de Assis, composta de alguns
curtas e outros dois longas: “Amarelo manga”, de 2002; e “Baixio das bestas”,
de 2006. À mesma época, li uma crítica comparado-o a Glauber Rocha, aproximação não me parece pertinente: Glauber Rocha e o Cinema Novo, Glauber
principalmente, tinham uma dicção politizante, um indisfarçável tom messiânico
em sua pretensão a fazer do cinema uma experiência conscientizadora.
O cineasta pernambucano está mais
próximo do Cinema Marginal, contemporâneo do Cinema Novo mas,
diferente deste, despretensioso, debochado, iconoclasta, sem por isso renunciar
à sua dimensão crítica e incômoda. Aliás, arrisco dizer que Assis é, no cinema
brasileiro atual, o principal herdeiro de Rogério Sganzerla, que soube como
poucos transitar entre a erudição e o escracho, articular o exame crítico e o
riso cínico. Na trilogia iniciada com “Amarelo manga” tais elementos se
articulam atravessados por algumas características comuns: da paisagem
pernambucana – a capital, Recife, em “Amarelo...” e “Febre...”, a Zona da Mata
em “Baixio...” –; a alguns “atores fetiches”; passando pelo olhar que procura apreender as vidas em risco,
experiências e vivências marginais, não são poucos os elementos comuns que
corroboram para a sensação de que um filme se desdobra em outro, uma história
encontra outra.
Por outro lado, cada película
carrega especificidades. Em “Amarelo...” são as múltiplas realidades e
possibilidades de sobrevivência em uma realidade urbana precária o foco de
interesse. Os personagens, em sua maioria vivendo no ou em torno ao Texas
Hotel, tem suas existências marcadas pela violência em suas muitas formas –
institucional, econômica, social, simbólica, etc. –; se resistem e sobrevivem a
ela o fazem mais por inércia e necessidade. Trata-se de um universo quase
estático, praticamente imóvel, incapaz de se transformar e de autorizar
qualquer mudança em suas personagens: da primeira à última cena, há uma
pobreza, um desamparo, uma impotência que nada nem ninguém podem mudar.
Esta opção é radicalizada em
“Baixio das bestas”, dos três o mais contundente, cru em sua violência
desmedida e sem vergonha, mas que pouco tem a ver com a estetização da
violência que é marca de parte significativa do cinema brasileiro recente, de
“Cidade de Deus” a “Tropa de elite”. Ao longo de pouco mais de uma hora, somos
confrontados com espancamento de mulheres, exploração de menores, pedofilia,
sodomia, estupro... Em certo momento, o personagem de Matheus Nachtengaele nos
provoca: “Tá sentindo um cheiro estranho? É a podridão do mundo”. Eis, em uma
pergunta e sua resposta, aquilo que o filme se propõe mostrar.
RECUSA DO SERVIR – “Febre do rato”
é diferente. Há a periferia recifense e os despossuídos que nela
habitam. Mas há também uma disposição a afirmar a vida para além de qualquer
risco. Zizo – interpretado por Irandhir Costa –, personagem central da
história, não é apenas um poeta, mas um poeta que fez de sua vida uma obra de
arte: vive intensa e plenamente o que pensa, sente e escreve. Em torno a ele,
bebendo cachaça e cerveja, fumando maconha, trepando, orbitam personagens que
experimentam, igualmente, modos alternativos de existência. Amigos e
libertários,
eles são “pobres, pontiagudos, anárquicos”, na feliz definição de Inácio
Araújo. A seu modo, e porque vivem e experimentam cotidianamente uma violência
que insiste em condená-los à marginalidade, ao risco, à precariedade, o coveiro
Pazinho (Matheus Nachtengaele), sua namorada, a travesti Mariana (Tania
Guanussi), Eneida (Nanda Costa), entre outros personagens que compõem o lúmpen
que interessa ao olhar inquieto de Assis, sabem que a amizade é uma virtude que
só se concretiza entre pessoas de bem, que ela não existe onde há crueldade,
injustiça e deslealdade.
“Entre os maus há sempre uma
conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas se entre-temem; não
são amigos, mas cúmplices”, escreveu o jovem Etienne de La Boétie, que foi
amigo de Montaigne. Em seu “Discurso da servidão voluntária”, Boétie defende
que a cumplicidade é baseada na desconfiança, desconfiança que é também
renúncia da liberdade: para merecer a cumplicidade do tirano, é preciso, antes,
servi-lo. A amizade, por sua vez, é baseada no amor, no respeito e na confiança,
na igualdade entre os pares. Recusa do servir, ela é a condição da liberdade.
Visto sob esta ótica, não me parece casual que seja a amizade, em “Febre do
rato” – e em filme mais recente, “Tatuagem”, sob muitas formas como que sua continuação –, a alternativa possível ao estado de exceção em que estamos, em maior ou
menor grau, enredados. E ela transborda por todo a película: erótica, alegre,
sensual, despojada, desbocada, chapada.
Em uma leitura a contrapelo de Giorgio
Agamben, o historiador francês Georges Didi-Huberman critica, no filósofo
italiano, a ênfase que este dá à destruição da experiência na modernidade, ao
ponto de “estabelecer uma espécie de equivalência desencantada entre democracia
e ditadura”. Recusando-se a ver, diz Didi-Huberman, alternativa “à
assustadora glória do espetáculo”, entendido este último como o equivalente,
nas democracias contemporâneas, ao que foi em passado recente a submissão da
massa aos regimes totalitários, não resta opção se não definir negativamente o
povo e o que quer que ele represente. Contra a “cor sombria, cinzenta, de uma consciência
infeliz condenada a seu próprio horizonte, a sua própria clausura”,
Didi-Huberman opõem a claridade fugidia, o lampejo do vaga-lume.
Em “Febre do rato” as personagens
vivem esta contraditória e corajosa experiência: marginalizados, eles fazem da sua existência, de seu cotidiano, uma experiência de
recusa e negação – o de viver uma vida nua, desprovida de sentidos e
significados simbólicos e reduzida à sua natureza biológica –, que se desdobra
na afirmação de uma vida que quer ser plenamente vivida. Não se trata, por
isso, de um filme otimista; mas de uma narrativa que coloca em cena a
resistência, a insubmissão, a alegria e a poesia. Elementos que fazem de “Febre
do rato” uma história que aborda ainda, sob uma perspectiva singular, a atualidade de
nosso presente: poucas vezes carecemos tanto de
resistências e insubmissões, de alegria e de poesia, como agora. “Febre do rato” é um filme
sobre a necessidade, corajosa e incontornável, de viver. É um filme sobre o
lampejo dos vaga-lumes a contrastar e desafiar a escuridão cega das muitas
noites que nos desafiam e ameaçam.
Os críticos de cinema que se cuidem, está surgindo um novo nome...
ResponderExcluirA sua descrição da cumplicidade e amizade é perfeita, percebo isto diariamente até nas relações familiares e profissionais.
Parabéns.
Obrigado, Manoel.
ExcluirE ser crítico de cinema tem suas vantagens: assistir aos filmes de graça, em sessão fechada e antes de quase todo mundo são algumas delas.
Eu curtiria a brincadeira.