sexta-feira, 23 de novembro de 2018

“Escola sem Partido”, uma ideologia de classe

POR CLÓVIS GRUNER
Por sugestão de um amigo, visitei o site de uma escola particular, fundada originalmente em New York e que, ano passado, abriu sua primeira unidade brasileira, em São Paulo. Com mensalidades na casa dos oito mil reais, a instituição é obviamente voltada a um público de elite, a quem oferece uma educação integrada, concebida para desenvolver, em seus alunos, diferentes competências. Pedagogicamente, nada muito diferente de outras escolas privadas, mas com estrutura e corte de classe mais “exclusivos”.

Na apresentação, lê-se que “todos os alunos participam do programa World Course, uma combinação de estudos de História, Geografia e Temas Globais, que ultrapassa as perspectivas ocidentais”. E segue: “a História é introduzida, não como uma sequência interminável de fatos e datas, mas como uma longa história de acontecimentos inter-relacionados, porque esse é o conceito de historicidade”. O objetivo é que crianças e adolescentes tenham “uma síntese integrada de Geografia Global, História, Economia e Futurismo”.

O programa é complementado com condicionamento físico e a oferta de diferentes práticas esportivas; a sensibilização artística; a aproximação às linguagens tecnológicas e um cardápio equilibrado que privilegia opções orgânicas. Além disso, desde o início da adolescência alunos são orientados à vida universitária; um dos objetivos é garantir que possam cursar o ensino superior em qualquer universidade brasileira ou norte-americana, independente da área e carreira escolhidas.

Os valores institucionais, aplicados no cotidiano escolar, são sustentados em três princípios: acolhimento, segurança e respeito. Basicamente, “cada membro (...) é valorizado como um indivíduo único e (...) ninguém deve ser excluído; todas as pessoas são iguais”. A intenção é que “tanto os alunos, quanto o corpo docente têm a responsabilidade de assegurar suas integridades físicas e emocionais durante todas as atividades escolares”. E enfim: “(...) no convívio com os colegas deve prevalecer a dignidade e a honra de ser membro de uma comunidade educacional íntegra”.

Além de assegurar uma formação conteudística ampla e sólida, e o respeito à diversidade, a escola pretende preparar discentes para que consigam pensar o futuro e verem-se como parte integrante dele. Em resumo, e em se tratando de uma instituição voltada à formação das futuras elites dirigentes, a intenção é que crianças e adolescentes percebam o mundo a sua volta não apenas a partir do imediatismo presente – escolher entre continuar os estudos ou encontrar um emprego, por exemplo –, mas como um constante devir, aberto a mudanças e inovações. 

Escola e reprodução social – Publicado nos anos de 1970, “A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”, dos sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, argumentava a respeito do papel da escola e da educação na reprodução das hierarquias sociais. Grosso modo, Bourdieu e Passeron mostravam como, por meio de políticas supostamente meritocráticas, se reproduziam na escola as condições que favoreciam a manutenção dos desequilíbrios e desigualdades sociais e de classe, naturalizando-as.

O diagnóstico não era exatamente novo: anarquistas como Sébastien Faure e Ferrer i Guàrdia (executado pelo Estado espanhol) já o haviam feito décadas antes. Sugeriam, como alternativa, uma educação integral que abordasse diferentes habilidades – físicas, técnicas, humanísticas e estéticas –, em um ambiente baseado na gestão compartilhada não apenas de conteúdos e programas, mas também das decisões políticas e econômicas. No Brasil, Paulo Freire propôs algo semelhante. No horizonte, uma escola responsável não apenas pela transmissão de conteúdos formais, mas capaz de formar indivíduos intelectual, ética e politicamente autônomos.

Nada mais distante dos projetos para a educação pública brasileira, agora mais que nunca à mercê das pressões políticas da bancada evangélica, aliada de primeira hora do governo Bolsonaro. Foi ela a responsável por vetar, para o Ministério da Educação, um nome considerado moderado por educadores, e pela indicação, em seu lugar, de um ministro cujas principais credenciais para o cargo são seus delírios anti-marxistas, seus discursos contra a “ideologia de gênero” e a “doutrinação cientificista” nas escolas, e sua afinidade com o movimento “Escola sem Partido”.

Volto à escola de elite cuja descrição abre esse texto. Há uma contradição perversa e flagrante no modo como nossa educação se constitui. De um lado, o ensino público, responsável pela esmagadora maioria dos estudantes (cerca de 73%), sucumbe cada vez mais ao discurso e às políticas conservadoras e reacionárias, que limitam o acesso a uma educação mais ampla, integral e autônoma, subtraindo conteúdos, atacando e desqualificando escolas e docentes.

Em um universo à parte, a educação privada, que atende estratos da classe média e as elites, aposta em um ensino integral, valorizando disciplinas humanísticas e um ambiente de respeito às diferenças. Não é difícil imaginar de quais escolas sairão adultos mais capazes e bem formados, inclusive para disputar as melhores vagas no mercado de trabalho. BNCC, reforma do Ensino Médio, “ideologia de gênero” e “Escola sem Partido”? Não nas salas de aula dos filhos das elites.

4 comentários:

  1. "Não é difícil imaginar de quais escolas sairão adultos mais capazes e bem formados, inclusive para o mercado de trabalho." Clóvis Gruner.

    Permita-me expor minha opinião sobre seu diagnóstico: Sou motorista de aplicativo em Joinville, transporto jovens e adultos de um lado a outro. Pego passageiro em periferia e edifícios de alto padrão, jovens de bairro em escolas publicas e jovens ricos em escolas privadas. Adivinha quem te dá um bom dia, obrigado, até logo? Filho de rico embarca com fone de ouvido, celular na mão e tá nem aí pro mundo. Já peguei mãe e filha em bairro nobre que foram a viagem toda falando do "homem ideal" para a filha casar, eu nem sabia que adultescente conhecia a palavra CEO. Juventude rica é só balada, curtidas, likes e deslikes. A escola não forma carater, não cria pessoas, apenas lapida o que já foi criado. Nas eleições transportei Doutores de direita, Doutores com doutorado não advogados com curso de bacharel, tão ou mais estúpidos que aquele dono de loja de departamento.
    Apenas uma opinião, ok? Abraços.

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    1. Não acho que isso que chamamos de caráter se forma apenas dentro de casa. Muito pelo contrário, nós o moldamos ao longo dos anos, por meio das nossas interações sociais, que são múltiplas e, felizmente, não estão restritas ao ambiente familiar.

      De todo modo, o texto aborda menos a formação do caráter e mais o quanto cada modelo escolar contribui e contribuirá para a formação de cidadãos autônomos - o que inclui as habilidades necessárias para a inserção no mercado de trabalho. E, nesse quesito, me parece que as escolas públicas, a partir do ano que vem comandadas pela bancada religiosa, seguem em desvantagem.

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  2. Nem leu o projeto e faz associações desconexas, tá tão perdido quanto à elite desta cidade que perdeu a conexão com as ruas e foi até tb atropelada nas últimas eleições.

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    1. Desconexa é sua relação com a realidade. E com a língua portuguesa.

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