A derrota sofrida
pelo governo no domingo dificilmente será revertida no Senado ou no STF: quem
acompanha a política sabe que a decisão na Câmara dos Deputados é uma espécie
de “aviso prévio”. Depois dela, vem o afastamento provisório até a cassação
efetiva do mandato, o que só deve mesmo ocorrer no segundo semestre. Na contra
mão de muitos amigos e colegas mais ou menos próximos ao PT, há algum tempo
defendo uma saída alternativa ao impeachment, e me agradava particularmente a
proposta apresentada pelo filósofo Vladimir Safatle, a de um plebiscito que
permitisse aos eleitores escolher uma alternativa à crise: a continuidade do
governo até o fim do mandato ou a convocação de eleições gerais.
A razão era óbvia:
se o impedimento de Dilma, tal como conduzido pelo parlamento, é intolerável,
sustentar um governo virtualmente acabado e sem sustentação, tampouco aparecia
como solução. Uma consulta popular plebiscitária asseguraria, ao menos, a
legitimidade mínima necessária, tanto para o prosseguimento do mandato, como
para uma eventual nova administração. Governo e oposição negligenciaram tal
alternativa, e tinham suas próprias razões. Da parte do primeiro, a baixíssima
popularidade de Dilma indicava uma provável derrota no plebiscito. A aposta eleitoral,
com a possibilidade da candidatura de Lula, também não era certa: candidato,
Lula enfrentaria o desgaste da hiper exposição da campanha e da continuidade
das investigações da Lava Jato. A isso, o governo preferiu negociar o que tinha
pra oferecer, cargos, fundamentalmente.
E a oposição? Desde
a derrota em 2014 e há até pouco tempo, a alternativa de novas eleições foi a
bandeira erguida especialmente pelo PSDB. Mas isso quando Aécio Neves aparecia
como preferência do eleitorado, o que mudou drasticamente depois que o nome do
senador mineiro começou a ser incomodamente associado às mesmas investigações e
aos mesmos crimes em que estão implicados os petistas. Com o nome de Marina
Silva surgindo como alternativa, liderança pesquisas de intenção de votos ao
mesmo tempo em que não só Aécio, mas qualquer candidato tucano amargava uma
virtual derrota em qualquer cenário sugerido, mais a lista de políticos citados
e investigados aumentando, o melhor a fazer foi acelerar o processo de
impeachment, atraindo à oposição a base aliada do governo, por razões bastante
óbvias.
O resultado da
farsa foi o espetáculo grotesco do último domingo: uma sessão presidida por um
deputado réu no STF, Eduardo Cunha, em que se votou em nome de tudo – Deus,
família, corretores de seguro; e onde não faltou mesmo uma homenagem à memória
de um torturador. Mas onde, certamente, a única preocupação com a corrupção era
a garantia de que, passando o impeachment, os novos arranjos políticos forjados
no processo de transição para o governo Temer trariam como bônus a segurança da
impunidade. Em suma, o governo perdeu a votação de domingo porque sua moeda de
troca valia menos que a de Temer e Cunha: entre cargos em uma gestão que,
virtualmente, acabou, e a possibilidade da impunidade, venceu a segunda.
Convenhamos, a escolha não era difícil.
O
impeachment foi da Lava Jato – Os arranjos começaram cedo, e as notícias ao longo da
semana dão conta que Temer, Cunha e a oposição tem pressa: já na segunda-feira,
o espanhol “El Pais” trazia como principal manchete: “Cunha entrega o
impeachment e deve receber ‘anistia’ em troca”. As boas notícias prosseguem. Na
terça, “O Globo” repercute a entrevista que Gilmar Mendes, ministro do STF e
presidente do TSE concedeu ao “Roda Viva”, na segunda à noite. Nela, sugere que
Michel Temer poderá ser absolvido no julgamento do TSE agora que Dilma, a
cabeça de chapa, está virtualmente deposta. No mesmo dia, a “Gazeta do Povo”,
de Curitiba, publica também em manchete, que o impeachment tem como objetivo
travar a Lava Jato e blindar Cunha, Temer e Aécio, todos citados em delações
premiadas.
Ontem na “Folha”, o vice-presidente da Câmara, o deputado
Waldir Maranhão, informa que o julgamento de Eduardo Cunha na Comissão de Ética
será limitado a suspeita de que ele mentiu sobre a existência de contas
secretas no exterior em depoimento à CPI da Petrobras. Sobre sua participação
no esquema da Lava Jato, nada. O concorrente “Estadão” não deixou por menos:
tucanos negociam com o Conselho de Ética do senado estratégias para forçar
Delcídio do Amaral, ex-líder do governo na casa, a recuar em suas declarações
comprometedoras contra Aécio Neves em depoimento ao juiz Sérgio Moro. O
objetivo é usar o depoimento de Delcídio no Senado como pretexto para
fragilizar as investigações contra Aécio no MPF – isso, claro, no caso de Moro
decidir mesmo investigá-lo, o que parece cada vez menos provável. Não sei
vocês, mas eu já sinto entrando pela janela do meu apartamento o inconfundível
cheiro de orégano.
Em artigo publicado no “New York Times”, o sociólogo brasileiro
Celso Rocha de Barros, também colunista da “Folha”, se refere ao impeachment de
Dilma não como um “coup”, mas um “cover-up”, ou seja, não um golpe, mas uma
estratégia para acobertar e encobrir a enormidade de falcatruas em que estão
metidos os políticos brasileiros, inclusive e principalmente os principais
líderes da oposição e o ainda vice-presidente Michel Temer. E sugere que o
impeachment, longe de ser o anúncio de uma “nova era”, é a maneira pela qual a velha
classe política pretende retomar o controle do país – e escapar da cadeia. A
estratégia tem tudo para dar certo porque, além de se apoderar dos mecanismos
do Estado, o novo governo contará com o silêncio e a conivência dos indignados,
que amassaram suas panelas e envergaram o uniforme verde amarelo da CBF não
contra a corrupção, mas contra o PT. Restará, no parlamento, uma oposição à esquerda
minoritária e fragilizada pela derrota, sem força para fazer frente a um
esquema minuciosa e profissionalmente arquitetado para que tudo volte ao que
sempre foi.
A melhor metáfora da “nova era” anunciada pelo processo de
impeachment foi a matéria publicada pelo site da revista Veja com a possível primeira
dama, Marcela Temer. “Bela, recatada e do lar”, Marcela é o contraponto
perfeito de Dilma sob a perspectiva de uma cultura política francamente
machista, e que nunca tolerou a ideia de estar subordinada a uma mulher – o que
ficou ainda mais claro na sessão de domingo, também um espetáculo deplorável de
misoginia. Mas a figura bela e recatada de Marcela, que para sorte de Temer é também
discreta e do lar, é a imagem projetada e metaforizada do que o futuro governo
espera de nós: que voltemos às nossas casas, recatados e discretos, e deixemos
a política e a coisa pública a eles, os homens que foram eleitos para isso. A
reação à matéria da semanal foi imediata: como um rastilho de pólvora, milhares
de mulheres usaram as redes sociais para manifestar, com o devido escracho, seu
repúdio a essa “feminização” subordinada e subalterna sugerida pela revista. Nossa
postura em relação ao novo governo deve ser a mesma: contestadora, rebelde,
agressiva. Temer, Cunha e a quadrilha que eles lideram pretendem governar o
país para seu próprio benefício. Seu governo pode até ser, porque amparado na
Constituição, legal. Mas será ilegítimo. Cabe a nós lembrar disso, e não
permitir que eles governem.
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