Não eram poucos os que achavam, há até
poucos dias, que o impeachment de Dilma Rousseff era certo. A corroborar com
essa percepção, a disposição manifesta do presidente da Câmara dos Deputados, o
deputado Eduardo Cunha, réu no STF, em não apenas acelerar o rito parlamentar,
mas conduzi-lo de forma a facilitar a decisão favorável pela abertura do processo
e seu encaminhamento ao Senado. Nos últimos dias, no entanto, uma sequência de
eventos deixou incomodado quem é favorável ao impeachment, e tinha pressa em
votá-lo. Destaco dois.
O primeiro foi a decisão do ministro do
STF, Marco Aurélio Mello, de dar prosseguimento ao pedido de impeachment do
vice-presidente Michel Temer, decisão que contraria os planos do PMDB e da
oposição, que já articulava com o vice um eventual futuro governo: em
entrevista à Folha, José Serra defendeu que Temer deveria montar um “governo
extraordinário” para contornar a crise. Ciente da possibilidade de que o futuro
presidente talvez não seja Temer, mas Cunha, voltou atrás: o impeachment, disse
mais recentemente, não é suficiente para resolver a crise.
No começo dessa semana, o Advogado Geral da
União, José Eduardo Cardozo, foi ao Congresso apresentar, diante da Comissão
Especial, a defesa do governo. Ex-ministro da Justiça, onde teve atuação
medíocre, Cardozo fez agora a lição de casa, e ao longo de aproximadamente uma
hora e meia tratou de desconstruir os argumentos da acusação, assinada por
Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e a jurista neopentecostal Janaína Paschoal. E
acusou Eduardo Cunha do crime de desvio de função, ao usar seu mandato e
condição de presidente da Câmara, para vendetas contra o governo.
O
paciente ainda respira – Se tomados isoladamente,
os dois eventos já bastam para fragilizar a hipótese do impeachment. Mas não é
só. As tentativas de associar o governo Dilma às investigações da Lava Jato,
ligação que a rigor nunca existiu, se mostram cada vez mais ineficientes. Além
disso, as manifestações dos dias 18 e 31 de março sinalizam que, mesmo
fragilizado, o governo ainda respira, e que o impeachment está longe de ser
unanimidade: mesmo entre vozes que discordam de que está em curso um golpe de
Estado, cara ao governo e aos governistas, não são poucos a apontar o caráter
viciado e desvirtuado do processo.
Talvez isso nos ajude a entender a
insistência com que alguns veículos de comunicação, formadores de opinião e
juristas vem ocupando espaços privilegiados na tentativa de deslocar a
discussão para o campo jurídico, mais árido e, por isso, também impenetrável
para uma parcela expressiva da população. A intenção é fazer crer que o que
está em curso é um problema legal quando, na verdade, se trata de uma disputa
eminentemente política. A própria denúncia não escapa a isso: o corpo principal
do documento, um calhamaço de 65 páginas, é um arrazoado dos discursos
pró-impeachment de entidades como o MBL e o Vem Pra Rua e, não por acaso, seus
respectivos dirigentes, Kim Kataguiri e Rogério Chequer, são signatários do
documento.
Nele, entre outras coisas, lê-se que a “motivação
e o conceito de julgamento dos juízes
[os deputados federais] no processo de impeachment são exclusivamente
políticos, apesar do sólido respaldo jurídico demonstrado nesta denúncia”, contrariando
o preceito legal segundo o qual, o impeachment é um rito político e jurídico. O
festival de atrocidades prossegue: a “natureza preponderantemente política do
processo de impeachment”, diz o documento a certa altura, “permite que os
parlamentares, inclusive, levem em consideração ilícitos que venham a ser
desvendados, após a apresentação da denúncia, sem necessidade de aditamento”, o
que é falso, mas serve como mote para que sejam incluídos, como “provas”, entre
outras coisas, que Dilma entregou o país a “um ex-Presidente, que precisa
explicar à nação sua riqueza acumulada”. O viés político é ainda mais gritante
quando seus autores apelam à pesquisa realizada pela Folha de São Paulo e ao
número de assinaturas “colhidas pela plataforma www.proimpeachment.com”, a dar
testemunho, ambos, que o impedimento é incontornável.
A
política do espetáculo – Publicado no final dos
anos de 1960, “A sociedade do espetáculo”, de Guy Debord, chamava a atenção
para o papel desempenhado pelas imagens na espetacularização da vida pública.
Para o pensador francês, das relações interpessoais à política, tudo foi
espetacularizado e tornado mercadoria. Contraponto crítico à visão algo
apocalíptica de Debord, o intelectual norte americano Henry Jenkins defende, no
que chama de “cultura da convergência”, um olhar às novas mídias, especialmente
as digitais, atento à sua dinâmica participativa e interativa. Para Jenkins, a
informação deixou de ser monopólio de alguns poucos veículos; ela circula e é
consumida por públicos distintos e em plataformas midiáticas as mais diversas.
As duas perspectivas, me parece, convergem e
podem fornecer uma interessante chave de leitura para nosso processo político. Em
linhas gerais, meu argumento é que a denúncia contra Dilma se apresenta como um
discurso político porque seus autores sabem que, em tempos onde as mídias
alternativas reproduzem e compartilham gestos políticos, configurando seus
sentidos, é preciso falar a língua das multidões virtuais. Se o processo é
político, e se Dilma será julgada não pelo que estabelece a Constituição, mas
com base no número de assinaturas de uma plataforma virtual, não há incoerência
em tentar emprestar algum grau de legitimidade jurídica a um gesto que é, sabemos,
político.
Ao mesmo tempo, tal legitimidade é
importante porque ajuda a encobrir os muitos vícios do processo. A começar pelo
fato de que 31 dos deputados que julgarão Dilma Rousseff são investigados por
corrupção, e um deles, Eduardo Cunha, que como presidente da Câmara conduz o
processo, é réu no STF. A luta, portanto, não é pela normalidade
constitucional, mas pela sobrevivência política. Além disso, as pedaladas
fiscais – único argumento jurídico da denúncia – não são suficientes para
justificar o impeachment, entre outras coisas, porque mesmo entre juristas está
longe de existir consenso sobre serem elas, de fato, um crime de
responsabilidade tal como previsto na Constituição.
Ainda
sem respostas – Frágil, mas não inteiramente
descartada, a tese do impeachment só se justifica e sustenta, portanto,
politicamente. A mim, parece cada vez mais claro que a permanência ou não de
Dilma à frente do governo independe de argumentos jurídicos, porque o que está
em curso é um embate político e partidário. Ciente do que está em disputa, o
governo joga com o que tem, negociando no varejo cargos em troca de votos, na
tentativa de recompor uma base “aliada” (as aspas são fundamentais aqui) depois
de ter sido abandonado pelo PMDB, sócio no condomínio da governabilidade ao
longo da última década.
Se a farsa do impeachment não resolve a
crise, a verdade é que tampouco a continuidade do governo Dilma oferece solução
a ela. Especialmente porque, se permanecer no Palácio do Planalto, o PT
governará em condições ainda mais frágeis, tendo de enfrentar um
descontentamento popular que não dá sinais de recrudescer a curto prazo, um
congresso e uma oposição ainda mais hostis e ressentidos com uma eventual
derrota, e tendo de pagar a fatura da governabilidade cedendo à pressões de
partidos como PP e PRB, de um fisiologismo ainda mais escancarado e vergonhoso
que o do PMDB.
Na prática, e salvo alguma mudança abrupta
de rumo, o governo Dilma acabou, independente se o mandato se encerra agora ou
em 2018. Aqueles que, como eu, são contrários ao impeachment, resta saber se
vamos sustentar, em nome de uma difusa e genérica defesa da democracia e do
Estado de direito, um governo agonizante, ou ao menos estamos dispostos a
pensar em alternativas que, no limite constitucional e sem ferir de morte nossa
frágil democracia, apontem algum caminho possível que não o da mera
continuidade. Uma coisa me parece certa: dessa vez, a saída não é a
conciliação. Não é mais possível superar a crise sem traumas.
Eu não crio bandido de estimação "herói do povo".
ResponderExcluir