POR CLÓVIS GRUNER
Não pensei em nenhum
teórico ou cientista político em especial nestas últimas duas semanas; foi Drummond quem me ocorreu. Nos primeiros dias, ainda eufórico com as
manifestações, lembrei de “Mãos dadas” e de sua resistência muito gauche em ser o “poeta de um mundo
caduco”. À medida que a semana e as dúvidas avançaram, lembrei de “José”,
aquele sem nome, que zomba dos outros, que ama e protesta, que marcha sem saber
ao certo o porquê ou para onde.

Ainda é cedo para fazer um balanço das
manifestações sem correr o risco de ser desmentido pelas ruas. Se
a história é um conhecimento provisório, ainda mais efêmera é uma história que
tenta apreender o agora, o tempo presente. Assumido o risco, rascunho algumas considerações acerca dos desdobramentos mais imediatos de uma
movimentação que, iniciada para reivindicar a revogação de aumentos nas
passagens do transporte público, extrapolou em alguns poucos dias sua demanda
original. Do que li e ouvi, três temas me chamaram especialmente a atenção. De
um lado, o temor que se espalhou principalmente pelas redes sociais, de que a
mobilização popular estaria a ser manipulada para forçar uma crise institucional com vistas a uma tentativa de golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Na
esteira da tal ameaça golpista, discutiu-se exaustivamente o caráter difuso e
disperso das mobilizações, sua falta de rumo, a ausência de um “foco” e, por
fim, a tão propalada “guinada conservadora”. Mas como diria Jack: vamos por partes.
ALGUÉM VIU UM GOLPE POR AÍ? – Um espectro rondou parte da esquerda nos últimos dias:
a mobilização, principalmente virtual, em torno ao “Fora, Dilma!”, interpretado
por muitos como indício da gestação de um golpe a comprometer nossa ordem
democrática e institucional. Houve quem, inclusive, compara-se as manifestações
à “Marcha da família com Deus pela liberdade”, resposta de uma classe média
conservadora, já aquela época cansada, ao que considerava uma ameaça comunista
urdida nos gabinetes do governo João Goulart. Embora acredite que não sejam
poucos os setores que certamente festejariam um golpe e a deposição
de Dilma Roussef – basicamente, os mesmos cansados de sempre – não acredito
que estejamos à beira de um. O golpe é paranoia de
petistas que, desacostumados com as ruas, agora as temem, confortavelmente
sentados em seus gabinetes e bibliotecas. Aliás, vale registrar que não lembro
de nenhum dos agora alarmados governistas acusando golpismo quando a UNE foi às
ruas e, portando faixas e cartazes com “Fora FHC”, pediu o impeachment de um
presidente também eleito democrática e legitimamente.
O contexto era outro e a UNE não
contava com o apoio da imprensa e da mídia? Vá lá. Mas ainda acho que a
esquerda institucionalizada e governista superestima o poder das mídias
tradicionais. Apesar dela e da verdadeira campanha de ódio movida contra Lula,
por exemplo, ele se reelegeu em 2006 – em plena crise do chamado “Mensalão” –, elegeu Dilma
em 2010 e Haddad prefeito de São Paulo no ano passado, apesar da ampla
e oportuna cobertura midiática do julgamento do “Mensalão”. Além disso, e apesar das
muitas ressalvas ao pronunciamento da presidenta, até onde minha memória
alcança esta foi uma das primeiras vezes que um mandatário se dirigiu à nação em um momento de crise usando coerentemente as prerrogativas do cargo: Lula
teria colocado uma camiseta do MPL, um boné do MST e organizaria um comício;
FHC chamaria os manifestantes, assim como os aposentados, de vagabundos; Itamar
Franco aproveitaria o barulho para tomar um chopinho ao ar livre com os estudantes. Dilma falou como presidenta, o que pode não significar muita coisa
a médio e longo prazos (não há, afinal, garantias de que será cumprido tudo o que foi anunciado), mas serviu, naqueles dias, como uma resposta oficial –
e insisto no “oficial” – às demandas das ruas. Sobre a convocação de um plebiscito para a reforma política, proposta apresentada pelo governo depois de recuar da constituinte, há ainda muito a esclarecer.
UMA DEMOCRACIA SEM PARTIDOS – Falou-se demais, a meu ver, sobre as
muitas “caras” das manifestações, a falta de foco e de objetivos claros, sobre quem
se apropriou de que e com que fins. Ora, essa dispersão não é apenas um traço intrínseco
às democracias, mas é em grande medida uma resposta a um crescente
distanciamento entre o governo e os movimentos sociais. Pode-se acusar e mesmo ridicularizar a presença de grupos e
indivíduos de direita, a levantar bandeiras genéricas, quando não mesmo
oportunistas – nas redes sociais criou-se, para designá-los pejorativamente, a designação“coxinhas”.
Mas não se pode perder de vista que nos últimos anos as políticas e decisões do
atual governo, via de regra, foram tomadas unilateralmente, não raro
contrariando e negligenciando reivindicações de parcelas significativas da sociedade. Se
a opção de Lula foi incorporar muitas das demandas sociais à esfera do Estado,
com o que isto acarreta de bom e ruim, a de Dilma foi simplesmente virar-lhes
as costas, recusando reconhecer a legitimidade dos movimentos sociais como interlocutores
do governo.
Como o governo, também os partidos
políticos foram colocados em xeque. Em sua defesa, não faltou quem afirmasse que
não se constroi uma democracia sem partidos. Pode ser. Mas também não se
constroi uma democracia apenas com eles, nem se a consolida quando a maior
parte dos partidos já não representa as vontades e demandas de um número
expressivo de cidadãos: hoje, no Brasil, a maioria dos partidos se encontra tão
distante da dinâmica e da realidade das ruas e dos movimentos sociais, que os eleitores não apenas
se veem incapazes de diferenciar uns e outros, como não se sentem
representados pela maioria deles. É o caso de aboli-los? Não. Mas torço para
que as manifestações dos últimos dias não apenas os obriguem a
repensarem sua relação com os cidadãos, marcada quase sempre pelo oportunismo
eleitoreiro. Mas, principalmente, torço para que a energia das ruas sirva para
fortalecer mecanismos mais diretos de participação democrática, criando e qualificando novas alternativas para o debate público.
O AVANÇO CONSERVADOR – Em 2010, durante o segundo turno das
eleições presidenciais, um amigo me perguntou o que eu achava do clima tenso daqueles dias. Respondi algo como: “estamos em
uma guerra. Não chegou o momento do enfrentamento, mas eu não tenho
dúvidas que estamos em uma guerra”. Ainda
não tínhamos Malafaia nem uma tal psicóloga cristã a espumar o ódio contra as
minorias, gays em especial; ainda não tínhamos Marco Feliciano na presidência
da Comissão de Direitos Humanos e Minorias; foi antes da desocupação de
Pinheirinho; da militarização dos morros cariocas; foi antes de Belo Monte e da
violência crescente contra as comunidades indígenas. Mas havia alguma coisa no
ar, e não eram aviões de carreira.
Uma ex-orientanda me chamou a atenção para o
equívoco conceitual e histórico de falar em um “avanço fascista”, preferindo a
ele o termo “conservador”. Concordo. E tal avanço existe? Acho que sim.
Ele é novo? Acho que não. Ele já estava por aí há três anos, quando praticamente
todo o debate eleitoral do segundo turno foi pautado pela agenda conservadora e
assistimos a candidatura de José Serra e o PSDB aderirem aos grupos
fundamentalistas, ao passo que Dilma Rousseff e o PT se mostravam incapazes de
oferecer uma alternativa verdadeiramente progressista. Temerosos de confrontar
os grupos religiosos, Dilma e o PT sinalizavam já o rumo que o governo tomaria
depois da candidata eleita. Sejamos francos: se se pode responsabilizar em
grande medida José Serra e o tucanato pela força política que tem hoje estes grupos; se eles começaram a história, Dilma e o PT não são menos
responsáveis, porque a continuaram.
O que assistimos nos últimos dias não é, a meu ver,
fato novo. O avanço conservador chegou às ruas, o que o torna mais visível e
certamente mais ameaçador, porque ele traz consigo a intolerância, o
autoritarismo e o ódio, além da violência. Mas ele não apareceu agora, nem é
uma invenção ou consequência da movimentação das últimas semanas. A tendência agora, acredito, é o paulatino esvaziamento
das manifestações. Pautas conservadoras e oportunistas não sobrevivem e
prosperam, menos porque incapazes de encontrar ressonância, e
mais porque ir às ruas depende de capacidade de mobilização e esforço, o que
não é exatamente a especialidade da nossa direita, ainda muito cansada. Além
disso, os movimentos e reivindicações sociais não podem viver apenas em função de
passeatas: se há temas que pedem a ocupação das ruas, há aqueles que precisam encontrar
ou construir outras alternativas de mobilização.
Por outro lado, a retomada da
“normalidade” não significa, necessariamente, o fim do enfrentamento, que
continuará a se dar por outros meios, também nas ruas, mas não apenas nelas. Afinal,
não estamos mais em 2010, e agora temos Malafaia e aquela psicóloga a estimular
o ódio; uma bancada evangélica que elegeu Marco Feliciano à presidência da
Comissão de Direitos Humanos e Minorias; tivemos a desocupação de Pinheirinho;
a militarização dos morros cariocas; temos Belo Monte e a violência crescente
contra as comunidades indígenas. Temos uma direita raivosa e ressentida e um
governo refém do monstro que ajudou a criar. Se eu acreditava que em 2010
estávamos em uma “guerra fria”, acho que a partir de agora é necessário
estarmos prontos para os muitos enfrentamentos que virão.