POR CLÓVIS GRUNER
Eu tenho dúvidas quanto à inocência de Lula, mas tampouco estou certo sobre qual a extensão de sua culpa. Sérgio Moro, obviamente, não compartilha minhas relutâncias: sua sentença, proferida na quarta-feira (12), é um calhamaço de 238 páginas de muitas certezas. Nela, o juiz curitibano condena o ex-presidente a nove anos e seis meses de reclusão pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.Como era esperado, a publicação da sentença causou furor nas mídias e redes. No segundo caso, entre os eleitores e simpatizantes de Lula, viu-se um misto de indignação e surpresa. Consigo entender a primeira reação. Se eu, que não estou convencido da plena inocência de Lula, sempre achei uma excrescência o processo movido contra ele por Moro, é ainda mais fácil entende-la vindo de quem parece disposto a queimar mais que as duas mãos por ele.
Agora, surpresa? Alguém mesmo achava que seria diferente? Desde que o processo começou, Moro torrou milhões de recursos públicos em uma espécie de reality show jurídico; foi alçado à condição de novo herói e salvador da pátria; viu seu rosto estampado em capas de periódicos e adesivos nas traseiros de veículos; atropelou garantias legais e se comportou como um inquisidor; agiu de maneira truculenta quando lhe interessou, e xavecou sorridente no ouvido de amigos quando a ocasião lhe agradava.
Enfim, alguém achava que Sérgio Moro faria algo diferente do que fez? Não porque ele foi “treinado pela CIA”, essa bobagem que vem sendo repetida à exaustão por parte da militância petista. Mas porque essa era a única opção que lhe cabia, a única possível. O próprio Moro parece ter clareza disso, e assume em vários momentos da sentença um viés que procura reafirmar seu caráter eminentemente jurídico, sem contaminação política.
Logo no começo, por exemplo, ele se defende das acusações de abuso de poder e de estar à frente de uma “guerra jurídica” contra o ex-presidente: “Em síntese e tratando a questão de maneira muito objetiva, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não está sendo julgado por sua opinião política e também não se encontra em avaliação as políticas por ele adotadas durante o período de seu Governo. (...) Não tem qualquer relevância suas eventuais pretensões futuras de participar de novas eleições ou assumir cargos públicos”.
Há outras passagens semelhantes, e uma das mais significativas é o exercício teleológico de Moro na tentativa de justificar, a posteriori, a condução coercitiva de Lula em março do ano passado, afirmando que ela serviu para impedir eventos que poderiam ter acontecido, mas que não ocorreram graças à medida. Um pouco confuso? Eu sei, mas desconfio que seja exatamente essa a intenção. Mas por detrás da tagarelice jurídica, há uma intenção bastante clara: Moro investe boa parte da sentença na tentativa de “despolitizá-la”.
DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS – Ocorre que um jurista supostamente bem formado e informado como Moro deveria saber que, em Direito, não existem decisões puramente “técnicas”, o que é dizer: não existem decisões que não sejam também políticas. E não menos importante: se ela é principalmente técnica e não tem motivação política, não seria preciso dizê-lo. É uma armadilha semântica antiga, e ao cair nela Moro só confirma aquilo que, supostamente, nega.
E se a decisão é também, ou principalmente, política, não há porque escapar de fazer dela uma avaliação que leve em conta seus desdobramentos... políticos. E, de imediato, duas questões se colocam, nenhuma de fácil resposta. A primeira, e mais óbvia: afinal, a culpa de Lula está provada “sem dúvida razoável”, para usar o jargão das séries americanas de tribunal? Não. Mas a sentença tampouco prova o contrário.
Explico melhor. Em uma leitura desapaixonada – o que a essas alturas, reconheço, é muito difícil – é difícil encontrar nela evidências suficientes para sustentar a condenação. Moro chega a afirmar, com base em entrevistas de Lula, que este foi conivente com o “comportamento criminoso dos subordinados” após o Mensalão (você não leu errado), e que a ausência de uma postura condenatória mais explícita “pode ser considerado como elemento de prova” no julgamento que ele, Moro, conduz.
Há, além disso, um uso flagrantemente desigual dos depoimentos da acusação e da defesa, e afirmações sustentadas quase que exclusivamente nos depoimentos orais das testemunhas. A impressão, ao final da leitura, é que Lula já estava condenado, pouco importa o que o processo trouxe de evidências. Um pouco como aquele pesquisador que vai a campo munido de hipóteses mais do que de problemas, Moro já sabia de antemão qual o resultado final do julgamento e o processo apenas lhe forneceu os argumentos de que precisava para a condenação.
Mas se não há evidências suficientes de culpa, isso tampouco significa que o Lula que surge da sentença seja de todo insonte. Se já era difícil sustentar a sua inocência antes, tantas são as vezes que seu nome aparece mencionado em processos e delações, a leitura das duas centenas de páginas dificulta ainda mais proclamá-la com a convicção característica de seus defensores. E exatamente pelos mesmos motivos já expostos.
Explico de novo: a sentença é inconclusiva, apesar das convicções de Moro. E há nela evidências suficientes para colocar muitas pulgas atrás da orelha a respeito das relações no mínimo suspeitas de Lula com executivos e outros dirigentes da OAS, e dessa com a cúpula dirigente do Partido dos Trabalhadores. Se não há provas materiais suficientes para condenar Lula juridicamente, há evidências inquietantes que colocam em dúvida sua postura ética e do PT à frente do governo.
A ELEIÇÃO ESTÁ LOGO ALI – A segunda questão: e como a sentença afeta o cenário político a curto e médio prazo? Para a tristeza de muito marmanjo, a condenação em primeira instância não envia Lula para a prisão, porque ele pode recorrer da sentença em liberdade. Além disso, ela tampouco tira Lula da corrida presidencial de 2018, que ele lidera com relativa folga em todas as pesquisas até aqui. Como a condenação se deu na primeira instância, a decisão não basta para barrar as pretensões eleitorais de Lula.
É que a Lei da Ficha Limpa incide apenas sobre candidatos condenados a partir da segunda instância – no caso do ex-presidente e virtual candidato, a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que tem poucas chances de julgar o caso antes de iniciada a campanha eleitoral. E mesmo que a sentença seja confirmada, o tribunal não pode afastá-lo da disputa eleitoral se sua candidatura já tiver sido admitida pelo TSE.
Isso embaralha tudo e, claro, torna qualquer prognóstico para o próximo ano no mínimo bastante arriscado. Mas a condenação pela Vara de Curitiba, no fim das contas, serve tanto aos interesses políticos petistas como de seus opositores, que por enquanto estão no governo – na verdade, alguns já estavam nele antes, com o PT. Eles não precisarão ver Lula preso para usar a decisão de Moro contra ele e o partido – aliás, já estão a fazer isso.
Claro, não há garantias que isso lhe tire as intenções de voto. Mas em se tratando de partidos, principalmente PMDB e PSDB, também envolvidos em esquemas de corrupção, com alguns de seus principais nomes praticamente inviabilizados eleitoralmente – como é o caso de Aécio Neves – e cujo único projeto imediato é escapar da cadeia, a simples condenação pode ser suficiente para desviar o foco de parte do eleitorado de seus próprios crimes. Mero diversionismo, mas pode dar certo por um tempo.
Para o PT, arrastar a situação também tem suas vantagens, porque sua situação não é muito diferente. Como seus adversários, o partido não tem, hoje, um programa e um projeto para o país, investindo o que lhe resta de energia na tentativa de garantir a candidatura e a eleição de Lula.
A condenação pode servir, aos petistas, para inflar ainda mais a imagem de um Lula martirizado por uma “justiça burguesa” que, mancomunada com interesses nacionais e internacionais escusos, pretende levá-lo à cadeia. Nessa narrativa, sua prisão seria o desenlace do golpe iniciado com o impeachment de Dilma Rousseff. Também há algo de diversionismo nisso. Mas também pode dar certo por um tempo.