sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Criminalização da homolesbotransfobia: precisamos ir além.


POR EMANUELLE CARVALHO

Em 2014, foram formalmente contabilizadas 326 mortes de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais no Brasil. Ou seja, a cada 27 horas, um LGBT é morto no país. O número é um dos mais altos do mundo, e provavelmente é subestimado em virtude das mortes não registradas devidamente pelas delegacias. Nos casos onde a população LGBT é também profissional do sexo, os índices são ainda mais maquiados, sendo comumente vistos como ‘’desentendimento’’ entre clientes. (que a deusa me livre de me desentender assim). O número representa um crescimento de 4,1% referente a 2013.

Mas aí o leitor pode me questionar: e quantos heterossexuais morrem todos os dias e ninguém faz nada? Heterossexuais não morrem em virtude de sua orientação sexual, ou sua identidade de gênero. Ninguém é odiado, maldito, mal visto, expulso de casa ou estuprado porque resolveu assumir-se hétero. Aliás, as pessoas sequer precisam assumir-se hétero, não passam por este constrangimento. A heterossexualidade compulsória e a cissexualidade compulsória, ou seja, essa mania que a sociedade tem de achar que todo mundo que está a sua volta é necessariamente hétero e necessariamente cissexual (termo utilizados para se referir às pessoas cujo género é o mesmo que o designado quando do seu nascimento) funciona como uma manutenção e aprovação desta LGBTfobia.

Além disso, a promoção da impunidade quando não existe uma legislação específica que trate casos como estes dificulta a investigação e estimula que novos casos ocorram. Aproximadamente 80% dos casos não vão a julgamento em virtude a ineficiência do poder público. Será que apenas criminalizar esse tipo de crime é suficiente? Será que aprisionar um homofóbico fará com que ele se ressocialize e compreenda seus preconceitos?

Claro que não.

A punição colabora para que o combate aos crimes contra a vida se intensifique, mas o preconceito ainda precisará ser sistematicamente combatido. Em 2014 a lei que define os crimes de racismo fez 25 anos e até hoje nenhum caso se enquadrou na norma, tendo a justiça apenas tipificado como injúria racial, tendo em vista uma pena mais branda. Ao aprovarmos uma lei anti homofobia cairemos no mesmo dilema: o preconceito social dos agentes da lei também precisa ser revisto.

Casos como o do Goleiro Aranha, e do técnico eletrônico Januário Alves de Santana (que apanhou de seguranças em um estacionamento de mercado) foram sentenciados como injúria, mesmo sendo vistos por militantes do movimento negro, pela secretaria de igualdade social, e lidos pela sociedade em geral como racismo.O fato é que precisamos repensar novos formatos educacionais partindo da educação formal, passando pela interação midiática e pela desconstrução do preconceito no trabalho e nos espaços da academia.

Para isso, é preciso antes de tudo, que a gente se entenda e se reconheça enquando homolesbotranfóbico. Se nenhum de nós se considera homofóbico, bifóbico, transóbico, lesbofóbico quem é que produz esses preconceitos? Precisamos conversar sobre sobre homolesbotransfobia..

Hoje, os parâmetros curriculares nacionais, os famosos PCNs que regulamentam os temas a serem tratados nas escolas públicas de todo os país, possuem como tema transversal a diversidade cultural, a orientação sexual e os debates sobre identidade de gênero? Há, inclusive verba específica do Ministério da Educação para a capacitação e formação de professores que não tenham intimidade com a temática (mesmo sendo pressuposto de que o professor já deva ser orientado sobre isso em sua graduação).

Porém, hoje em Joinville essas diretrizes não são seguidas, e qual o motivo? O descaso com as mortes de LGBTs configura dupla violência: a de uma sociedade doente e medieval, e a de um estado omisso, inseguro e pouco eficaz.





quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O retorno

POR VALDETE DAUFEMBACK NIEHUES

Não se pretende aqui desafiar crenças religiosas, mas tão somente sugerir uma reflexão sociológica sobre o atual fenômeno da religiosidade que atinge a sociedade em geral e invade as instâncias políticas, organizacionais e educacionais. 

Se a História é mesmo cíclica, é possível afirmar que estamos voltando aos princípios da Idade Média? Será que os princípios do Racionalismo e as promessas do Iluminismo encontraram limites mesmo antes de atingirem o seu auge? 

Para o filósofo Feuerbach, o homem criou Deus à sua imagem (e não ao contrário, como se disseminou ao longo da história do Cristianismo), isso porque, como afirmou o sociólogo Durkheim, o ser humano (pela sua pequenez) tem necessidade de acreditar em algo maior do que ele próprio. A “nostalgia do Paraíso” reutilizada pelo homem moderno, como escreveu Eliade, busca recuperar a visão otimista da existência de um tempo sagrado.

Para que as verdades do céu fossem conduzidas de maneira eficiente na terra surgiram lideranças religiosas dotadas de um saber notório, que se acredita, acima de seus seguidores por possuírem um elo com as divindades das quais representam. E esta relação de confiança é tão expressiva que a mudança de postura de um líder religioso geralmente não abala os seus seguidores, pelo contrário, entendem como uma visão de sabedoria para o caminho da verdade. 

Recentemente, uma série de atitudes, discursos ou “pregações” do Papa Francisco romperam com a tradicional visão da Igreja Católica sobre vários temas. O interessante é que os fieis não ficavam incomodados com as pregações conservadoras, homofóbicas e machistas dos papas anteriores, mas bastou que o jesuíta mostrasse uma atitude mais humilde e humana, com menos ostentação material, para que fosse aplaudido e tivesse a aprovação de seus seguidores. 

Quando cientistas sociais questionavam o conceito “mãe solteira”, poucas pessoas se sensibilizaram a pensar sobre o assunto, porém, quando o papa afirmou que “não existe mãe solteira, porque mãe não é um estado civil”, a sociedade o considerou um ser humanitário, inspirador de uma máxima em defesa da mulher. Ao criticar o capitalismo voraz, responsável pelas desigualdades sociais, ele também defendeu que comunistas são cristãos não assumidos. Tenho curiosidade em saber como os católicos absorveram esta mensagem papal. 

Não resta dúvida de que o papa Francisco quebrou paradigmas diante das afirmações de que os filhos de pais não casados podem ser batizados; que não constitui pecado alguém se casar novamente após a separação matrimonial; que Adão e Eva não existiram de fato fora da ideia de representação. Mas convenhamos, essa tentativa de aproximação do papa à realidade cotidiana não significa interpretar a sua atitude como uma ação revolucionária. A Igreja é que durante séculos se utilizou de mitos para proteger o manto sagrado da fé. 
Um dia desses, diante de uma postagem em rede social que mostrava o papa se servindo no almoço, alguém se indispôs quando comentei que aquela cena indicava tratar-se de uma publicidade do Vaticano para trazê-lo mais perto do povo. Imagino que para uma pessoa de fé extremada possa mesmo ser difícil entender que exista todo um aparato publicitário para cuidar da imagem papal. 

Mas será que estas atitudes reformistas do papa Francisco, que chegaram a um momento oportuno para devolver a credibilidade da Igreja já desgastada com tantos escândalos e falso moralismo, contribuem para que a sociedade cultive um processo cultural capaz de desatar a cegueira do obscurantismo religioso? Será que ainda é possível discutir religião como ciência nos cursos de graduação? Ou será que o fundamentalismo religioso está ainda em ascensão tomando conta dos meios políticos e das organizações institucionais de tal modo, que policiais, ao invés de fazer o seu trabalho, invocam deus para expulsar o diabo do corpo de alguém que foi abordado na rua?!

Sabe-se que a dimensão da religiosidade corresponde à conduta moral da sociedade.  Por isso, não deixa de ser uma preocupação a atuação de parlamentares fundamentalistas que estão prestes a rever as conquistas e os avanços das leis de igualdade racial e de gênero, no direito civil, na laicidade do Estado. Corre-se o risco de adentrarmos em uma era de perseguições, de caça às bruxas, de condenações, de domesticação dos corpos por força da Lei que abrangerá o religioso e o jurídico. Um equívoco, na visão de Agamben. Uma purificação dos inocentes por meio da pena da retirada de seus direitos, segundo Benjamin.

Tempos sombrios! Tempos de desafios para quem acredita que o ser humano é dotado de racionalidade. 

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

As mentiras de um jornalista "isento" e "honesto".

O grande cara de pau. Fonte: Wikimedia commons.
Quaisquer paralelos desse caso com o comportamento de jornalistas e/ou empresas jornalísticas do Brasil é mera coincidência. Espero.


No começo deste mês, um ancora da rede de notícias NBC foi suspenso de suas funções. O motivo? Brian Williams mentiu a respeito de sua experiência cobrindo a guerra do Iraque, em 2003. Na ocasião, o helicóptero a frente do que Williams estava abordo foi atingido por um foguete, e teve de fazer uma aterrizagem forçada. Porém em janeiro deste ano, Williams recontou a história como sendo que o seu helicóptero o que fora abatido. Williams foi obrigado a se retratar, e foi suspendo do cargo. Essa história, no entanto, não é sobre ele.


Essa história é sobre outro âncora, de outro canal, pego em uma mentira similar. Essa história é sobre o “astro” do jornalismo Neo-conservador da Fox News, Bill O’Reily. Tão logo o engodo de Williams veio a tona, O’Reilly - praticamente o Azevedo de lá - foi um dos primeiros a condena-lo. Mais: O’Reilly com a tipica fúria da Fox News, usou da mentira de Williams para atacar toda a imprensa “liberal” (por liberal, entenda a definição americana de liberal: de esquerda). Afinal, se Williams mentira, o que garante que todo mundo não estava mentindo?


Infelizmente para ele, enquanto a NBC devidamente punia Williams, O’Reilly foi pego em uma mentira maior. Williams mentiu quanto a que helicóptero fora atingido, e qual a sua participação no incidente. O’Reilly, por sua vez, repetidas vezes afirmou ter presenciado combate durante a Guerra Falklands/Malvinas, ter escapado da morte por um triz durante a mesma guerra, ter visto soldados argentinos executando manifestantes, e ter salvo a vida de um fotógrafo durante um protesto.


Nada disso aconteceu, no entanto. Nenhum jornalista dos EUA cobriu a guerra no front. Apenas 30 jornalistas receberam credenciais do governo inglês para acompanharem as tropas britânicas. O’Reilly não era um deles. Ninguém da CBS (canal para qual ele trabalhava na época) pisou nas Malvinas. O único estadunidense a ir para as ilhas foi Robin Lloyd, da... NBC News. E mesmo Lloyd esteve lá por apenas um dia, acompanhado das forças armadas argentinas, antes das forças britânicas chegarem.


A cobertura da própria CBS, feita em parte pelo próprio O’Reilly, desmente as alegações de mortes nos protestos: a única cena de violência registrada foi um manifestante dando um soco em um jornalista canadense. A narração, lida pelo correspondente chefe da rede para a Argentina, Bob Schieffer, informava que alguns carros de imprensa foram apedrejados, e que a polícia ameaçou usar gás lacrimogêneo. Nada batendo com as cenas de extrema violência que O’Reilly depois viiria a alegar.


Por último, a parte de salvar um fotógrafo... Segundo ex-colegas na CBS, O’Reilly foi afastado da cobertura da Argentina após desobedecer ordens explícitas para não usar iluminação nas tomadas de vídeo. A medida levava em conta a animosidade dos argentinos contra os EUA, e visava a segurança dos jornalistas. O’Reilly, no entanto, forçou os cinegrafistas a ignorar a ordem, e gravou multiplas tomadas iluminadas. Para piorar, quando foi informado que o correspondente chefe seria quem leria a cobertura, reclamou que “não foi capturar imagens para aquele velho usar”.


Como foi que o veterano “isento” e “racional” da Fox News reagiu a exposição do seu engodo? Acusando os jornalistas que revelaram a mentira de serem “assassinos de esquerda”, desejando que um deles “estivesse na zona de risco”, e ligando para a redação do New York Times para fazer ameaças, é claro. O que, você esperava que ele fosse agir como Williams, e se desculpar publicamente? Da mesma maneira, a Fox News respondeu ao escândalo fazendo... nada. Absolutamente nada.

E essa é a rede de notícias que se diz detentora da verdade. E que acusa a rede que puniu o seu âncora desonesto de ser a rede das mentiras. Precisa dizer mais alguma coisa? O comportamento é muito similar ao de certos "formadores de opinião" e "guardiões da moral" que vimos pelo Brasil afora. Muitos mentem abertamente, e quando a mentira é escancarada, se enfurecem... Fica ainda pior quanto as redes sociais, onde qualquer coisa vale, e mentiras correm a solto. Alguns, ainda usam da carreira "jornalística" para adentrar na política. Ao menos nisso, O'Reilly ganha pontos: teve a hombridade de manter as coisas mais ou menos separadas (digo mais ou menos, pois o seu jornalismo "isento" é 100% propaganda republicana).


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Extinguir a Fundação Cultural?

POR JORDI CASTAN



A cada dia que passa fica mais clara a impressão de que o prefeito está perdido no seu labirinto. A proposta de compactar a cultura em um supersecretaria é típica de quem tem uma visão simplória das coisas. Ou pior, é a típica solução que apresentaria quem ainda não entendeu o problema.

Gostaria de lembrar de um texto que postei aqui sobre a reforma política e sugerir a sua leitura novamente. O texto de julho de 2014 fazia uma ligação entre a visão que determinado prefeito e um dos seus secretários tinham sobre a música. Usei uma composição de Schubert como exemplo do risco que representa uma visão parcial da situação. O risco era concreto e a ligação com a nossa realidade local era evidente.

A minha sugestão de leitura acrescentaria alguns pontos, para facilitar a compreensão e contextualizar a situação e o momento atual. A primeira é que o dito prefeito fosse, por exemplo, o de Joinville, a segunda que solicitasse a dos seus secretários mais próximos que apresentasse uma proposta de como reduzir gastos na área de cultura.

Não posso assegurar, mas conhecendo-o, não duvidaria que não tenha recebido sugestões de alguma conhecida empresa de consultoria e que desta constelação de sumidades tenha surgido uma proposta tão estapafúrdia como essa de extinguir a Fundação Cultural e compactar tudo o que cheire ou esteja ligado a cultura  numa secretaria que nem consegue cumprir direito suas obrigações e tem dificuldades até em manter as escolas funcionando e em fornecer a tempo os equipamentos e as instalações necessárias.

Se o governo municipal trata esta reforma administrativa com a mesma celeridade e eficiência com que tem tocado as obras em Joinville, ninguém deve ficar muito preocupado, porque não deve sair tão cedo. 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

A culpa é das estrelas?

POR SALVADOR NETO




Talvez você ria, talvez você chore, talvez você queira saber mais, estudar mais. Mas é possível também que atire meu texto na lixeira, imediatamente.  Ou, quem sabe, faça uma marca no jornalista para que seja rapidamente identificado como um "diferente". Veremos em breve. Comecemos por Goebbels. Não, este artigo não tem nada a ver com o livro de John Green, tampouco com o filme. Mas tem a ver com duas estrelas famosas, conhecidíssimas da nossa sociedade. 


Joseph Goebbels foi o ministro da propaganda de Hitler, o responsável pela criação do mito “Führer”. Cineasta, jornalista, literato e filósofo, possuía uma retórica única. Produzia filmes emocionantes divulgando o nazismo. Seus filmes estimulavam o preconceito étnico, a xenofobia, o patriotismo e o heroísmo e condenavam os judeus, alegando que eram culpados de acumular riquezas, explorando o povo. Junto a isso, o governo nazista decidiu que todos os judeus deveriam andar com a estrela de David em suas roupas, no peito ou no braço esquerdo.

A propaganda de Goebbels surtiu efeito. Milhares de alemães filiaram-se ao partido e contribuíram para o Holocausto de Hitler, torturando e matando seus próprios compatriotas, e entre eles cerca de seis milhões de judeus. A repetição da mentira várias vezes a torna verdade, dizia o propagandista preferido de muita gente até hoje, como políticos, líderes de partidos políticos, e até em muitos meios de comunicação. Afinal, a receita surtiu os efeitos desejados. Judeus foram marcados e podiam ser humilhados e agredidos em público. Seus bens eram confiscados, e ao final, foram escravizados e mortos em campos de concentração. Só não chegaram à solução final porque os aliados acordaram a tempo.

Processo de propaganda parecido, mas velado, tem se dado com o PT, partido político brasileiro nascido no meio do operariado no final da década de 1970 no ABC paulista. Antes identificado com lutas da esquerda e ao socialismo, foi tachado por várias vezes como sendo um criadouro de comunistas. Após conquistar o poder central a partir de 2003, sua estrela, marca que chegou até os jardins do Palácio da Alvorada, está lentamente sendo alinhada via investigações e noticiários à marca da corrupção, do banditismo, dos desvios de conduta que a sociedade contesta com os escândalos midiáticos do Mensalão e agora o chamado Petrolão. Não há aqui nenhum juízo de valor sobre se os fatos são realidade ou não. Há sim uma análise comunicacional.

Está em andamento um novo modelo de propaganda, com requintes do ideólogo nazista Goebbels. A ideia ao que parece é criminalizar a estrela petista, e por consequência quem a utilize ou faça parte deste grupo. A luta pelo poder tem resvalado no limite da insensatez, buscando pregar os sentidos da antiga estrela de David para os nazistas, à estrela petista do século 21. Não deixa de ser uma estratégia de comunicação visando o poder, mas que ao assumir proporções em alta escala levam ao perigo de voltarmos às atitudes violentas e antidemocráticas nas ruas. Vimos isso entre 1933 e 1945. Vimos isso nas eleições de 2014.

Para os incautos e não afeitos ao acompanhamento da grande e poderosa mídia tupiniquim, francamente aliada às forças conservadoras, ao capital internacional, e controlada por poucas famílias ligadas às forças políticas e empresariais, isso pode ser imperceptível. Sim, este movimento, esta mensagem, dirigida, pensada pacientemente, e executada parcimoniosamente. Mas é fato. Lembre: o nazismo levou 10 longos anos para se tornar forte e matar milhões na Segunda Guerra mundial. Repetição, massificação. Lenta, gradual, mas firme.


Não amigos, a culpa não é das estrelas. A culpa é da luta dos homens pelo poder, o controle das riquezas nacionais, seja aqui ou no outro lado do mundo. Cabe a nós como seres pensantes acompanharmos os fatos, aprendermos com a história, antes que ela nos leve novamente ao absurdo da violência. Nada pior do que ser estigmatizado por suas escolhas, e pior, ser perseguido, agredido e impedido de uma vida normal. Não podemos e nem devemos repetir os erros do passado, que aqui e acolá teimam em reaparecer. Tenhamos muita cautela, pois a democracia é o nosso bem maior.



quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Ninguém é profeta em sua terra: uma (tentativa de) autocrítica

POR CHARLES HENRIQUE VOOS

Às vezes os novos caminhos de nossas vidas surgem de forma repentina. Lembro-me bem de quando foi publicado no jornal, há 10 anos, meu primeiro artigo de opinião. Na época era um secundarista com vontade de me graduar em Letras. Desisti e achei as Ciências Sociais por um acaso, graças àquela publicação no jornal. Falar sobre a cidade, escrever e debater era o que eu mais gostava na adolescência. Nada contra, mas bem menos chato que as possíveis aulas no curso de Letras. De lá para cá, muita experiência e a presente decisão de parar por uns tempos.

A tarefa de expressar a sua opinião publicamente é árdua e desgastante. Faz você perder amigos, empregos, e o seu círculo social fica cada vez mais restrito às pessoas que pensam parecido com você, graças a tal homofilia. Comportamento que partiu de todos os círculos sociais em que eu estava inserido. Também me ensinou a lidar melhor com as críticas, algo que raramente você consegue quando é jovem. E ah, aceitar os erros, que foram muitos.

Neste período também mudei muito meu posicionamento político sobre várias questões, felizmente. Essa mudança talvez não tenha sido bem aceita por alguns, mas foi por outros. Enquanto uma ligação termina, outra começa. Expressar a opinião é mergulhar neste telefone sem fio interminável, sob tutela da opinião alheia.

Sinto-me na obrigação de dar um tempo, até porque expressar abertamente aquilo que penso me cansa demais, principalmente perante o cenário caricato que nossa cidade vem ganhando nos últimos anos (parece que nada melhora ou se desenvolve), e também a abertura para novos lugares e novas possibilidades profissionais e pessoais. O blog Chuva Ácida foi muito importante neste processo pois consolidou algo diferente para a cidade, e deu a todos os leitores opiniões diárias sobre os acontecimentos e que geralmente não eram vistas nos jornais. Quase 1 milhão de acessos em três anos. Pode parecer pouco, mas são 500 pessoas que, todos os dias, leem algum texto por aqui publicado. Só tenho a agradecer ao Jordi, Baço e Felipe que me convidaram para esta aventura, aos demais colegas de blog e a todos os leitores, gostando ou não do que eu escrevi.

Se não fosse este espaço, dificilmente teria condições de escrever abertamente sobre a UFSC em Joinville, sobre os assuntos de planejamento urbano da cidade (mobilidade urbana, LOT, gestão democrática da cidade, Praças da Cidade, IPPUJ, etc.), sobre as diárias dos deputados (que mudaram o sistema após nossa denúncia) e tantos outros temas em que "dei a cara" mais de 150 vezes. Fico feliz por estarem surgindo outros nomes e se consolidando outros, sinal de que algo novo está em uma necessária gestação.

E de novidades é que se faz a vida. Foram 10 ótimos anos neste ciclo entre blogs, TV, rádio e jornais. Não me arrependo de nenhuma linha escrita, ou de posicionamento político tomado. Talvez só de algumas mudanças que não consegui fazer, principalmente nas minhas passagens pela gestão pública. Mas como nem tudo dependia de mim...

Por mais irracionais que algumas escolhas possam parecer, elas fazem parte do nosso amadurecimento, nesta busca incessante por medalhas de reconhecimento para tudo o que ocorre em nossas vidas. Todos temos uma história, cheia de confusões e certezas, mas tudo o que queremos é fazer algo de diferente, que seja a nossa imagem. Ao fim, todos temos as nossas medalhas, advindas simplesmente da vontade de mudança. E, em Joinville, diante das dificuldades, o que pode parecer simples, banal e frívolo para uns vira grandes conquistas pessoais para outros. Alteridade.

Como já dizia o ditado, "ninguém é profeta em sua terra". Tá na hora da minha terra aprender com seus próprios erros, sem precisar do chato aqui para "encher o saco".

A vibe agora é outra.

PS: cadê a Leroy Merlin?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O racismo naturalizado


POR FELIPE CARDOSO

Após entrar em um longo e produtivo debate no meu Facebook sobre a “ação solidária” para com Adriano, morador de rua de Joinville, pude perceber que as ideologias colonizadoras de branqueamento, higienização e etnocentrismo não só fazem parte da nossa sociedade, como já estão naturalizadas, o que as tornam mais difíceis de serem desconstruídas e contribuem para a propagação do racismo. Logo, e infelizmente, o racismo já se naturalizou na nossa sociedade.

Nem todo o material teórico parecia ser capaz de explicitar e exemplificar a minha análise crítica sobre o caso. Então, recorri a minha monografia para tentar explicar um pouco mais do que acontece diariamente com os corpos negros, mutilados em busca do padrão de beleza que, em sua maioria, é europeu.

Branqueamento e higienização nada mais são do que ferramentas do racismo, que é causado pelo etnocentrismo, por onde pretendo iniciar a minha explicação.

Nas expedições em busca de novos territórios, o europeu ao se deparar com um novo povo, teve a experiência do choque cultural. Esse choque se dá pelo encontro com a diferença que representa uma ameaça, pois fere a própria identidade cultural.

Isso explica o motivo dos europeus inventarem diversas teorias que comprovavam que os africanos eram inferiores. Tal pensamento europeu é reconhecido como etnocentrismo, o que Everardo P. Guimarães Rocha, em seu livro “O que é etnocentrismo”, define como:

“... uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.”.

Então, após tomarmos o choque ao vermos Adriano, automaticamente tentamos colonizá-lo com a nossa visão de mundo, com os nossos valores e pontos de vistas que fomos ensinados a ter e propagar. O incômodo que um morador de rua nos causa é justamente por ele representar o “diferente” no nosso mundo. Não procuramos entende-lo, respeitá-lo e preservá-lo. Tentamos de todas as formas traze-lo para a nossa realidade, para o nosso cotidiano, pois o “eu” está certo, o centro somos “nós”, com empregos, carros, rotina. Ele está à margem, é o desempregado, o inferior, representa o insucesso.

Além de ser morador de rua, Adriano é negro, e optou por deixar seu cabelo crescer.

Com a educação brasileira pautada na Europa e a construção e preservação da cultura escravista desde o período colonial, sempre nos foi apresentado e ensinado que o que era do branco era bom e, tudo o que tinha de ruim, pertencia ao negro. Assim, a partir da representação do negro enquanto um ser não civilizado, o branco forjou a sua própria imagem como civilizado e distinta por sua superioridade. Dessa maneira, o negro começou a desprezar a si próprio e tomar como verdade a imposição do branco.

“O processo escravista de colonização, associado a uma catequese opressora, conseguiu engendrar mudanças fundamentais na auto visão do negro. Após gerações de perda absoluta de direitos e dos valores, a visão do negro sobre si mesmo absorveu influências da concepção escravista da época” (AZEVEDO, Eliane –Raça - Preconceito e conceito, p. 48).

Tudo isso somado a tentativa de branquear o país, principalmente a região sul, trouxe ainda mais consequências ruins para a população negra.

Para tentar permanecer e sobreviver no Brasil industrializado, os negros tiveram que se adaptar ao modelo imposto pela elite branca da época. Com intuito de lucrar, a indústria de cosméticos passou a produzir produtos exclusivos para os negros recém-libertos, fazendo-os pensar que, utilizando tais produtos, ficariam brancos e seriam, assim, incluídos na sociedade. Alisar o cabelo, passar pó de arroz, afinar o nariz, a boca... Gerando, assim, uma crise na identidade étnica negra.

(Uma das exigências dos brancos para com os negros era que eles negassem seus traços, suas culturas, suas raízes e podemos perceber que tais exigências permanecem até hoje).

 Mas a partir da década de 1960, com o início da luta por direitos civis dos negros norte-americanos, houve uma grande mobilização para a preservação e o respeito da cultura e do povo africano, que acabou influenciando muitos países, inclusive o Brasil. Muitos movimentos começaram a surgir aqui e o cabelo afro tornou-se símbolo dessa época. O black power representava a resistência negra.

Mais uma vez, sentindo uma eminente ameaça, a elite branca decidiu enfraquecer tais movimentos, investindo duramente contra as comunidades negras.

No início da década de 1990, os black powers perderam a força, depois de muitos investimento para manchar a imagem de quem apreciava e preservava a cultura afro. O black power perdeu espaço para os cabelos raspados e, principalmente, alisados. E foi aproveitado dessa situação para construir, novamente, no imaginário popular, que o cabelo grande representava a falta de higiene e que o melhor padrão a ser utilizado pelos homens negros era o cabelo raspado e, para as mulheres, alisado. Essa ideologia foi passada por meio de piadas, publicidade, novelas, com comentários semelhantes ao do tempo da escravidão.

Depois da virada de século é quase raro você encontrar pessoas negras usando black power. Adriano fazia parte dessa raridade. Mesmo em uma cidade provinciana, racista, que cultua uma única cultura, Adriano representava a resistência negra. Destacava-se ainda mais por ter um estilo diferente de todos os outros moradores de rua. Todas as roupas que ele ganhava, ele vestia, e assim, seguia. Mas o que dava todo o estilo e toda a sua identidade era o seu cabelo. E, pelo visto, era o que mais incomodava também... Os outros, é claro.

Durante três anos tentaram convencê-lo a cortar. Ele resistiu o quanto pode, até aceitar.

Mas o fato de ele passar por uma mudança “ESTÉTICA” ganhou destaque.  Adriano, que era tratado como qualquer outro morador de rua (à margem da sociedade, invisível) recebeu muita atenção por ter deixado seus traços para trás. Mais uma vez houve festa na Casa Grande. Mais um negro negou a sua raiz. Mais um negro entrou para o padrão de beleza branco. Ficou “IRRECONHECÍVEL”, ou seja, quase um branco.

“Dissemos quase, agora pode voltar pra rua, pra marginalidade”.

“Agora ele está agradável aos “nossos” olhos. Agora não terei mais aquele choque cultural quando estiver indo para a casa ou para o trabalho. Agora ele está do jeito que “eu” queria e gostaria que ele sempre estivesse. Que conforto. Que alívio.”.

Esse ato praticado com Adriano representa sim o racismo, a falta de entendimento e aceitação da cultura negra. E achar que é um simples caso de solidariedade, sem tentar analisar tudo isso que foi citado, toda a história por trás da nossa vivência ou é maldade, ou inocência, ou falta de conhecimento. O que está sendo criticado aqui é a perpetuação dessa cultura racista, colonizadora, recheada de padrões, rótulos e ignorância.

Se Adriano fosse branco, de olhos azuis, com traços finos, talvez tivesse a oportunidade de virar modelo, sair das ruas. Pois segundo a nossa sociedade que “não é mais racista”, a rua não é lugar para branco estar.

Se os erros do passado continuam acontecendo hoje, se ainda tudo o que é/vem do negro ainda é visto como ruim e tudo o que é/vem do branco ainda é visto como bom e como superior, ainda existe racismo. E nesse caso, após essa análise, espero que tenha ficado evidente.

No mais, fiquem avisados: vai ter crítica sim e vai ter militância também. Se ficar reclamando, ou com raiva, ou até mesmo em silêncio, vai ter do mesmo jeito. Não nos calaremos!

Nosso cabelo não é moda, não é tendência. Nosso cabelo é nossa identidade. Nosso cabelo é resistência!

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O princípio de Peter

POR JORDI CASTAN



O conceito Princípio de Peter foi desenvolvido por Laurence J. Peter e Raymond Hull, no livro "O Principio de Peter", em 1969. É bem conhecido entre os administradores e empresários e preconiza que, nas organizações, as pessoas mais cedo ou mais tarde são promovidas a cargos acima do seu nível de competência e neles permanecem. O resultado é que a empresa ou a organização é liderada por pessoas que não têm a competência para a função que ocupam.

A política não é alheia a este princípio de administração, que se cumpre a perfeição. Em alguns casos, a perfeição vem adereçada com a distribuição de cargos entre aliados. Assim, como resultado de priorizar a fidelidade partidária acima da competência, teremos o pior dos dois mundos.  Com frequência, nos perguntamos por que são sempre promovidos aqueles que têm se especializado em participar de reuniões, mestrado em obviedades ou doutorado em puxar saco.

Os mais perigosos são os que desenvolveram a capacidade de nunca tomar decisões. Estes chegam a ser mais nefastos do que os que tomam decisões erradas, porque estes são mais facilmente identificados como incompetentes e poderiam até ser extirpados do sistema. Na maioria dos casos, esse é o perfil dos que são promovidos aos cargos mais altos da gestão pública. Uma vez, ao perguntar por que numa determinada fundação tinha sido promovido a presidência alguém tão manifestamente incompetente, a resposta foi que como nas bibliotecas os livros menos interessantes e os que são menos lidos estão nas prateleiras mais altas.

Merece especial estudo o caso das empresas e organizações que, quando querem se desfazer de algum funcionário mais graduado - e frente à necessidade de buscar uma saída honrosa para anos de laboriosa incompetência- se busca o que comumente se denomina “cair para cima”, promovendo-o para um cargo em que possa representar menos perigo para os interesses da empresa.

Isso pode explicar porque aparecem periodicamente grandes gestores assumindo assentos em prestigiosos conselhos e diretorias ou em importantes cargos públicos. O interessante do Princípio de Peter é quando uma pessoa assume um cargo acima do seu nível de competência e não há como dissimular mais a sua “capacidade” é quando até as crianças percebem que o rei está nu. 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O país do atraso


POR VALDETE DAUFEMBACK NIEHUES

Enquanto preparava o almoço de domingo passei por alguns canais de TV à procura de reportagem que trouxesse conteúdo informativo. Nesse movimento, visualizei cenas de uma comunidade que imediatamente identifiquei tratar-se de Noiva do Cordeiro, localizada em Belo Vale, Minas Gerais, pois já havia assistido um documentário narrado por Lya Luft sobre este lugar que guarda uma história carregada de sentidos, de persistência, de experiência de vida de mulheres que, por gerações, foram amaldiçoadas e estigmatizadas pela igreja e pelas comunidades vizinhas, obrigando-as ao isolamento. 

Logo percebi que as cenas exibidas eram tão somente para contextualizar uma apresentação coreográfica de Keila Fernandes, moradora de Noiva do Cordeiro. Como não estava interessada em programa de entretenimento fui logo mudando de canal, porém, antes que assim fizesse, o senso comum da narrativa do apresentador sobre a capacidade intelectual e artística de quem mora no campo, se constituiu em um convite para continuar assistindo. Em tom sensacionalista o sujeito desfiava repetidamente frases como se mantra fosse: “Da roça para o palco [...] uma mulher da roça, que planta [...] que pilota trator [...] artista que interpreta Lady Gaga...” Como se quem vivesse da agricultura não fosse capaz de ingressar no mundo artístico, ou não possuísse autonomia intelectual para vencer os obstáculos sociais. 

Na hora, lembrei da colonização européia quando negros e índios, considerados intelectualmente incapazes, eram levados para a Europa e, em pequenos cercados, como animais, ficavam à mostra sob observação de expectadores. 

Não estou à risca fazendo associação dos fatos, nem mesmo comparando os dois episódios, mas doeu na alma a falta de discernimento do apresentador do programa televisivo, que conceitualmente vive o período em que as primeiras noções do pensamento desenvolvimentista relacionavam a cidade com desenvolvimento e o campo com atraso. Desse equívoco, para representar o mundo rural, saiu das páginas de Monteiro Lobato, o Jeca Tatu, um sujeito desprovido de vontade, desanimado e intelectualmente incapaz de sair da situação em que se encontrava e, em poder dos urbanos, esse personagem ganhou contornos simbólicos de discriminação e preconceitos que atingiram milhares de pessoas que trabalhavam na lavoura. 

Na pesquisa que desenvolvi sobre o “ajustamento” do trabalhador rural nas fábricas de Joinville, em entrevista, operários afirmaram que se sentiam diminuídos como agricultores pela desvalorização de seu trabalho. Vistos como “colonos”, conceito pejorativo usado pelos urbanos, eles preferiram abandonar a lavoura e se tornar operários porque parecia ser mais nobre trabalhar no chão da fábrica, preso a uma rotina de atividades fabris, do que a produzir alimentos. 

Os trabalhadores de chão de fábrica, desde a revolução industrial, sempre foram reconhecidos por operários, enquanto aqueles que trabalham na lavoura passaram por várias denominações, entre as quais, camponeses, lavradores, agricultores, produtores rurais ou empreendedores rurais, sendo que as atividades são as mesmas, apenas mudam de acordo com as necessidades do mercado. 

O êxodo rural acentuado a partir da política desenvolvimentista, a qual foi responsável pela formação do desastroso e insustentável modelo de aglomerado urbano, só parou de expandir com a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que formulou políticas públicas e programas de apoio à agricultura familiar. Comunidades com maior potencial de organização comunitária conseguem captar recursos financeiros para desenvolver atividades econômicas associadas ou não à agricultura e, assim, garantir a permanência de jovens no campo, como o caso de Noiva do Cordeiro. Geralmente são as atividades não agrícolas que dão visibilidade midiática às famílias rurais. Isso porque em nosso país, por razões históricas e culturais, ainda se cultiva a ideia de atribuir atraso intelectual aqueles que trabalham no campo. 

Os cursos que preparam profissionais para atuarem nos meios de comunicação precisam se esmerar em saberes propostos por Paulo Freire, a fim de garantir a autonomia de uma elegante fluidez em várias áreas do conhecimento, sem haver a necessidade de comunicar por meio de expressões sensacionalistas que além de reforçar estereótipos e preconceitos, em nada contribuem para democratizar informações.