POR
CLÓVIS GRUNER
Alguns
eventos precisam acontecer; outros, precisam não ter acontecido. Eleito pela
primeira vez em 1994, FHC chegou ao governo como principal protagonista de um
projeto de “20 anos de poder”, nas palavras do então ministro Sérgio Motta. A
um ano da eleição de 1998, no entanto, um dilema: como manter-se duas décadas
no poder sem um candidato forte para substituir o presidente? Os tucanos
enfrentavam o mesmo problema do PT anos depois, porque cometeram exatamente o
mesmo equívoco, apostar todas as suas fichas em um único carisma.
A
solução encontrada por “Sérjão”, uma espécie de José Dirceu do governo tucano,
foi simples. Como a Constituição de 1988 não
previa a reeleição, FHC comprou parte do Congresso e aprovou a emenda da
reeleição. Em bom português, ao mudar a Constituição em seu benefício, deu um
golpe branco que custou aos cofres públicos milhares, talvez milhões de reais. Os
detalhes, como em todo caso de corrupção, são sórdidos. Estima-se que foram
comprados cerca de 150 parlamentares, pagos em dólares. “O pessoal votava a favor e na saída do plenário já
tinha gente esperando para acertar o pagamento junto a doleiros. Não tinha erro”,
confidenciou recentemente a um jornalista um dos deputados beneficiados com o “mercado
da reeleição”. O resultado da farra? Nenhum. Com maioria no Parlamento, FHC
conseguiu barrar a instalação de uma CPI. O procurador Geraldo Brindeiro – não por
acaso chamado à época de “Engavetador Geral da República” – encarregou-se de
enterrar a denúncia. Sérgio Motta morreu em 1998, poucos meses antes de ver seu
chef-d'œuvre
concluído, com a
reeleição de FHC no final daquele ano, em primeiro turno.
Do roteiro
acima, a maioria se lembra apenas da reeleição, como se ela tivesse acontecido
em clima de normalidade. O esquecimento, como a lembrança, não é natural. Desde
1997 e ao longo dos anos seguintes, houve um esforço conjunto, orquestrado
pelas lideranças tucanas e seus aliados – fora os demos, basicamente os mesmos
que hoje apoiam o PT, incluindo José Sarney –, além obviamente dos meios de
comunicação, para condenar ao limbo o episódio. Não nego ao governo tucano seus
méritos. Esse é um deles: FHC e seus asseclas construíram um “não evento”. Claro,
as tentativas de produzir o olvido, por eficientes que sejam, só conseguem resultados
provisórios. Há sempre um espírito de porco disposto a lembrar que uma mentira
contada mil vezes não se torna uma verdade, mas apenas uma mentira contada mil vezes.
"EU VEJO PESSOAS CORRUPTAS" – Tudo muito diferente de outra narrativa, protagonizada também
por um governo envolvido em denúncias e práticas de corrupção. Desde o nome, “Mensalão”,
quase toda a trama foi tecida de maneira a produzir um evento que precisava ter
acontecido. Um dos pontos altos veio na semana passada, com as primeiras prisões
dos condenados. Não me sinto particularmente
comovido ao ver presos José Dirceu e José Genoíno: se todo aprisionamento é em
si absurdo e violento, esse não deveria me deixar mais ou menos indignado. Por outro lado, não se trata de uma prisão qualquer, e que ela tenha
ocorrido no simbólico 15 de novembro e sob os holofotes da chamada grande mídia, é
apenas um dos elementos do espetáculo.
Não se trata de uma prisão comum porque Dirceu e
Genoíno não são prisioneiros comuns: gostemos deles ou não, ambos são figuras
emblemáticas na trajetória da esquerda brasileira e particularmente do PT. Não
sei a extensão da responsabilidade de ambos e do PT no processo em que foram condenados
– e, pessoalmente, penso que a verdade está em algum lugar intermediário entre
o discurso de ódio da direita e a defesa exasperada dos governistas. Mas é
notório que o STF e particularmente Joaquim Barbosa, serviram particularmente
neste episódio a interesses que não necessariamente os da justiça.
Fosse
assim, junto com Dirceu e Genoíno ou mesmo antes deles, outros já teriam sido punidos.
Fernando Henrique Cardoso usou dinheiro público para salvar da falência o banco
onde seu filho era sócio-diretor. Paulo Maluf está na lista de procurados da
Interpol. Eduardo Azeredo, do PSDB, deu início em Minas, e com o mesmo Marcos
Valério, ao esquema que condenou Dirceu e Genoíno. Demóstenes Torres,
ex-senador Democrata, e seu cúmplice Carlinhos Cachoeira, enriqueceram fazendo
da política uma extensão do crime organizado. José Serra, Geraldo Alckmin e
Gilberto Kassab impediram que nos últimos anos quase meio milhão de reais
entrassem nos cofres do estado de São Paulo. Estão todos livres e, suspeito,
continuarão exatamente assim.
QUEM
CONTROLA O PRESENTE – Todo
mundo tem o direito de aplaudir a prisão dos dois Zés do PT, mas daí a
acreditar que se está a combater a corrupção vai uma distância: nunca se
prendeu corruptos nesse país, e o reality show dirigido pelo Ministro Barbosa
mantém a tradição. Ao prender Dirceu e Genoíno, não se pretendeu dar uma “lição
aos corruptos”, como afirmou outro ministro do STF, fazendo coro à capa de
uma revista semanal. O alvo era outro, o PT. Mas com que propósito?
Tenho
dúvidas se os fins são exatamente eleitorais. Em 2006, ano em que explodiu o
escândalo, o máximo que a oposição conseguiu foi levar a eleição para o segundo
turno, e amargou o vexame de ver Geraldo Alckmin ganhar menos votos do que no
primeiro. No ano passado, e apesar do providencial ajuste na agenda do STF para
fazer coincidir o julgamento com a campanha eleitoral, o PT conseguiu eleger
Fernando Haddad, o que parecia ainda mais improvável que a eleição de Dilma
Rousseff. E embora seja muito cedo para prognósticos seguros, pesquisas
indicam que ela mantém hoje larga vantagem sobre seus virtuais opositores.
Na falta de um projeto para o país, a oposição pode continuar a apostar no discurso moralizante, embora ele já não convença muita gente vindo de onde vem. Particularmente, acho que o propósito é outro. Em uma passagem emblemática de “1984”, de George Orwell, o personagem O'Brien afirma, a um impotente Winston Smith, que “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”. O que está em jogo não são apenas as eleições presidenciais, mas qual interpretação sobre os acontecimentos políticos passados e coevos prevalecerá. Na “novilingua” forjada pela oposição e por parte da mídia nativa, seus colunistas e blogueiros, a urgência não é moral – a nenhum deles interessa combater a corrupção e os corruptos, nenhum deles está preocupado com a coisa pública –, mas narrativa. Fazer o acontecimento e produzir o não acontecido. E ao menos por enquanto, quem continua a escrever a história são os vencedores.