POR CLÓVIS GRUNER
Claro, pouco importa se aqueles poucos insurgentes estivessem dando,
se não o primeiro, mas um passo decisivo no processo que culminaria, dali a
três anos, com a independência dos Estados Unidos. Querem proclamar a
independência? Proclamem-na, mas em fila indiana, mantendo a ordem e com respeito
à propriedade. “Peraí!”, reclamarão logo os defensores da História com “H”
maiúsculo, “então justo você, historiador, está a comparar Thomas Jeferson com
estudantes levando vinagre na mochila, a independência americana com as
manifestações de rua no Brasil?”. Sim e não. Não porque os contextos são outros
e uma análise madura precisaria levar em conta suas
especificidades. Além disso, ainda não sabemos o que será e esperar da
movimentação das últimas semanas, ao passo que conhecemos o fim da história da
Revolução Americana.
Por outro lado, se incorro no pecado do anacronismo, o faço movido por
uma boa razão. Há um elemento comum entre o Boston Tea Party e a movimentação das
últimas semanas: os colonos americanos não sabiam (assim como os insurgentes da
Primavera dos Povos, em 1848; os operários do ABC, no final dos anos 1970; ou
os jovens tunisianos em 2010, entre outros exemplos), e não podiam saber, que
suas ações teriam repercussões para além do imaginado e desejado. Eles
desconheciam que em parte graças ao seu gesto, a história trilharia outros e
imprevisíveis itinerários. Já se falou muito sobre as mobilizações. Do que li,
uma das mais lúcidas análises foi publicada pelo jornal espanhol El País. Não
pretendo retomá-la aqui ipsis litteris, mas esboçar algumas considerações,
certamente provisórias, a partir de inquietações surgidas na esteira das
manifestações.
O passe livre é possível? –
Não estou inteiramente seguro disso, embora me incline a achar que sim. Há
estudos e experiências, inclusive em cidades brasileiras, que respondem positivamente a pergunta. Há outros a afirmar o contrário. Na segunda-feira,
dois líderes do MPL paulistano compareceram ao programa Roda Viva. Além de
expor a fragilidade intelectual e política de nossos
jornalistas, a entrevista serviu para desfazer
alguns mal entendidos e reforçar o caráter engajado e lúcido da movimentação: mesmo
que, pontualmente, a reivindicação seja pela revogação dos aumentos nas tarifas
do transporte público (o que já foi feito, de maneira oportunista, em Joinville, e nesta semana em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba), a luta é mais ampla. Porque em jogo estão alguns
direitos fundamentais, entre eles a humanização das cidades, a mobilidade
urbana e a ocupação do espaço público. E garantir o acesso ao transporte
público é condição fundamental ao exercício destes direitos.
O
gigante acordou? – Não, porque nunca estivemos adormecidos. A estratégia de
descaracterizar e despolitizar a movimentação foi o coringa dos grupos
conservadores – e eu falo dos governos, da mídia, seus colunistas e muitos de seus leitores – quando a
estratégia de criminalização não funcionou. Trocando em miúdos: depois que a
violência policial, elogiada pelo governador Geraldo Alckmin, negligenciada
pelo prefeito Fernando Haddad e incentivada por editoriais, colunistas e
blogueiros, mostrou-se um tiro no pé, os mesmos que autorizaram e legitimaram o
uso da força trataram rapidamente de tentar pautar o movimento, atribuindo-lhe outros
sentidos e significados. E como se não bastasse ver gente como Reinaldo
Azevedo, Merval Pereira, Arnaldo Jabor e Felipe Pondé ridiculamente tentando tornar-se
os porta vozes da indignação, eles o fazem ignorando nossa história, mesmo a
mais recente. Nunca fomos um “povo pacífico” – e a lista de revoltas, rebeliões
e movimentos insurgentes, desde os tempos de colônia portuguesa, estão aí a
atestar isso –, e não deixamos de ocupar as ruas e os campos do país. Mesmo o
MPL não apareceu do nada: ele foi criado em 2005, e somou forças a outras
movimentações sociais, urbanas e rurais, tais como os Sem Terra e Sem Teto, as marchas das vadias, os movimentos LGBT e negro, etc... Tampouco é
novidade a violência policial: ela é rotina nas periferias do país,
principalmente. Somos nós que não a vemos.
E
agora? – A mais inquietante e mais difícil das perguntas. Justamente
porque é um fenômeno novo, é difícil dizer com clareza para onde ele vai.
Não vai mudar o país, não como talvez esperam alguns: no final da passeata, não
nos aguarda a revolução. E no momento é isto o que mais me emociona e estimula. Atravessando a movimentação, como alguma coisa
incontrolável e certamente não planejada, está um discurso que tensiona não
apenas as velhas maneiras de pensar e fazer política, mas também as formas
tradicionais de liderança, as velhas mídias, nossa ainda frágil democracia,
nosso regime representativo, a crescente neutralização, se não o esvaziamento, do espaço público, etc... É óbvio que um movimento em grande parte
espontâneo e difuso, acabaria por atrair gente de interesses e demandas
igualmente difusos. É também uma estratégia da direita ampliar as
reivindicações para desviar a atenção do que é realmente importante, transformando
as manifestações em uma versão inchada da tentativa patética de indignação que
foi o “Cansei”. Não me espanta ver os logradouros tomados por reacionários
e conservadores. Espanta-me, sim, ver e ler gente de esquerda com medo das
ruas. A pluralidade faz parte da democracia e ela é inevitável. Se quisermos ver as ruas ocupadas
preferencialmente pelas demandas da esquerda – e de uma esquerda libertária, não
alinhada a partidos e governos –, temos de gritar mais alto que eles: não, não se
trata de uma luta "contra a corrupção" (só corruptos são a favor da corrupção), ou "contra tudo o que está aí" (quem é contra tudo, acaba por não ser a favor de nada), porque estas bandeiras atendem a um jogo eleitoreiro,
partidário e midiático, e não há julgamento do mensalão que mude esta percepção. O crescimento das manifestações não deveria servir de trampolim à atitudes protofascistas, ao oportunismo e ao patriotismo vazio. Mas nelas cabem reivindicações necessárias, tais como denunciar o crescente desrespeito aos direitos humanos pelo alinhamento do Estado aos
interesses conservadores e religiosos.
Talvez isso tudo não
dê em nada? – Depende do que se entende por “dar em nada” e do que
se espera quando milhares vão às ruas. Depende, em suma, do que se entende por
e se espera do político. A política, pelo menos a que se vive cotidianamente nas ruas, é imprevisível, e o futuro é indisciplinado. Embora acredite que mudar a posição inicialmente irredutível e autoritária de alguns governantes e, por extensão, a de parte da polícia, e obrigar a mídia a adotar outro discurso seja suficientemente significativo, acredito também que há momentos em que o simples gesto já traz em si seu
sentido e justificativa, independente do depois. Acho que vivemos nestes
últimos dias um desses raros momentos, em que é preciso gritar, em alto e bom
som, que ocupar as ruas não é crime, é um direito. E a isso se chama democracia.
Diverti-me nestes dias de ruas ocupadas a imaginar o que diriam nossa mídia e formadores de opinião dos 150 colonos que, numa noite de dezembro de 1773, disfarçados de índios, lançaram ao mar quilos de chá trazidos da Inglaterra, depois que um decreto real tornou obrigatório seu consumo e proibiu a produção interna. A maioria os acusaria de vândalos: nossos veículos reclamariam os privilégios da coroa inglesa, e como fazem mal jornalismo, acusariam logo os índios; Arnaldo Jabor enfatizaria, teatralmente, que se tratavam apenas de “saquinhos de chá”, para depois pedir desculpas pelo erro: os baderneiros, afinal, não eram índios. E não faltariam os comentários anônimos no Chuva Ácida, a defender furiosamente que os militares britânicos acertassem tiros na testa dos bárbaros, fossem índios ou colonos.