Corria o mês de junho, e o que começou como uma sequência de manifestações contra o aumento na tarifa do transporte público – no Brasil, historicamente caro, principalmente porque de baixíssima qualidade –, recebidas com a habitual truculência governamental, transformou-se rapidamente em uma das maiores mobilizações da nossa história republicana, e a maior desde as “Diretas Já”, em meados dos anos de 1980.
Sobre as manifestações, mantenho o que disse à época: a seu modo e muito peculiarmente, elas contribuíram para ampliar e tornar mais visível um processo de reinvenção da política por meio de uma ocupação do espaço público que o toma em seu sentido mais amplo: como um lugar de confrontos e conflitos, de afirmação das potencialidades insurgentes do presente mais que de promessas de redenção futuras.
Se para os observadores da política cotidiana tais características já apareciam em mobilizações como a “Marcha das Vadias” e as “Paradas da Diversidade”, entre outras, a força libertária e centrípeta do “Movimento Passe Livre” – minha personalidade do ano – deu nova dinâmica a esse processo. O slogan “Não é pelos R$ 0,20” deixou claro a quem quisesse entender (mas sempre há quem não queira) que o direito à cidade é, hoje, um debate central.
De quebra, o MPL e as manifestações colocaram na pauta do debate público a violência policial – e a necessidade de desmilitarizar a polícia –; o desgaste do modelo democrático centrado unicamente na política partidária e institucional; as contradições do modelo econômico desenvolvimentista patrocinado pelo governo petista; além do oportunismo da direita brasileira, sempre cansada. E trouxe de volta um pouco de paixão e criatividade à política.
Convenhamos, não é pouca coisa. País nenhum sai incólume de um acontecimento como esse. O Brasil também não.
Diverti-me nestes dias de ruas ocupadas a imaginar o que diriam nossa mídia e formadores de opinião dos 150 colonos que, numa noite de dezembro de 1773, disfarçados de índios, lançaram ao mar quilos de chá trazidos da Inglaterra, depois que um decreto real tornou obrigatório seu consumo e proibiu a produção interna. A maioria os acusaria de vândalos: nossos veículos reclamariam os privilégios da coroa inglesa, e como fazem mal jornalismo, acusariam logo os índios; Arnaldo Jabor enfatizaria, teatralmente, que se tratavam apenas de “saquinhos de chá”, para depois pedir desculpas pelo erro: os baderneiros, afinal, não eram índios. E não faltariam os comentários anônimos no Chuva Ácida, a defender furiosamente que os militares britânicos acertassem tiros na testa dos bárbaros, fossem índios ou colonos.