quarta-feira, 2 de maio de 2018

Espoliação urbana e déficit habitacional: crônica de tragédias anunciadas


POR CLÓVIS GRUNER
Em maio de 1978, o “Extra”, jornal joinvilense que circulou entre 1977 e 1988, publicava um contundente editorial sobre o problema da moradia e o processo de favelização em Joinville: apenas naquela década, o déficit habitacional passara de cinco para 15 mil residências e o futuro, segundo o jornal, era o “colapso”. O colapso não veio, ao menos não como o matutino temia, mas o problema persiste desde então.

Hoje, o déficit quantitativo (número de famílias que não dispõem de moradias em termos absolutos) é de aproximadamente 12 mil residências. Em termos de déficit qualitativo (grosso modo, a falta de condições básicas de moradia), são cerca de 27 mil residências. E isso em uma cidade com estimados 12 mil domicílios vazios, e algo em torno de 30 mil terrenos baldios ou subaproveitados – ou seja, sua área construída é menor que 10% do coeficiente de aproveitamento do lote. Uma coisa e outra são, em grande medida, resultado de um crescente monopólio imobiliário, construído por meio de investimentos industriais e da especulação, eventos que por vezes se confundem.

Começo com esses dados bastante genéricos sobre a situação local para lembrar que a tragédia ocorrida na madrugada de terça (01), em São Paulo, onde um edifício ocupado por cerca de 150 famílias desabou, não é um problema exclusivo da metrópole. São Paulo é uma cidade superlativa, e por isso suas mazelas sintetizam e reverberam uma situação gravíssima que não é nova nem está limitada a um único local. Em todo o país, estima-se em sete milhões o número de famílias que se enquadram no déficit habitacional quantitativo; o qualitativo é de 15,5 milhões - respectivamente, 22 milhões, algo em torno de 10% da população brasileira, e cerca de 48 milhões de pessoas.

Nas cidades de porte médio e grande, a situação se agravou principalmente em função do processo migratório que, a partir dos anos de 1950-60, deslocou milhares de indivíduos do campo para as regiões urbanas. A crescente especulação imobiliária, aliada à irresponsabilidade e negligência dos poderes públicos, empurraram famílias e grupos em situação vulnerável a morar em regiões cada vez mais periféricas e a ocupar imóveis ociosos, tornando-se às vezes reféns de movimentos cujos interesses, apesar da denominação, nem sempre são sociais – segundo relatos de moradores, o Luta por Moradia Digna (LMD), que gerenciava a ocupação no largo do Paissandu, cobrava dos residentes um valor acima do necessário para a manutenção do local. É provável que não seja o único.

Direito à cidade e à moradia – Nos anos de 1980, o sociólogo Lucio Kowarick cunhou o conceito de “espoliação urbana” para traduzir as desigualdades e os conflitos sociais que tinham como palco as cidades, decorrência da distribuição desigual dos resultados do desenvolvimento econômico industrial. A exclusão de grupos inteiros de condições dignas de habitação é, a um só tempo, continuidade e extrapolação das formas de extorsão características do mundo do trabalho, sobrepujando para a moradia a precariedade observada, por exemplo, nas fábricas. Mas a espoliação denunciada por Kowarick não diz respeito exclusivamente à falta absoluta de um teto.

Suas formas de manifestação são muitas e diversas: as longas horas despendidas em transportes coletivos de péssima qualidade; a inexistência de investimentos públicos – saneamento básico, pavimentação, praças e parques, ausência de equipamentos culturais, de lazer e esportivos, etc... –; a fragilidade das moradias e das condições de vida nas periferias; a exposição constante à situações de risco e de violência urbana, criminosa e policial, são algumas delas. Velhas conhecidas dos moradores citadinos, elas se constituíram em característica intrínseca de centros como Curitiba, cidade onde moro, equivocadamente tomada como modelo urbanístico por quem dela só conhece a propaganda oficial.

Nem a Constituição de 1988, que transformou a moradia em um direito, nem o Estatuto da Cidade, que sugere medidas efetivas para garantir ou ao menos ampliar significativamente esse direito, têm sido suficientes para evitar tragédias como a de São Paulo – e que custou, ao menos oficialmente, uma vida, a de Ricardo, conhecido pelos moradores do edifício como “Tatuagem” – e outras tantas pequenas tragédias cotidianas, cujas dores nem sempre saem no jornal.

Em uma declaração lamentável, mas que traduz a mentalidade de parte de seus eleitores (e não apenas os seus), o ex-prefeito e candidato a governador João Dória afirmou que o prédio havia sido ocupado por uma “facção criminosa”, tratando como criminosos, indistintamente, todos os moradores do edifício, e que a solução para o problema é “evitar as invasões”. Sobre a ausência de politicas habitacionais e os interesses escusos, públicos e privados, que sustentam e reproduzem a espoliação urbana, razão primeira de nossos problemas, nada além do silêncio. Um silêncio, aliás, nada surpreendente, além de significativo.

3 comentários:

  1. À meia dúzia de anônimos que estão a esperar a liberação dos seus comentários: eles não serão.

    :)

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  2. Ainda que de forma marginal, segue um linque para um documentário que fala sobre prédios abandonados em Joinville. Acho que pode contribuir de alguma forma para o debate.

    https://youtu.be/UeNuSsITQRA

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