sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Uma análise de conjuntura da negritude brasileira

Foto: Igor Alecsander

POR FELIPE CARDOSO

Os movimentos e intelectuais negros brasileiros sempre buscam fazer um paralelo entre o período escravagista e a atualidade. Se é preciso estudar a História para não repetirmos os erros do passado, os protagonistas da luta antirracista fazem isso há muito. Mas por mais esforços que façamos, a tal estratégia parece não render bons resultados.

Recentemente, uma matéria divulgada na The Intercept Brasil, mostrou-nos como o brasileiro ainda não conseguiu enxergar o período escravagista como algo extremamente violento que deixou uma enorme ferida aberta na nossa sociedade. A reportagem denuncia uma fazenda particular de uma cidade do interior do Rio de Janeiro que oferece aos “turistas” a oportunidade de serem, durante algumas horas, escravagistas.

“Se você desejar ser servido por uma pessoa negra vestida como escrava em pleno 2016, você pode visitar, por exemplo, na Fazenda Santa Eufrásia, em Vassouras, única fazenda particular tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Rio de Janeiro (Iphan-RJ) no Vale do Café, construída por volta do ano de 1830”.

O pior disso tudo é saber que, além desse serviço altamente desrespeitoso e racista, os donos dessas terras ainda recebem do governo indenizações por estarem localizadas em áreas quilombolas.

“Ou seja, os negros em Valença — assim como no resto do país — trabalharam muito, deram o sangue — literalmente — mas não conseguiram se mover na pirâmide social. Por outro lado, os donos de fazendas — que já não pagaram por trabalho — são indenizados quando suas terras são reconhecidas como terras quilombolas, aquelas onde pessoas escravizadas e seus descentes encontravam refúgio e resistiam contra a escravidão”
.

Mesmo com essas atrocidades, tentamos continuar evidenciando e denunciando tais injustiças e tentando relembrar sempre das dores e da violência sofrida pela população negra que enfrentaram e seguem enfrentando castigos brutais, encarceramento, estupros e assassinatos, devido a um fenômeno de exclusão que contaram com políticas públicas para serem implementadas. Justamente por isso, a análise de conjuntura da negritude brasileira não tem como ser feita separadamente, analisando apenas a contemporaneidade.

Devemos lembrar que os escravos eram produtos e determinavam o nível de riqueza dos colonizadores. Quanto mais escravos, mais renda. A terra era ainda uma concessão da Coroa. Essa lógica brasileira dura até 1850, quando começam a surgir no país leis que pretendiam “libertar” os escravizados gradual e lentamente, não garantindo nenhuma seguridade de vida, pois o intuito era o branqueamento do Brasil, por conta da elite brasileira da época acreditar que os negros e os indígenas eram os principais culpados pelo atraso do país e que não teriam capacidade de se adaptar ao novo modelo que vinha sendo implantado.

Então, em 1850, surge a Lei de Terras que, somada a Lei Eusébio de Queiroz (que proibia o tráfico de escravos), promulgada no mesmo ano, transforma as terras em mercadorias, que passam a contar como o indicador de riquezas. Com a promulgação dessas leis, os escravos que não tinham renda, mesmo após a libertação, ficaram impossibilitados de ter renda própria ou alguma garantia de moradia uma vez que não foram indenizados e não receberam nenhuma indenização por parte do governo. As duas leis permitiram que os recursos financeiros fossem redirecionados para outras áreas que pudessem criar alguma infraestrutura para o país, como as ferrovias, por exemplo. Além disso, a economia das lavouras passou a dar espaço à industrialização dos grandes centros que acabou por cercear e impedir a democratização da estrutura fundiária.

A Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários poderiam ser relembradas como um importante passo para a nação, não fosse a real intenção de dar legitimidade para a retirada da responsabilidade dos senhores de escravos sob crianças e idosos. Somou-se a esses fatores, a inexistência de políticas públicas que garantissem algum serviço de assistência básica para a população negra.

Além disso, a partir da década de 1870, começaram a chegar, no Brasil, as primeiras levas de imigrantes europeus que passariam a trabalhar como assalariados. A vinda desses imigrantes foi o resultado do plano de branqueamento do país que contou com a doação e o financiamento de terras, o reconhecimento das suas práticas religiosas, o direito a saúde e educação. Os donos das terras preferiram contratar os serviços dos europeus a contratar os escravos como assalariados.

Em 1888, por pressão da Inglaterra, que queria impulsionar a industrialização do país, é assinada a Lei Áurea que aboliu definitivamente a escravidão no Brasil, sem nenhum planejamento de integração dos negros e negras à sociedade, criando, assim, um abismo de exclusão e desigualdades: desemprego, falta de terra e moradia, sem acesso a saúde, educação e outros direitos fundamentais para a vida.

Vale lembrar ainda da Lei Penal em que desde o período Imperial do país os escravos não possuíam nenhum direito protetivo e eram tratados apenas como objetos. A falta de interesse do setor judiciário na alteração dessas mesmas leis impossibilitou as mudanças necessárias para construir de outra maneira a inserção da população negra no sistema republicano.

Se hoje os “menores infratores” que são vistos como problema e pautam a “redução da maioridade penal”, vale lembrar que são frutos do descaso do passado. Os mesmos “menores” que por muitos fatores abandonam os estudos precocemente e que também são frutos do descaso do passado.

Se atualmente vemos o encarceramento em massa da população negra e o alto índice de violência e do extermínio da juventude negra, percebemos que são consequências do histórico de descaso do passado.

Se hoje os idosos negros com doenças gravíssimas dependem de um sistema público de saúde precário, com profissionais que resistem em estudar a saúde da população negra e suas especificidades, são frutos do descaso do passado.

Se atualmente vemos a hipersexualização, os índices alarmantes de violência doméstica e casos de estupros envolvendo mulheres negras, percebemos que são fruto de um passado estruturado e institucionalizado no racismo.

Assim como vemos o posicionamento racista da opinião pública e diversos brasileiros contra a vinda de imigrantes negros para o Brasil, supondo uma série de desastres políticos e econômicos para o país. A capacidade ilimitada de empregarem pessoas negras somente em cargos subalternos, também são frutos do descaso do passado.

Por essas e por tantas outras atrocidades cometidas contra a população negra, com o respaldo das leis brasileiras, temos que fazer a análise de conjuntura de maneira separada da população não negra, evidenciando a grande desigualdade social, econômica, política e cultural existente no Brasil que também sofre influências externas por conta dos interesses financeiros, e que divide e hierarquiza a classe trabalhadora não apenas por meio da classe social, mas também pelo gênero e pela raça.

Mesmo com todas essas evidências históricas demonstradas resumidamente neste texto, ainda temos que explicar e justificar detalhadamente os motivos de condenarmos o racismo descarado existente na Fazenda Santa Eufrásia, em Vassouras, na encenação de um dos piores períodos do mundo.

Alguns brasileiros são tão hipócritas e racistas que conseguem sentir as dores dos sírios e dos judeus, estudar e propagar as suas histórias com responsabilidade e respeito, mas não se sensibilizam e não se esforçam para mudar a realidade dos milhares de negros e negras mundo a fora.

2 comentários:

  1. E o Negritude Jr. Não é racismo?

    ResponderExcluir
  2. Os argumentos são antigos e na grande maioria válidos, porém a vitimização não ajuda a resolver a situação atual. Sugiro que passe a pensar em propostas reais. Quais as políticas de compensação, quem vai pagar e por quanto tempo estarão vigentes?

    Anderson Titz

    ResponderExcluir

O comentário não representa a opinião do blog; a responsabilidade é do autor da mensagem