quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Sobre consciência

POR CAROLINA PETERS

Quando eu cursava a pré-escola em uma escola pedagogicamente progressista em Joinville - das poucas, talvez a única naquela época - montamos uma peça sobre a escravatura. A professora montou. Nós encenamos.

Tínhamos por volta dos cinco ou seis anos. Lembro que houve sorteio para os papéis mais disputados: a saber, duas crianças para simular apanhar no tronco. Em uma peça sem falas, eram o papel que permitia maior expressão. A mãe de um amigo, dona de uma farmácia de manipulação, forneceu tinta hipoalergênica para que nos tornássemos todos pretos por uma noite. Quase todos. 

Não houve concorrência para interpretar o casal de sinhôs, mas lembro da insistência dos pretendentes ao cargo. Apesar da pouca idade e discernimento, esse episódio me marcou porque foi uma pessoa muito próxima a mais insistente. Me entristeceu. 

De forma geral a turma se empolgou com a perspectiva de representar numa pele de outro. Não havia nenhuma criança negra em nossa turma, de cerca de 20 alunos. Pareceu para alguém - para as coordenadoras pedagógicas, professoras, possivelmente para os pais - uma ótima ideia. Hoje a cena me parece simplesmente absurda e as fotos em alguma medida me constrangem.

Será que ao invés da cenografia e caracterização, não seria interessante uma experiência, um contato com a história de privação de liberdade a que submetemos humanos como nós, em que fossemos nós mesmos, e não um outro, tão distante? A escravidão parece um evento distante na linha do tempo pra quem chegou à liberdade 300 anos antes. Mas pra quem viveu, foi só outro dia.

Eu concordo com o raciocínio de Chico Buarque acerca da população brasileira altamente miscigenada, mas discordo de sua conclusão. O racismo independe da genética. É construído histórica e socialmente. O segurança do shopping e a polícia sabem bem distinguir quem é branco e quem se enquadra na "cor: padrão" do procedimento policial de reconhecimento de suspeitos.

Por que cotas? Por que feriado? Por que ações afirmativas estão muito longe do racismo?

A "consciência branca" não é necessariamente um movimento fascista organizado. É a tranquilidade que alguns de nós, por termos nascido com determinado fenótipo, temos de que podemos chegar em quase qualquer lugar que quisermos. De que, apesar da reserva de vagas, nosso acesso aos melhores cursos das melhores universidades; e posteriormente aos melhores postos de trabalho, é provável. É termos sido crianças de seis anos que, apesar de representar escravos, nunca podaram seus sonhos de "quando crescer", ainda que a vida tenha sido bem diferente das aspirações.

Consciência negra, porque a vida de um jovem negro vale tanto quanto a minha. Porque uma mulher negra ganha em média 40% do que ganha um homem branco no desempenho da mesma função, segundo estudo do IBGE. Porque uma criança negra também pode sonhar ser o que quiser.

Um comentário:

  1. O problema do dia da consciência negra é justamente o seu propósito: lembrar que, aos olhos da sociedade, somos diferentes.

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