O golpe de 1964, que iniciou a ditadura civil-militar no Brasil, fez 50 anos na terça-feira, 1º de abril, e gerou muita discussão sobre o assunto, o que é ótimo. Por outro lado é triste que nesses debates haja a defesa do indefensável. Ou seja, a defesa do regime militar.
Alguém pode questionar: “Ué, quer discutir mas não quer que defendam a ditadura?”
Sim, é isso mesmo. Eu lamento que 50 anos depois tenha gente que a defenda, principalmente porque os argumentos são baseados em mentiras construídas pelo regime. Um caso bem claro é o dito “Milagre Econômico”.
Dia desses, um cara, segundo ele da área econômica, teceu loas ao desenvolvimento econômico do período ditatorial. Falou da industrialização e do desenvolvimento da infra-estrutura, com suas rodovias e hidrelétricas, entre outros. Justificou, assim, o aumento da dívida durante o regime militar.
Esqueceu, no entanto, que tal desenvolvimento industrial e estrutural ocorreu apesar da ditadura, e não por causa dela. Esqueceu que anos antes Juscelino Kubitschek já havia continuado o processo de industrialização (a primeira industrialização ocorreu em outra ditadura, de Getúlio Vargas) em plena democracia. Esqueceu também que a pobreza e a desigualdade social aumentaram no período. Esqueceu ou nunca soube de nada disso, muito por causa de uma educação rala que a ditadura militar tratou de destruir.
Esqueceu também (ou nunca soube), principalmente, que o Brasil vivia um período de ebulição cultural e política naqueles anos. Porém, veio a ditadura e jogou água na fervura. Aquela geração poderia ter feito muito pelo Brasil, mas a ditadura a calou. Sobre isso, indico a leitura de “Trinta anos esta noite”, o relato de Paulo Francis – já à época um defensor do capitalismo – sobre o golpe e sobre a ditadura e seus efeitos.
Nem vou citar que as reformas de base propostas por Jango, sobre as quais se sustentava a ideia de que haveria um golpe comunista. Sugiro a leitura do texto do Clóvis Gruner, publicado no dia dos 50 anos do golpe:
50 anos, hoje.
Para mostrar como a ditadura foi um lixo que gerou miséria e burrice, cito o caso de Santa Catarina, especialmente de Joinville. Na metade do século 20, cerca de 70% da população catarinense vivia no campo. Veio a ditadura e começou a injetar dinheiro nas empresas dos amigos. Era o tal do desenvolvimento. Empresas como a Tupy e outras grandes receberam gordas verbas do governo para ampliar o parque e a produção industrial. O problema é que a cidade ainda era pequenina e que Santa Catarina era um estado predominantemente agrícola. E agora?
Bom, se vocês são joinvilenses, perguntem para seus pais e avós, que vieram do interior de SC, PR, SP, RS e outros. As empresas iam buscar as pessoas de ônibus, de kombi, de tudo que é jeito. A população, paupérrima, sem acesso à nada, topava vender sua terrinha para tentar vida nova na cidade. Muitas vezes sofria influência do padre, que às vezes recebia uma graninha das empresas para fazer propaganda. Qualquer pessoa com dois dedos de testa, como diz o Baço, sabe da influência que o padre exerce no campo, principalmente naquela época.
O resultado disso foi que cidades como Joinville receberam milhares de pessoas nesse período, mais do que o dobro da população. Além disso, o Estado não investia em infra-estrutura para as pessoas, que foram morar nos mangues. Sem saúde, sem escola, sem esgoto. Praticamente todo o investimento estatal era para beneficiar o empresário, que hoje é endeusado como grande realizador.
Quando chegou a crise do petróleo, nos anos 80, acabou o emprego, mas o trabalhador continuava em situação de miséria. E sem condições de voltar para o campo, pois venderam as terras a preço de banana. O empresariado, no entanto, já estava com os bolsos cheios. Se você não consegue relacionar isso com a questão da violência urbana, com a falta de saúde, educação, moradia, me desculpe, mas está faltando dedo nessa testa.
A situação de Joinville se repetiu por todo o Brasil. Ou quando você acha que ficou complicada a coisa nas grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro?
Por essas e tantas outras coisas que é inadmissível “relativizar” a ditadura. E muito menos defendê-la. O debate poderia ser bem melhor se tivéssemos ultrapassado essa etapa da discussão. Como não ultrapassamos, ela precisa ser feita agora.
P.S.: Baseio minha argumentação em dois textos, principalmente. O primeiro é o livro "Crítica ao modelo catarinense de desenvolvimenro", de Ido Luiz Michels. O outro é a dissertação de mestrado "De agricultor a operário: Lembranças de Migrantes", de Valdete Daufemback Niehues.