terça-feira, 1 de abril de 2014

50 anos, hoje


POR CLÓVIS GRUNER

Há cinco décadas o Brasil acordou sombrio. Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, um golpe orquestrado por forças militares e civis colocava fim ao breve interregno democrático que se iniciara com o fim do Estado Novo, duas décadas antes. Uma democracia sitiada, é verdade, e em permanente estado de tensão. Frágil e confrontada pelo golpe, a ela se seguiu uma ditadura que se estendeu pelos 21 anos subsequentes, e cuja herança nos assombra ainda, como um espectro não inteiramente sepulto. O jornalista Luiz Cláudio Cunha resumiu assim o período e seu legado:  

“A conta da ditadura de 21 anos prova que ela atuou sem o povo, apesar do povo, contra o povo. Foram 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, cinco mil deles condenados, 1.792 dos quais por “crimes políticos” catalogados na Lei de Segurança Nacional; dez mil torturados nos porões do DOI-CODI; seis mil apelações ao Superior Tribunal Militar (STM), que manteve as condenações em dois mil casos; dez mil brasileiros exilados; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto 477 que proibia associação e manifestação; 128 brasileiros e dois estrangeiros banidos; quatro condenados à morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; três ministros do Supremo afastados; o Congresso Nacional fechado por três vezes; sete assembleias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa, à cultura e às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje”.

Desde o começo deste ano não faltam eventos a rememorar a data e avaliar suas muitas implicações: simpósios, colóquios, programas de TV, edições e cadernos especiais na imprensa, títulos memorialísticos, acadêmicos ou grandes reportagens revisitam sob diferentes prismas o período. Não pretendo um balanço exaustivo dessa produção, nem tecer sobre a ditadura algum comentário original. Mas como brasileiro e historiador, creio que é um compromisso, além de profissional, também ético e político, contribuir para que os eventos daquele fatídico 1º de abril não sejam esquecidos. E é nesse espírito que gostaria de retomar três questões sobre o assunto, que considero fundamentais:

Um golpe contra outro golpe – Consagrou-se em alguns círculos, e não apenas militares, a versão de que o golpe de 1964 fez-se para evitar outro. Trata-se, obviamente, de uma narrativa que interessa aos responsáveis pelas mais de duas décadas de ditadura, mas que não se sustenta em nenhuma das muitas evidências históricas sobre o período. Em entrevista concedida ao CPDOC da FGV, o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira fala das muitas “provocações” que antecederam o 1º de abril, essenciais para criar um clima de animosidade e conflito necessário para justificar a tomada de poder pela direita civil e militar. E embora admita a tendência à radicalização de algumas lideranças ligadas a João Goulart, é enfático quanto à inexistência de qualquer condição ou pretensão golpista, dentro e fora do governo: a principal força de esquerda, o PCB, além de atuar na ilegalidade, tinha um perfil muito mais reformista que revolucionário.

Havia um ambiente de conflito, em parte decorrente da Guerra Fria e do fantasma da ameaça soviética. Se desde o início da década de 60 falava-se do “perigo comunista”, em um contexto de acirramento das tensões e posições políticas, o “perigo comunista” se transformou na ameaça de um golpe que instauraria uma “república sindicalista” aos moldes da revolução cubana. Mas fora da propaganda que ajudava a alimentar a atmosfera golpista, a realidade era diferente. Se por um lado as experiências de Cuba e da Argélia, ainda recentes, inspiraram parte da esquerda brasileira, essa mesma esquerda não tinha pretensões nem tampouco fôlego para qualquer coisa que, mesmo remotamente, sugerisse a revolução e o golpe.

Insisto: os principais grupos e lideranças de esquerda eram reformistas: falavam e defendiam a reforma agrária e as reformas de base; reivindicavam o nacionalismo contra o capital estrangeiro; produziam uma cultura que se pretendia “popular” como um meio de “desalienar” as massas demasiadamente influenciadas pelos padrões culturais tidos por imperialistas, etc... A ameaça de um “golpe comunista” é apenas mais uma mentira perpetrada pelos artífices da ditadura. Repetida tantas vezes, ainda há quem nela acredite. Mas isso não a torna uma verdade.

A ditadura não foi apenas militar – Não haveria golpe nem uma ditadura que perdurou por duas longas décadas sem a estreita colaboração de militares e civis. Foi essa aliança que sustentou a ditadura, inclusive financeiramente: hoje sabemos de empresários e grupos empresariais que levaram sua adesão ao regime para além da simpatia, ajudando a financiar a máquina da repressão que começa a funcionar já em 1964.

Também fundamental, e que finalmente tem merecido a devida atenção de pesquisadores, foi o apoio dos meios de comunicação. Desde os pequenos jornais do interior – como a joinvilense “A Noticia” –, até a chamada “grande imprensa” – “O Globo”, “Folha” e “O Estado de São Paulo”, entre outros – raras, raríssimas foram as exceções: os meios de comunicação não apenas ajudaram a fomentar o golpe, colaborando para que se instaurasse no país um ambiente de terror e temor. Consolidado o governo militar, poucos foram os que recuaram efetivamente em seu apoio inicial, declarando abertamente sua contradição. A maioria manteve-se titubeante, em parte pela ameaça da censura, mas também porque continuava a reconhecer a legitimidade do governo militar.

E há, conhecidos, aqueles casos em que o apoio perdurou ao longo dos 21 anos de ditadura, como a Rede Globo, numa relação promíscua em que os sucessivos governos foram beneficiados com o suporte midiático, tanto quanto beneficiaram empresas e empresários de comunicação. Aliás, nunca é demais lembrar que se a cultura da corrupção está, ainda hoje, impregnada na vida política do país, ela encontrou no ambiente instaurado pelo golpe de 64, um terreno fértil. Foram duas décadas de corrupção e impunidade, favorecidas ambas pela certeza arrogante que tem os governos autoritários, que nada nem ninguém os ameaçam.  

Resistências e repressão – A repressão feroz que se abateu sobre toda e qualquer forma de oposição, tem sido recentemente relativizada aqui e acolá, inclusive por alguns historiadores. Mas não há relativização possível quando se trata da garantia dos direitos humanos fundamentais, sucessivamente desrespeitados nos porões e Casas da Morte onde a ditadura humilhou, torturou e assassinou oponentes. Sobre esses, já se falou muita coisa, mas é preciso que se diga uma vez mais: nem toda oposição aos militares pegou em armas. A luta armada, aliás, representou uma ínfima parte de uma resistência que se fez também por caminhos institucionais – com a atuação do MDB, da OAB, de setores da igreja, entre outros –; intelectuais e artísticos, além das muitas tentativas de manter vivos e atuantes os movimentos sociais urbanos e rurais. A ditadura não perdoou ninguém e tratou a todos, indiscriminadamente, como criminosos e inimigos.

Pode-se dizer, hoje, que a luta armada foi um equívoco, e que aqueles que lançaram mãos às armas não pretendiam, efetivamente, a retomada da democracia, fazendo da oposição à ditadura um meio para se atingir um fim: a instauração do socialismo. Tudo isso pode ser verdade, e ainda assim nada disso justifica a violência do Estado. Primeiro, porque a correlação de forças era absurdamente desproporcional: um punhado de militantes, em sua maioria mal e parcamente armados e treinados, enfrentou o poder e o aparelho do Estado, com seus muitos mecanismos de inteligência e órgãos de vigilância, além das instituições repressivas, parte delas atuando clandestinamente. Não havia ameaça e, mesmo se ameaça houvesse, é terrorista o Estado que trata fora dos limites da lei cidadãos que, uma vez rendidos, já não oferecem nenhum tipo de resistência.

Mas não é só. Não é casual que a ousadia e a violência dos grupos armados e revolucionários aumentaram na proporção da truculência institucional, de que o AI-5, decretado no final de 1968, é o marco histórico definitivo. Nesse sentido, a ditadura não apenas forjou as condições para que parte da oposição optasse pela resistência armada. Ela forneceu as razões políticas para todas as formas de resistência que se opuseram a ela. É preciso que se diga, sem receio: é legítima a insurgência contra governos ilegais que se sustentam na e pela tirania. Sob esse ponto de vista, mesmo a luta armada traz intrínseca, apesar de seus muitos equívocos, uma aspiração que é não apenas legítima, mas democrática, ao se insurgir contra um governo, além de autoritário, ilegal, imoral, ilegítimo e corrupto, constitucional e politicamente.

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Nas últimas semanas li e ouvi inúmeras manifestações a pedir uma “intervenção militar”. O ápice dessa nostalgia autoritária foi a tentativa, patética e fracassada, de reeditar a Marcha com Deus pela Família. Nas cidades onde ocorreram, marcharam lado a lado militares; religiosos exaltados e fundamentalistas; tucanos e demos principalmente do baixo clero; eleitores sem partido descontentes com o governo do PT, a quem atribuem todo o mal que há no mundo; e militantes neonazistas, entre outros. Uma fauna apenas aparentemente diversa, que nas ruas e principalmente nas redes sociais apela pelo retorno ao autoritarismo.

O Brasil vive, principalmente desde FHC e Lula, um processo de aprofundamento e consolidação democráticos. Como toda democracia, a nossa também é frágil e precária, não porque ameaçada, mas porque em permanente construção e invenção. Estar atento às suas fragilidades implica, sim, criticá-la. Mas para fazê-la avançar, não para retroceder. Precisamos de mais democracia. Nunca de menos.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Este é um país que vai pra frente

POR ET BARTHES

Neste 31 de Março, não podíamos deixar de lembrar o infausto golpe militar. E nem esta musiquinha que a ditadura usou para "mobilizar" os brasileiros. 



Promiscuidade republicana

POR JORDI CASTAN


Difícil imaginar que algum dos nossos vereadores conheça o modelo republicano proposto por Montesquieu, baseado no equilíbrio entre os três poderes da república. Escreveu Montesquieu: "Não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Não existe liberdade, pois se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente".
Os nossos vereadores ou gazetearam essa aula ou não frequentaram a escola ou estão mais preocupados com os seus interesses particulares que com o bem publico. Numa atitude, diga-se, muito pouco republicana.
A promiscuidade entre executivo e legislativo em Joinville é tão escandalosa que não há a menor preocupação em dissimular. Jornais noticiam, divulgando nomes e cargos, quais e quem são os cargos comissionados, acomodados no executivo, que são indicados ou pertencentes à cota de cada vereador. Sem entrar em maiores detalhes, também vale a pena se informar sobre caminhões, escavadeiras e equipamentos locados, pela Prefeitura, e que pertencem a empresas - ou mantêm vínculos muito próximos - de vereadores e ex-vereadores.
É normal, nesse quadro, que o prefeito se ache no direito de dar um pito quando os vereadores não votam de acordo com os interesses do executivo. Há vereadores que mantêm uma relação de submissão ao prefeito, de tal subserviência que parecem ser comissionados e cujos cargos dependem da boa vontade do prefeito. A imagem dos chamados "vereadores da bancada", sendo lecionados pelo prefeito sobre como votar e o que votar, lembra a imagem da "Escolinha do Professor Raimundo".
Poucos vereadores têm conhecimento, capacidade, vontade ou a isenção necessária para fiscalizar o executivo. O risco de perder "bocas" e desempregar apaniguados faz que o legislativo municipal tenha se convertido num cartório de homologação dos atos do executivo. Isso faz que, sentindo a falta de fiscalização, o executivo fique cada dia mais arrogante e desavergonhado. Com ampla maioria e sem oposição, há uma tendência a prepotência e a descumprir prazos e procedimentos. A pressa tem se provado uma péssima conselheira.
A esse quadro há que acrescentar ainda a figura dos vereadores-secretários, que ocupam cargos no executivo, permitindo que a camara se encha de vereadores suplentes. Os suplentes são zumbis sem poder político, que não podem ter opinião diferente da do executivo, pois caso discordem poderão perder o seu mandato imediatamente. Assim secretários - vereadores podem ser exonerados a qualquer momento para que voltem para a Câmara e votem a favor de esse ou daquele projeto e ser renomeados, no dia seguinte, para que voltem a ocupar as suas secretarias. Numa situação que enfraquece o legislativo e causaria espanto em qualquer sociedade séria. Mas que aqui é tratada com naturalidade.
Estava certo aquele vereador que, desde a sua candidez, quando perguntado sobre se era a favor da "reforma administrativa" disse que ele era contrário à sua aprovação. Quando o repórter perguntou a razão, o vereador respondeu impávido: porque o prefeito ainda não falou comigo.
Faz bem a sociedade em buscar apoio no judiciário, o tripé republicando depende do equilíbrio entre os três poderes, pois para Montesquieu "só o poder freia o poder." O peculiar modelo republicano da Vila dos Manguezais, como no resto de Pindorama, é uma luxuriante orgia em que vale tudo pelo poder. O resultado é essa promíscua relação em que uns gozam e os de sempre pagam a conta.

sábado, 29 de março de 2014

sexta-feira, 28 de março de 2014

Abuso de poder na UFSC mostra continuidades da ditadura

POR FELIPE SILVEIRA

Nos meus últimos textos defendi a criação de atividades e espaços da memória que refletissem sobre a ditadura civil-militar (1964-1985) – e consequentemente sobre a história do Brasil e do mundo, já que este é um episódio marcante internacionalmente. Leia aqui. Mais do que isso, defendi que seja pensada e construída uma educação emancipatória cujo sentido seja não repetir a barbárie de 64. Leia aqui. E não repetir a barbárie também é enfrentá-la nas suas manifestações do dia-a-dia. Lutar para não repetir a barbárie da ditadura também é lutar contra as suas continuidades, como a que aconteceu na UFSC nesta semana.

O que a polícia fez foi um absurdo, e há inúmeras coisas a se discutir a respeito disso. Não vou abordar todas aqui, mas chamo a atenção para duas: a motivação da polícia e a reação da mesma diante da reação dos estudantes e professores.

Quanto à primeira, diz o delegado que não vai deixar que transformem a universidade em uma “república de maconheiros”. Olha aí a continuidade da ditadura. Temos o inimigo, a maconha e os maconheiros, responsáveis pelos males do mundo. E não importa se o mundo que raciocina contraria essa tese. Para uma boa parte da polícia, maconheiros são os grandes financiadores do tráfico e devem ir em cana, de preferência tomando umas porradas antes. Se for comunista, antes, durante e depois. Hoje, em uma discussão, um policial militar disse: “Comunista bom é comunista morto.”

Outra continuidade foi a reação das forças repressoras diante da reação das forças populares. Por causa de alguns cigarros de maconha (e não estou defendendo que a polícia simplesmente ignore o fato) armou-se uma guerra. Não se quis dialogar ou negociar, como poderá ser visto no vídeo e lido na entrevista linkada abaixo. E não se quis porque a ideia do agente policial era demonstrar poder. Um poder que entre 1964 e 1985 não conhecia limites. E um poder do qual muitos tem saudade ou não acham que perderam.

Alguns apontam um exagero das duas partes – polícia e universitários –, mas esqueceram que a polícia queria levar estudantes em carros não identificados. E isso me parece um bom motivo para uma reação popular, não? Não foi o único.

Neste vídeo pode ser vista a tentativa do professor Paulo Pinheiro Machado de dialogar com o delegado Cassiano:


E este é o mesmo professor tendo a resposta da polícia, ao pedir mais dois minutos para tentar dialogar:

Foto de Marco Santiago, do jornal Notícias do Dia, de Florianópolis

E aqui tem uma entrevista com o professor ao Diário Catarinense. Segue um trecho sobre como começou o confronto: "Ficamos por duas horas negociando com o delegado Cassiano da Polícia Federal. Ele foi irredutível. Quando iríamos conseguir a dispersão mútua para evitar o confronto ele decidiu levar os estudantes presos. O comandante Araújo da Polícia Militar estava cooperando conosco, mas o delegado se mostrou intransigente. Propomos que o Boletim de Ocorrência fosse feito no local ou então que um procurador e um professor acompanhasse os estudantes, mas ele disse que não poderia colocar eles no carro da polícia."


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A truculência da polícia não é novidade. Não era nem na ditadura. A polícia é violenta desde que foi criada, mas durante o regime militar se extrapolaram todos os limites. A violência que vemos hoje –na universidade, nas comunidades periféricas, nas favelas e nas manifestações populares – é uma continuidade daquele período sombrio. Para quem não sabe como foi esse período, vale dar uma olhada nas declarações do ex-agente do CIE, Paulo Malhães, dadas à Comissão Nacional da Verdade há dois dias, nas quais admitiu a prática de tortura, mortes, ocultações de cadáveres e mutilações de corpos, cujo objetivo era impossibilitar a identificação das vítimas.

A truculência policial é somente um aspecto. A herança da ditadura é muito ampla. Continua-se calando trabalhadores e sindicatos pelas mais diversas formas, continua-se fazendo tudo em nome do lucro, continua-se destruindo o meio-ambiente e escravizando pessoas em nome do capital, continua-se comprando votos... Sem contar que destruiu uma geração de intelectuais e artistas que estava em ebulição e trabalhava pela construção de um Brasil melhor.

Que essa data simbólica seja marcada pela decisão de descontinuar esse tipo de coisa. E que seja um recomeço.