POR FELIPE SILVEIRA
Nos meus últimos textos defendi a criação de atividades e espaços da memória que refletissem sobre a ditadura civil-militar (1964-1985) – e consequentemente sobre a história do Brasil e do mundo, já que este é um episódio marcante internacionalmente. Leia aqui. Mais do que isso, defendi que seja pensada e construída uma educação emancipatória cujo sentido seja não repetir a barbárie de 64. Leia aqui. E não repetir a barbárie também é enfrentá-la nas suas manifestações do dia-a-dia. Lutar para não repetir a barbárie da ditadura também é lutar contra as suas continuidades, como a que aconteceu na UFSC nesta semana.
O que a polícia fez foi um absurdo, e há inúmeras coisas a se discutir a respeito disso. Não vou abordar todas aqui, mas chamo a atenção para duas: a motivação da polícia e a reação da mesma diante da reação dos estudantes e professores.
Quanto à primeira, diz o delegado que não vai deixar que transformem a universidade em uma “república de maconheiros”. Olha aí a continuidade da ditadura. Temos o inimigo, a maconha e os maconheiros, responsáveis pelos males do mundo. E não importa se o mundo que raciocina contraria essa tese. Para uma boa parte da polícia, maconheiros são os grandes financiadores do tráfico e devem ir em cana, de preferência tomando umas porradas antes. Se for comunista, antes, durante e depois. Hoje, em uma discussão, um policial militar disse: “Comunista bom é comunista morto.”
Outra continuidade foi a reação das forças repressoras diante da reação das forças populares. Por causa de alguns cigarros de maconha (e não estou defendendo que a polícia simplesmente ignore o fato) armou-se uma guerra. Não se quis dialogar ou negociar, como poderá ser visto no vídeo e lido na entrevista linkada abaixo. E não se quis porque a ideia do agente policial era demonstrar poder. Um poder que entre 1964 e 1985 não conhecia limites. E um poder do qual muitos tem saudade ou não acham que perderam.
Alguns apontam um exagero das duas partes – polícia e universitários –, mas esqueceram que a polícia queria levar estudantes em carros não identificados. E isso me parece um bom motivo para uma reação popular, não? Não foi o único.
Neste vídeo pode ser vista a tentativa do professor Paulo Pinheiro Machado de dialogar com o delegado Cassiano:
![]() |
Foto de Marco Santiago, do jornal Notícias do Dia, de Florianópolis |
E aqui tem uma entrevista com o professor ao Diário Catarinense. Segue um trecho sobre como começou o confronto: "Ficamos por duas horas negociando com o delegado Cassiano da Polícia Federal. Ele foi irredutível. Quando iríamos conseguir a dispersão mútua para evitar o confronto ele decidiu levar os estudantes presos. O comandante Araújo da Polícia Militar estava cooperando conosco, mas o delegado se mostrou intransigente. Propomos que o Boletim de Ocorrência fosse feito no local ou então que um procurador e um professor acompanhasse os estudantes, mas ele disse que não poderia colocar eles no carro da polícia."
***
A truculência da polícia não é novidade. Não era nem na ditadura. A polícia é violenta desde que foi criada, mas durante o regime militar se extrapolaram todos os limites. A violência que vemos hoje –na universidade, nas comunidades periféricas, nas favelas e nas manifestações populares – é uma continuidade daquele período sombrio. Para quem não sabe como foi esse período, vale dar uma olhada nas declarações do ex-agente do CIE, Paulo Malhães, dadas à Comissão Nacional da Verdade há dois dias, nas quais admitiu a prática de tortura, mortes, ocultações de cadáveres e mutilações de corpos, cujo objetivo era impossibilitar a identificação das vítimas.
A truculência policial é somente um aspecto. A herança da ditadura é muito ampla. Continua-se calando trabalhadores e sindicatos pelas mais diversas formas, continua-se fazendo tudo em nome do lucro, continua-se destruindo o meio-ambiente e escravizando pessoas em nome do capital, continua-se comprando votos... Sem contar que destruiu uma geração de intelectuais e artistas que estava em ebulição e trabalhava pela construção de um Brasil melhor.
Que essa data simbólica seja marcada pela decisão de descontinuar esse tipo de coisa. E que seja um recomeço.