POR CLÓVIS GRUNER
Os médicos cubanos chegaram. E tiveram uma recepção digna de
um país cuja elite é não apenas pouco solidária, mas pouco civilizada. Tudo
muito diferente da experiência de 1999, quando os médicos trazidos por FHC e José Serra foram festejados como o
“milagre que veio de Cuba”. O discurso do Conselho Federal de Medicina também era outro. Não se
falava em falta de estrutura ou condições de trabalho. O
problema era a ausência de uma política de interiorização que incentivasse médicos
a atuarem em cidades longínquas. O principal contratempo, dizia-se, era salarial. Outra
legenda, outros discursos.
Das inúmeras manifestações, algumas se destacaram pelo grau de
indignidade. A mais vergonhosa foi a do
aeroporto de Fortaleza, que reafirmou a imagem que insistimos em negar: a de um país racista,
intolerante, preconceituoso e elitista. A cor regional
quem deu foi o jornalista Paulo Eduardo Martins, titular de uma coluna em um dos
telejornais de Curitiba (veja o vídeo
aqui). A primeira parte da argumentação se
sustenta em uma mentira. É claro que a situação da saúde pública no interior é problemática, mas as condições são precárias também nas grandes cidades. Não é por falta de
estrutura e condições de trabalho que a maioria dos brasileiros se recusa a
trabalhar no interior, e disso já sabia o CFM há mais de uma década. Sobre a
segunda parte do argumento, reconheço-lhe um mérito: não é qualquer um que se
expõe ao ridículo e consegue preservar certo ar de dignidade. Há coisas que só
Olavo de Carvalho faz por você.
No segmento dito sério da chamada grande imprensa, a preocupação
foi com as condições de trabalho dos médicos. Ver profissionais manifestarem
sua apreensão para uma inexistente condição escrava chega
a ser comovente. Mas eles mereceriam algum crédito se o tivessem
feito já em 1999, por exemplo. Ou se demonstrassem a mesma indignação quando
das denúncias de trabalho escravo nas fazendas brasileiras,
ou nas confecções que fornecem para grifes chiques como a Zara e Le Lis Blanc. Não tenho ilusões: é o prazer inconfessável de chamarem impunemente de “escravo” um negro, o que explica a repentina preocupação de alguns manifestantes, jornalistas ou não, antes indiferentes a situações, além de pertinentes, reais.
POR QUE MÉDICOS ESTRANGEIROS? – É óbvio que a chegada de
médicos estrangeiros não resolve nossos problemas. E deveria ser
igualmente óbvio que distribuir profissionais pelo interior do país não significa
deixar de investir no fortalecimento da saúde pública em todos os seus
aspectos. O que se pretende é suprir uma de suas demandas, a da chamada “medicina
básica”, para a qual os médicos ditos generalistas são tão fundamentais e
necessários quanto aparelhos de última geração - e em alguns casos, até mais. É má fé tentar nos convencer
que o que está em jogo é uma preocupação legítima com a saúde pública, como
tentam formadores de opinião e dirigentes de classe. Aliás, nesse sentido é
absolutamente esclarecedora a entrevista de Henrique Prata, diretor do Hospital
de Câncer de Barretos: o interior do Brasil, diz, carece de
atendimento primário, de médicos dispostos a fazer o que ele define como “triagem” (veja a primeira parte do programa
aqui).
E é para esse tipo de trabalho que foram
recrutados os médicos cubanos. Indaga-se sobre suas formações. Pois bem, em geral eles
têm mais de uma década de formados e fizeram residência; a maioria já atuou em
outros países em missões semelhantes à brasileira; cerca de 20% cursou mestrado
e 40% tem mais de uma especialização. Se isso não é o suficiente, há a
experiência cubana que, em parte justamente pelas precárias condições
econômicas do país, investiu nas últimas décadas em uma medicina assistencial e
preventiva, responsável entre outras coisas pelo mais baixo índice de
mortalidade infantil das Américas, da ordem de 4,5 por cada 1.000 nascimentos. Garantiu assim tanto assistência interna quanto a possibilidade
de trazer divisas por meio da “exportação” de seu modelo e seus profissionais.
A expectativa não é que eles atuem
em áreas especializadas ou lidem com maquinários e procedimentos de ponta,
ainda que certamente alguns deles pudessem fazê-lo melhor que muitos
brasileiros. Mas que exerçam algo próximo ao que se chamava, em passado não tão
distante, de “medicina familiar”, de caráter – insisto nisso porque é
importante – mais assistencial e preventivo. E não é demais lembrar que eles
vieram principalmente porque a oferta feita aos médicos brasileiros foi solene e arrogantemente
recusada, quando não simplesmente boicotada pelas entidades
de classe.

Não tenho dúvidas: a esmagadora maioria dos que criticam
o Mais Médicos e a atuação dos profissionais cubanos, o fazem
movido por razões que são corporativas e ideológicas, quando não puramente partidárias.
Há,
especialmente entre os médicos, os que temem a alteração nas expectativas da
população em relação ao padrão do serviço hoje oferecido, enfatizando-se o
atendimento público e preventivo, exatamente aquilo que a maioria dos nossos
profissionais não está disposta a fazer. Muitos críticos, consciente ou inconscientemente, legitimam os interesses das corporações privadas de consultórios, planos de
saúde, laboratórios e da indústria farmacêutica, pouco se lixando para as
necessidades das populações interioranas e carentes, necessitadas e dependentes
do atendimento público – exatamente aquele de que não precisam os que vaiam os médicos que vieram de Cuba.
Como é comum na postura de nossas elites, mais uma vez a empatia com o
outro é zero. E como mostra a imagem no alto deste texto, onde faltam empatia, civilidade e solidariedade, sobram os males que carecem de diploma para serem diagnosticados: o ódio, a raiva, o ressentimento e o preconceito.