sexta-feira, 4 de setembro de 2015
Em nome de Aylan
Impossível não sentir um aperto
no peito ao ver a imagem daquele pequenino ser humano, inerte, de bruços,
morto, nas areias da praia de Ali Hoca, Turquia. Choca ver uma vida toda pela
frente ser afogada pela infâmia da guerra, da fome, das perseguições, das
ditaduras. Dói constatar que a humanidade regride em meio à “modernidade”.
Aylan Kurdi de apenas três anos, aquela pequena alma atirada com o rosto nas areias, morreu afogado junto seu irmão e sua mãe, após o naufrágio do bote no qual tentavam chegar a um local de paz. O que eles queriam? Apenas viver em paz.

Mas e amanhã, o que será? Todos despertarão em nossas casas, lares, reunidos com familiares, vamos ao trabalho, à escola, à universidade, aos namoros, baladas, viagens. Em algum lugar do mundo o pai sofrerá a dor das perdas, das vidas que lhe fugiram das mãos. E nós, faremos o que?
Até quando seremos hipócritas, cínicos, em chorar por Aylan e tantos outros mortos e que ainda morrerão, quando apontamos culpa para meninas estupradas porque estavam em uma festa – “mulheres de bem não andam nestes lugares” -, ou olharemos para os haitianos que andam por nossas ruas a buscar o sustento para sua gente, que está distante sofrendo a fome, a falta do marido, do filho, da mulher, da companhia que nos faz humanos.
Sim, somos indignados contra a violência das ruas, pelos refugiados que vivem na miséria em acampamentos, mas não queremos os haitianos em nossa cidade, nosso país. Eles nos tiram empregos, podem vir a formar um exército revolucionário que vai tomar as nossas casas, propriedades, comer nossas criancinhas...
A imagem do menino morto na praia mostra que o algo que não queremos ver, assumir: o capitalismo, as religiões e a ignorância privaram as pessoas de viver num mundo livre e igualitário.
Aylan Kurdi de apenas três anos, aquela pequena alma atirada com o rosto nas areias, morreu afogado junto seu irmão e sua mãe, após o naufrágio do bote no qual tentavam chegar a um local de paz. O que eles queriam? Apenas viver em paz.

Mas e amanhã, o que será? Todos despertarão em nossas casas, lares, reunidos com familiares, vamos ao trabalho, à escola, à universidade, aos namoros, baladas, viagens. Em algum lugar do mundo o pai sofrerá a dor das perdas, das vidas que lhe fugiram das mãos. E nós, faremos o que?
Até quando seremos hipócritas, cínicos, em chorar por Aylan e tantos outros mortos e que ainda morrerão, quando apontamos culpa para meninas estupradas porque estavam em uma festa – “mulheres de bem não andam nestes lugares” -, ou olharemos para os haitianos que andam por nossas ruas a buscar o sustento para sua gente, que está distante sofrendo a fome, a falta do marido, do filho, da mulher, da companhia que nos faz humanos.
Sim, somos indignados contra a violência das ruas, pelos refugiados que vivem na miséria em acampamentos, mas não queremos os haitianos em nossa cidade, nosso país. Eles nos tiram empregos, podem vir a formar um exército revolucionário que vai tomar as nossas casas, propriedades, comer nossas criancinhas...
A imagem do menino morto na praia mostra que o algo que não queremos ver, assumir: o capitalismo, as religiões e a ignorância privaram as pessoas de viver num mundo livre e igualitário.
Nós, que nos autodenominamos
seres humanos, nos comovemos, nos indignamos, até choramos por ele e mais
dezenas de milhares de imigrantes, populações inteiras que abandonam seus lares
por opressão política, religiosa, fanatismos que buscam pela violência da
guerra, o poder. A vida de Aylan choca hoje, milhões.
Aguardaremos a próxima criança
morta em uma praia, em uma praça, em um conflito qualquer? Sofreremos via redes
sociais, bradaremos por poucos dias, denunciaremos “aqueles povos” que vivem
guerreando, fugindo para a Europa, para a América do Norte, América Latina,
para... o Brasil.
Nas redes sociais, hoje a seara
onde vertem preconceitos, ofensas, falsos profetas, promotores da paz via
ditadura militar, golpes para acabar com a corrupção (?!), líderes religiosos
falsos que em nome de deus criminalizam a união de pessoas que só querem se
amar e viver em harmonia, vemos também a falsa indignação.
Por isso, em nome de Aylan, morto
na praia há quilômetros do seu lar, símbolo da ignorância e hipocrisia do mundo
“moderno” em que vivemos, deixo aqui afirmações, provocações para mexer com você,
indignado. Com você, homem e mulher de bem. Com você empresário do lucro acima
de qualquer coisa. Com você, político e religioso (às vezes os dois em um) que
move multidões em nome de deus e da verdade (?!). Com você mãe e pai, que veem
nos filhos dos outros o erro, a perversão, a desonra. Pense se você não é um
daqueles que:
- defende a paz, mas deseja ver
um ser humano apodrecer na cadeia, inclusive crianças e adolescentes
- denuncia a prostituição, os
maus costumes dos jovens, principalmente meninas, mas gosta muito das casas que
oferecem noites de prazer
- está todos os domingos, ou
qualquer dia, em uma igreja ou comunidade religiosa buscando a palavra de deus
que prega o amor ao próximo, mas sai dali falando de alguém, agredindo filhos,
mulher, marido
- vê um vagabundo em cada pessoa
que usa drogas, lícitas ou não lícitas (afinal o que é isso?), mas tem amigos
traficantes, usa só por diversão, às vezes...
- fala em liberdade como bem
comum, mas pretende impor suas visões e crenças à força, seguindo os Kim Kataguiri
e furiosos de movimentos vazios, ofendendo e agredindo quem não pensa como você...
- quer acabar com a violência,
mas apoia linchamentos públicos, agressões policiais a quem quer que seja, tudo
em nome da paz...?
Pense que naquela praia distante,
de onde nos chegou apenas a foto do menino Aylan, uma criança indefesa, cheia
de vida para correr pelas ruas, praças, realizar sonhos, ser feliz por longos
anos, morreu também um mundo inteiro. Com ele morreu mais um pouca da nossa
capacidade de sentir o outro de verdade, de desejar ao outro a felicidade, a
liberdade, o direito de viver em qualquer lugar que se queira, sem opressões,
preconceitos, violência.
Não deixe que a morte de uma vida
seja apenas uma dor passageira. Indigne-se de fato, combata o que faz este
mundo ficar pior, e parecido com o tempo das cavernas, da ignorância total. Em
nome de Aylan, lute pela humanidade, faça a sua parte. Hoje foi ele, amanha
pode ser você, seu filho, filha, pai, mãe, amigo, irmão... reflita e lute por
um mundo melhor.
É assim, nas teias do poder...
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
Uma camisa amarela, apesar da crise
POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Na
quinta-feira passada aproveitei para ir a um outlet perto de Lisboa (como fica
perto de casa vou lá algumas vezes). Para quem não conhece, são shopping centers onde
se encontram produtos de marcas famosas a preços mais baixos. Nike,
Adidas, Asics, Dockers, Converse, Armani, Hugo Boss, Lacoste, Dolce Gabbana ou
Puma. Enfim, o paraíso do consumo.
O
centro comercial está quase sempre lotado. E há muitos brasileiros, sempre
faladores e carregadíssimos de sacolas de compras. As estatísticas dizem que,
lado a lado com os angolanos, os brasileiros são os consumidores mais ávidos, gastando, em média, 190 euros por visita. Ou seja, superam os europeus
em termos de gastança. É natural a volúpia pelo consumo de marcas de
luxo. O preço compensa.
Na
semana passada, entrei na fila para pagar e o rapaz do caixa, praticamente escondido atrás de uma autêntica pilha de compras, pediu que eu esperasse. O cliente tinha ido buscar uma camisa. Um pouco depois o homem reapareceu
com três camisas nas mãos e perguntou se havia outras cores, porque queria
comprar mais.
Ora, a cena é comum e podia passar despercebida. Mas houve um momento curioso. A filha do homem achegou-se ao
balcão, pegou numa camisa amarela e brincou com a mãe: “olha, o pai está
comprando o uniforme para a Paulista”. A mãe sorriu, o pai pagou a conta e saiu
em busca de novas lojas para usar o seu cartão de crédito.
Essa
febre de consumo não é caso único. Já vi brasileiro a pagar alguns "micos consumistas". Enfim, não tenho qualquer pesquisa em
mãos, mas usando o olhômetro sou capaz de afirmar que esses brasileiros são
os mesmos que, no Brasil, vivem a reclamar que o país está a um passo do abismo
e que assim não é possível viver.
E,
claro, vestem camisas amarelas para ir à Paulista. Às vezes compradas na Europa.
É
a dança da chuva.
terça-feira, 1 de setembro de 2015
O velho e conhecido “negacionismo”
POR FELIPE CARDOSO
Em um vídeo publicado nesse sábado no site "Fluxo", Hart negou ter sido barrado. O neurocientista afirmou que, depois de chegar ao hotel, foi abordado por organizadores do evento em que palestraria. Os organizadores pediram desculpas a ele, porque, quando entrou no hotel, um segurança teria se aproximado para abordá-lo por “não parecer alguém que devia estar ali”.
“Não vi nada disso, mas a reportagem sobre o episódio viralizou e muitas pessoas vieram me pedir desculpas pela internet por causa do ‘comportamento dos brasileiros’”, afirma Hart.
Mesmo que o palestrante tenha questionado e apontado um grande racismo existente no Brasil, inclusive no local em que estava palestrando, parece que a confirmação de que o ato racista não aconteceu ganhou mais destaque. Acabou dando brecha para que os que não se importavam com a pauta da questão racial liberassem e destilassem mais ódio e encorajou mais racistas a praticarem mais atos. Mas, pior que isso tudo, deu mais espaço para que o velho e conhecido “negacionismo” brasileiro voltasse à tona.
“Viu só? Não somos racistas. Isso é coisa da cabeça das pessoas. Vamos continuar mantendo e propagando o racismo.”
Analisado de outra forma, podemos perceber, por meio do ocorrido, a maneira com que nós brasileiros enxergamos o racismo, achando que ele só acontece por meio da discriminação, de pessoa para pessoa. Não conseguimos observar que é um problema estrutural, cultural, social, político e econômico que está enraizado em nosso país. Como Hart afirma, “o racismo estrutural brasileiro não recebe qualquer destaque, nem indignação pública, quando dirigido a pessoas sem o destaque ou a posição que ele ocupa”.
Não precisamos de campanhas como #SomotodosMaju quando casos de discriminação atingem pessoas negras em destaque ou com uma posição financeira e profissional "superior" dos demais negros. Precisamos, de fato, ir na raiz do problema para conseguir acabar de vez com o racismo, para que todos os negros e negras não sofram mais com as opressões e as humilhações.
O problema brasileiro é o racismo, que foi construído e propagado há séculos. Para superá-lo, precisamos afirmar que ele existe e, assim, juntarmos força para combater e eliminá-lo.
Não é negando um problema que vamos escapar dele. É preciso coragem para encarar e superá-lo.
Para encerrar, devemos seguir o conselho do neurocientista Carl Hart:
“Por fim, o Brasil tem problema sério de discriminação racial. A indignação demonstrada neste momento deveria ser demonstrada também em relação ao tratamento dado a negros neste país. Precisamos apoiar quem vive à margem da sociedade e usar esta energia (de indignação) para algo bom.”
segunda-feira, 31 de agosto de 2015
Nada mudou. Tudo segue igual
Jordi Castan
Depois de uns dias de férias, volto a Joinville. Feita uma leitura rápida de como reencontrei a vila, constato que pouco mudou. Vejamos:
- Há no governo, em todos os níveis, a certeza que "eles" estão certos e todos os "outros" estão errados. Este tipo de "autismo" se origina no líder do executivo e se espalha como um cancro a todos os níveis, os resultados até agora tem sido devastadores.
- A obra da Santos Dumont se apequena a cada dia. O que era
para ser uma duplicação está ficando mais para um remendo, com direito a binário,
recapada e um alargamento. Ah! Outro ponto importante é que tampouco será concluída
no prazo previsto. No que se diga de passo já tem se convertido em rotina.
- O Secretário da Fazenda informou, em entrevista ao jornal
local, que enfrenta dificuldades para pagar as contas em dia. O discurso que
não faltava dinheiro e que o problema de Joinville é ou era de gestão se
esfarela como um punhado de sal em dia de chuva. Os problemas econômicos não
podem ser usados como escusa. As ideias são de graça, saber aproveitá-las é a
saída. O bom senso diz que além de gestão estariam faltando também ideias. A
administração municipal é um deserto ermo em que a criatividade e a iniciativa
foram completamente extintas.
- A ideia de que os funcionários públicos municipais
trabalhem em jornada completa voltou à pauta. Uma iniciativa louvável que, lamentavelmente, não
tem a menor possibilidade de prosperar. Alguém poderia perguntar o que o joinvilense acha? Seria interessante ouvir como o contribuinte, que paga os salários, opina. A administração pública fica à
margem de seguir quaisquer critérios razoáveis de produtividade, eficiência e
economicidade.
- Sem chance que algum órgão da administração municipal seja certificado com alguma norma técnica internacional. Alguém imaginou um IPPUJ sendo certificado com uma norma ISO? E imaginar que nesta gestão presenciaríamos um choque de transparência, eficiência e de boa gestão. Ou seja, é uma utopia que algum órgão público municipal possa
ser avaliado pelo cidadão contribuinte por critérios objetivos de excelência. O choque de gestão foi só um espasmo curto e intenso, que durou o
tempo do discurso de posse. A gestão acabara sem muito de que lembrar, sem nenhuma marca importante.
- Parques? Mais verde? Mais lazer? Nem rastro.
- Surgem denúncias sobre a existência de um “mensalinho” na
Câmara de vereadores. Entre os nomes citados há quem tem mostrado
recalcitrância em flertar com o lado escuro da moral. O risco de que haja mais
envolvidos não é pequeno e denúncias anônimas recentes passam a fazer mais
sentido e ganham credibilidade.
- Apareceram as primeiras emendas a LOT e em breve devem ser
divulgados os nomes dos maiores beneficiados com as mudanças de zoneamento que
o prefeito defende com tanto afinco. Não seria surpresa se alguns nomes muito
conhecidos surgissem entre os proprietários de áreas rurais que teriam o seu
valor decuplicado em questão de meses.
- A ouvidoria segue sem entender que o seu papel é ouvir e
defender o cidadão e não a administração pública. As respostas que a ouvidoria
tem dado e que pipocam nas redes sociais provam que todos os problemas de
Joinville são culpa dos joinvilenses que insistem em não entender a maravilhosa
administração que tem. Em tempo: não há administrador ou comissionado que não se
deixe picar pela mosca do poder. A perda do contato com a realidade é uma
doença comum entre quem durante um tempo confunde “ser” com “estar”.
- A ponte que seria a grande obra desta administração sumiu
do discurso, assim como tantas outras promessas eleitorais das que não se tem
mais constância.
- Um ataque de lagartas cancelou a “Joinville em Movimento”.
A administração municipal vencida por um punhado de futuras borboletas. Alias é bom lembrar que lagartas, embiras e borboletas são comuns em primavera.
- A primavera se apresenta linda e cheia de cor.
- A primavera se apresenta linda e cheia de cor.
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
Meritocracia... o tanas!
POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Quando entrei para a Faculdade de Engenharia
havia um único calouro vindo do ensino público (não tenho certeza, mas acho que
era também o único de Joinville). O cara era bom. Dominava os temas com muita
facilidade e as suas notas eram sempre exemplares, mesmo naquelas cadeiras em
que a maioria vivia a patinar. Fazer certas disciplinas era um pesadelo. Mas não
para ele, que parecia talhado para a coisa.
No entanto, era notório que o cara não tinha
dinheiro. Pelas roupas que vestia, pelo transporte que usava (busão, claro) ou
pelo lazer de que não podia desfrutar. Muito diferente dos outros alunos, quase
todos vindos de outras cidades e de famílias com alguma grana. Um bom número de
colegas de sala usava roupas de marca, tinha carro próprio e não economizava na
hora das festas.
Não sei quanto tempo o tal estudante
permaneceu na faculdade (não digo o nome, mas lembro). Mas sei que a certa altura as
suas aparições tornaram-se escassas e um dia deixei de vê-lo. Lembro de ter
ouvido que tinha arranjado emprego, porque precisava sustentar a família. E
a faculdade, com aulas o dia inteiro (e por vezes à noite) impossibilitava
qualquer projeto nesse sentido.
Por que trazer essa história? Ora, porque tem
muita gente a insistir na meritocracia como a panaceia capaz de produzir uma
sociedade justa. Aliás, antes de continuar quero deixar claro: não nego o
mérito, porque ele existe. O que rejeito é a desigualdade e as injustiças
sociais. Porque a meritocracia só faz sentido se todos partirem em igualdade de
condições. Não é o que acontece.
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A meritocracia só existe quando todos são iguais à partida |
O fato é que eu, sendo um péssimo projeto de
engenheiro (tanto que desisti, depois de algum tempo), podia continuar na
faculdade. O cara não. E eu pergunto: onde está a meritocracia? Não está. O
discurso do mérito, repetido à exaustão pelos “homens de bem” (os que estão por
cima da carne seca) serve apenas para a reforçar a elisão das diferenças de
classe.
O leitor e a leitora podem contra-argumentar
com o exemplo dos self-made man, mas o fato é que são uma minoria. Aliás,
ninguém fala das self-made woman, o que apenas denota outra injustiça: no plano
do gênero, a meritocracia também é coxa, tanto que as mulheres ganham menos que
os homens no desempenho das mesmas funções. Na maioria dos casos, o mérito parece ser apenas para
homens brancos e com alguma linhagem familiar.
Mérito sem igualdade de oportunidades é simples
palavrório para inocentar as diferenças de classe. Enquanto houver potenciais
Einsteins perdidos ali no Itaum não venham com essa treta de meritocracia.
Porque é apenas conversa para boi dormir. Meritocracia... o tanas!
É a dança da chuva.
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
A rua
VALDETE DAUFEMBACK
A rua, com sua dinâmica, com seu movimento, é o melhor lugar para se ler a sociedade. A rua é o lugar da expressão, da liberdade literária, da aventura artística. É na rua que nos surpreendemos com situações inusitadas, que nos descobrimos e descobrimos os outros, que nos encantamos e desencantamos. Em poucos minutos a rua pode ser testemunha de muitas histórias
Em um órgão público esperava para ser atendida quando adentrou no recinto uma pessoa cheia de espontaneidade e solicitou um documento que havia encaminhado fazia uma semana. Naquele momento minha intuição dizia que se tratava de alguém que não conhecia a cultura ordeira e disciplinadora de Joinville.
Ao sair do prédio, a pessoa já estava na calçada tentando se achar pelos pontos cardeais. Percebi que falava aos seus botões na tentativa de buscar na memória pontos que indicassem o caminho da localização para chegar a um destino pretendido. Ao perceber a cena me remeti ao passado quando nesta cidade cheguei, sem conhecê-la, tentava me localizar por meio de pontos de referência, desejando ter em mãos o novelo de fio de Ariadne para sair do labirinto de pedra e cimento.
Perguntei à pessoa se precisava de ajuda para encontrar tal endereço.
- “Eu estou em Joinville faz três semanas e ainda não decorei a cidade”. Assim foi o início de uma conversa que durou quinze minutos enquanto caminhávamos até o local pretendido.
- “Agora estou feliz, tenho minha Carteira de Trabalho assinada, consegui emprego na construção civil graças ao curso de eletricista que fiz pelo PRONATEC. No Paraná eu trabalhei durante vinte anos na informalidade, mas depois que fiz o curso, vim pra cá e já arrumei emprego”.
Na conversa mencionou que já havia matriculado os filhos na escola. E pelo entusiasmo com que se expressava, parecia mesmo estar satisfeito com o trabalho e com a cidade que acabara de conhecer.
- “Tem gente que diz que eu vou trabalhar quatro meses para o governo. É o que vou pagar de imposto. Mas se não for assim, como é que o governo vai conseguir prestar à população serviços públicos? Olha, vai ver se nos Estados Unidos tem Sistema Único de Saúde? Vai ver como está a saúde da população no Paraguai?”.
Fiquei curiosa sobre a pessoa que estava caminhando ao meu lado e que espontaneamente foi revelando seus tesouros sem que eu tivesse feito uma só pergunta sobre a sua vida pessoal.
- “Sabe, estas pessoas que foram às ruas no domingo (dia 16 de agosto), não sabem o que estão dizendo, não conhecem a história, não conhecem as necessidades dos pobres, não fazem ideia do quanto a presidente contribuiu para ajudar as pessoas a saírem da pobreza. Eu sou prova disso. Não sabem o que é ditadura militar, não sabem o que aconteceu naquela época. Meu pai, um agricultor, foi preso...”.
Chegamos ao destino. Fim da caminhada sociológica em que assumi uma postura de ouvinte. A pessoa agradeceu e nos despedimos.
- “A gente se vê por aí”.
Sorri e segui em frente observando as pessoas em movimento, imaginando as suas histórias, suas vidas, seus encantos e desencantos. Pensei na liberdade de expressão do artista “palhaço” que foi preso na rua durante apresentação em festival infantil, em Cascavel, no Paraná, por usar a arte como instrumento político, tal como na época da ditadura militar. Pensei na polifonia e nas vozes que foram silenciadas ao levantar a bandeira da justiça social. Pensei no apagamento da memória e na alienação da história. Pensei nas cabeças tresloucadas que clamam por intervenção militar. Pensei no esvaziamento da política nos protestos de rua.
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
A lógica invertida dos ricaços que comandam a cidade
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POR FELIPE SILVEIRA
A página de humor e informação ÉÉÉguaaa postou recentemente que os cidadãos de Porto Alegre, capital do vizinho Rio Grande do Sul, podem pedir para os ônibus do transporte coletivo pararem a qualquer momento durante a madrugada, chamando atenção para o fato de que as linhas da madrugada mal existem em Joinville, e o que existe ainda será cortado. Aí alguém que cuida das redes sociais de uma das empresas de transporte público da cidade teve a brilhante ideia de responder o seguinte: “Que ótimo para Porto Alegre, necessário, para toda cidade que tem ‘vida noturna.’”
A imagem foi apagada, mas o tiro no pé já havia sido dado. A popular página fez outra postagem, agora com o print da resposta, que tem gerado bem mais repercussão e crítica do que o post original. Além disso, o fato nos leva à reflexão deste texto.
O comentário é uma amostra do modo de pensar da elite econômica sobre a cidade. Outro exemplo é a campanha do então candidato a prefeito Udo Döhler, que, perguntado sobre mobilidade urbana, prometeu fazer 300 quilômetros de asfalto. A promessa ainda não foi cumprida, mas, mesmo que fosse, o asfalto é mais uma questão de saúde pública do que de mobilidade. Nesse quesito, poderia ser chamada de anti-mobilidade.
Voltando ao caso das linhas da madrugada, conto minha experiência pessoal para ilustrar, mas tenho certeza que a maior parte dos leitores passou por isso ou conhece alguma história. Como fui universitário até pouco tempo atrás, e ainda convivo no meio, fui inúmeras vezes ao bar com os amigos e também a inúmeras festas. Infelizmente, como as aulas acabam às 22h30, aos amigos que dependiam do transporte público sempre precisavam sair cedo, ficando, no máximo, meia hora com a gente. Já nas festas, houve inúmeras situações de gente que não pode ir ou teve que se virar pra voltar por causa da falta de ônibus. São apenas dois exemplos de como faz falta o coletivo na madrugada.
Mas há outros exemplos mais graves. No tempo que morei no bairro Paranaguamirim, soube de vários casos de pessoas que não tinham como levar seus filhos ao hospital por causa da falta de ônibus. Sem contar nas vezes que as pessoas chegam cansadas de um dia de trabalho e perdem o último ônibus, sendo obrigadas a ir a pé, pagar um moto-táxi, arrumar uma carona...
Em suas mansões ou no conforto de seus carros de luxo importados, os ricaços que comandam a cidade e o transporte coletivo não fazem ideia do perrengue que passa o trabalhador e o estudante para simplesmente viver o cotidiano. Eles não sabem, ou fingem, que uma uma simples corrida de táxi pode custar 1/5 do salário de um trabalhador. Na cabeça desses caras, todo mundo vai ter carro, então a cidade deve ser feita para carros. Se não me engano, o prefeito disse algo parecido na campanha, quando falou nos 300 km de asfalto.
A lógica dos caras está tão invertida que eles não sabem que, se as pessoas não tiverem como chegar e sair dos lugares, as pessoas não vão aos lugares. Aí não tem como ter vida noturna mesmo. Se os lugares não têm clientes, é claro que eles vão fechar mais cedo.
A mesma lógica vale para as ciclovias. Algumas pessoas criticam o investimento em ciclovias, dizendo que há poucos ciclistas. É claro que apenas um número baixo de pessoas vai pedalar enquanto as condições forem tão ruins. A partir do momento que as ruas se tornarem mais seguras, mais gente vai pedalar e possivelmente mudar de vida com isso.
Nesta quarta-feira, 26 de agosto, vai rolar um Catracaço contra a extinção das linhas da madrugada. O ato é chamado pelo MPL, que há anos luta contra os malucos que comandam o transporte coletivo. Compareça, se manifeste contra a extinção das linhas e contra a exploração dos trabalhadores e estudantes.
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