POR FELIPE CARDOSO
Já falei várias vezes aqui no blog sobre a questão da identidade negra e também mostrei algumas desigualdades sociais e raciais presentes no país.
Volto a falar sobre identidade, mas, dessa vez, contarei com a ajuda da camarada Gabriela Queiroz, organizadora do evento “Encrespa Geral” e militante do Movimento Negro Maria Laura, no qual também faço parte, aqui em Joinville.
Uma questão que me chamou atenção esses dias foi o termo que duas pessoas brancas usaram para se referir a duas pessoas negras que não estavam presentes no momento, mas que seriam lembradas na ocasião.
O primeiro se referia a um homem negro como “aquele moreno”. A segunda a uma mulher: “aquela moreninha”.
Difícil encontrar um negro que nunca ouviu essa expressão.
No mesmo dia que presenciei esse caso, abri meu Facebook e vi a Gabriela relatando que sofreu com a mesma situação e compartilhei com ela o que havia acontecido e convidei-a para escrever um texto. E cá estamos.
Já expliquei
aqui que a imagem do negro sempre foi construída como um ser demonizado, ruim, bruto, sem alma, que só servia para o trabalho e que esse pensamento se naturalizou e se propaga até hoje. Então, os brancos, que durante todos esses séculos construíram sua imagem como ser civilizado e bom, tentam, de todas as maneiras, branquear a nossa negritude.
“Ah, mas você nem é tão negro assim.”
“Você é mulato, não é negro.”
“Você é morena(o).”
Está tão impregnado essa imagem do negro como algo ruim que as pessoas brancas tentam “elogiar” tirando a sua negritude.
As frases acima representam a mutilação física e psicológica que todos os negros do mundo sofreram e sofrem.
A identidade de cada ser se constrói e sofre diversas influências de acordo com o meio em que ele vive. Então por que o negro é privado de se conhecer, de se assumir e de encontrar semelhantes para compartilhar os mesmos gostos?
Todos nós recebemos nomes quando nascemos, e esse nome também faz parte da nossa identidade, mas quando se é negro, seu nome é esquecido e os apelidos começam a surgir: “negão”, “nega”…
“Vocês estão impondo algo?”
Não, não mesmo. Nós só estamos problematizando e trazendo o assunto para o debate, evidenciando esses casos.
Porque é difícil você encontrar por aí alguém chamando uma pessoa branca de “brancão” ou “branca”, ou se referindo a uma pessoa que não está no local como “aquela com pouca melanina” ou “aquele branquinho”.
Eu, particularmente, nunca ouvi isso.
Na escravidão os negros com a pele mais clara serviam para o trabalho domésticos e os negros com a pele mais escura só serviam para trabalhar no campo e recebiam castigos mais severos que os negros domésticos.
Daí é que surgiram as denominações e diferenciações da pele negra.
Inclusive o termo “mulato/ mulata” é pejorativo, pois vem literalmente do termo “mula”, o animal híbrido, resultado do cruzamento do cavalo com jumenta, ou do jumento com a égua. Estas palavras foram adotadas em nossa língua portuguesa para se referir pejorativamente aos filhos mestiços das escravas que coabitaram com os seus senhores brancos e deles tiveram filhos. Nesse contexto da época escravocrata, a pele escura era um estigma para o castigo. A pessoa “mulata/morena” ou de pele mais clara era a escrava da casa grande, digna da compaixão e proteção de seus proprietários; já aquela com tonalidade mais escura era a do campo e também a que estava sujeita aos piores castigos físicos.
Isso ficou tão enraizado na cultura brasileira, que ter a pele escura é considerado um castigo ainda hoje. A gente ouve coisas do tipo: “Ah, mas vc não é tão negra assim…” “Não, você é uma morenona! Bonita!”
Eu não quero ser chamada de morena. Não quero que “amenizem a minha condição”.
Mas o fato é que independentemente da tonalidade da pele, todos nós, negros e negras, passamos pelas mesmas humilhações, sofremos com a dor do racismo e vivemos as consequências da escravidão.
Então quando você se refere a um negro como “moreno” ou “mulato”, você está sim ofendendo.
Porém, nos defrontamos com outro problema aqui: tem muitos negros que não se importam em serem chamados assim, porque eles também assimilaram a ideia de que quanto menos negro ele for, melhor posição social ele encontrará. E acredito que isso gera uma grande incerteza na população não negra, porque simplesmente não sabe como deve nos chamar. Não sabe identificar quando a negritude é defendida com orgulho ou quando ao contrário, essa identidade é negada.
A moça que veio me dizer “preciso maquiar uma pele morena e pensei em você” havia dito para outra moça antes de mim: “preciso maquiar uma pele negra e pensei em você”. Essa moça negra se ofendeu e disse que ela prefere ser chamada de morena. Já eu, bem resolvida com minha identidade negra, achei o termo “morena” desrespeitoso para comigo.
É preciso trilhar um longo caminho de reconstrução da identidade das pessoas negras, e isso passa, necessariamente, pela questão do cabelo, que já abordei em outra ocasião (
aqui). Quando uma pessoa negra me diz coisas do tipo “esse cabelo combina com você, mas em mim ficaria feio”, eu percebo que a questão de identidade é mais intrínseca que apenas a questão estética.
Há toda uma carga de negação que a acompanhou durante a vida e, não conseguir ao menos se permitir descobrir sua verdadeira essência, não conseguir se olhar no espelho ostentando sua própria natureza é de causar tristeza. Tristeza sim, porque nenhuma pessoa deve ter vergonha de ser o que é. E nenhuma sociedade deve querer impor padrões aceitáveis porque nós não somos todos iguais.
Não queremos que as pessoas, ao buscar a equidade social, nos digam coisas do tipo “nós somos todos iguais!”.
Não, nós não somos todos iguais. O que de fato desejamos é que nossas diferenças sejam respeitadas.
Não podemos permitir que nossos filhos perpetuem as histórias tristes daqueles que os antecederam. É preciso empoderá-los para que num futuro não muito distante, todos nós, negros e brancos, possamos conviver em harmonia; tendo nossas batalhas, senão compartilhadas, ao menos compreendidas.