O que é “naturalização”? Vamos dispensar o
papo acadêmico e ir direto ao ponto. As duas fotos aí em baixo servem para
explicar o conceito (com algumas limitações, claro). Estamos todos acostumados à
imagem do Cristo da foto da esquerda. Um cara loiro, de olhos azuis e com ar
pacífico. Só que os antropólogos dizem que Cristo é o cara da direita, de pele
escura e até com um corte de cabelo duvidoso.
Quer dizer, a gente se habitua a uma
determinada visão das coisas e então “naturaliza” essa percepção. Ou seja, fica
a achar que o Cristo da esquerda é o cara certo e nega a existência do cara da
direita, descrito pela antropologia (é apenas um exercício, claro). É um
processo ideológico, no sentido em que Marx o descreve: como distorção. O
Cristo é loiro e não se discute. A crença torna-se natural e a história não importa.
Tem gente que só leu o “Manifesto” e acha que
entende Marx. Outros mentem que leram “O Capital” e também dizem que entendem.
Mas o universo marxiano é muito rico e contempla inúmeras outras linhas de
análise. Sob esse aspecto, quem nunca não leu “A Ideologia Alemã” vai uma
percepção pouco consistente do pensamento do pensador alemão. É um livro que
por estes dias devia ser leitura obrigatória em Joinville.
“Não têm história, não têm desenvolvimento;
serão antes os homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas
relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu
pensamento e os produtos desse pensamento. Não é a consciência que determina a
vida, mas sim a vida que determina a consciência”, diz o velho barbudo. Esta
última frase é importante para falar no episódio do “blackface”.
Por que tanta gente não viu racismo no episódio? Porque o racismo está introjetado no inconsciente social ao ponto
de não parecer pernicioso. É a cultura da cidade (a cultura-alma
coletiva descrita por Félix Guattari) que induz a essa percepção. Quando uma pessoa não vê
racismo numa atitude racista é porque a perspectiva racista foi naturalizada. É
só ver os comentários nas redes sociais ou aqui no Chuva Ácida.
Aliás, quando uma pessoa diz não ser racista
ela está a reproduzir um processo ideológico. Porque, a seguir o pressuposto de
Marx, percebe-se que a vida concreta – na família, na escola, no trabalho e em
outros dispositivos – induz ao racismo. Todos somos afetados por esse processo de subjetivação. A saída está em dois caminhos possíveis: há os que olham para a história e identificam a irracionalidade do racismo; outros ficam
reféns de um ideário que naturaliza o preconceito.
Marx permite inferir que as
origens do ideário racista estão na produção material das sociedades. Não é um achismo. É um fato
histórico. O primeiro episódio racista de que há registro aconteceu no rio
Nilo, no ano 2.000 a.C., quando foi afixada uma placa a proibir a passagem de
negros, a não ser que fossem com objetivos comerciais. Não era a cor da pele em
jogo, mas questões econômicas.
Se do ponto de vista genético não há
diferenças de fundo entre europeus, africanos, australianos ou mongólicos (as
características físicas são definidas pela adaptação ao meio) a realidade
econômica ganha protagonismo. Sempre. É por isso que, do alto da escala social,
muitas pessoas com sobrenomes cheios de consoantes não veem racismo e nem ofensa. Só que essa
negação não passa de uma expressão do racismo naturalizado e inocentado.
É a dança da chuva.