sábado, 19 de outubro de 2013

Vinícius e o viagra

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Envelhecer parece ser sempre um trauma. Mas, de qualquer forma, traz coisas interessantes. No meu caso, uma delas é o prazer de ter visto Vinícius de Moraes ao vivo com o seu copo de uísque. Privilégio do pessoal mais rodado. Aliás, só para que saibam, ele estava em Portugal quando a ditadura baixou o AI-5 (coisa que só os da minha geração sabem).

Já escrevi textos e defendi, na academia brasileira ou mesmo portuguesa, uma ideia imprevidente: quem tem Vinícius não não precisa de Platão. É meio metafórico, é meio verdade. Há um filósofo brasileiro que define a filosofia com o ato de ver um palmo adiante do nariz. Vinícius ia mais longe: via um palmo adiante e ainda sentia os cheirinhos das fêmeas. E sabia que nunca houve melhor invenção que a mulher.

Mas agora, quando estamos a falar nos 100 anos de Vinícius, só me ocorre uma coisa. A grande chatice para a geração de Vinícius de Moraes e dos seus contemporâneos é que o viagra ainda não tinha sido inventado. Porque se o viagra existisse, tenho a certeza de que Vinícius ainda hoje andaria por aí a descobrir novas garotas. Em Ipanema ou Enseada.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Apartheid, a gente vê por aqui


POR CLÓVIS GRUNER

Não estou em Joinville para saber da repercussão – se houve – da nota publicada na edição de ontem (17/10), na coluna “Livre Mercado”, do jornalista Claudio Loetz. Nela, o vice-presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos de Santa Catarina (ABRH/SC), Pedro Luiz Pereira, define o perfil ideal do trabalhador joinvilense:

“Em Joinville, considerando-se todos os tipos e portes de empresas, há vagas em aberto para aproximadamente 7 mil trabalhadores. A estimativa é do vice-presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos em Santa Catarina (ABRH-SC), Pedro Luiz Pereira. O perfil ideal do trabalhador procurado é homem, branco, de 25 a 35 anos…”

Não é meu propósito julgar as razões do jornalista para publicar tal declaração sem, ao menos, problematizar seu teor. Trabalhei com Claudio Loetz há um par de décadas – sentávamos a uma mesa de distância na antiga redação de “A Notícia”, quando ainda batucávamos as hoje anacrônicas Remingtons. Enfim, sei de sua competência e retidão profissional; ele sabe o que escreveu e tenho certeza que tem igualmente consciência de suas implicações. Mas nunca é demais lembrar que a tal “objetividade jornalística” pode ser uma armadilha para quem escreve, mas às vezes também o é para quem concede a entrevista.

No seu texto, Felipe Silveira já fez as devidas ponderações desde o ponto de vista do jornalismo. Subscrevo tudo o que disse e, como ele, espero do jornal, do colunista mas, principalmente do autor da declaração, algum tipo de explicação – embora reconheça que nada, absolutamente nada do que ele diga irá desfazer o mal estar, nem tampouco mudar o quadro que sua fala tão bem sintetiza: o de que o racismo e o machismo são parte da cultura empresarial. Disso decorre que a aspirada igualdade de condições no mercado de trabalho tem limites muito claros e definidos: não é todo mundo que pode ocupar qualquer cargo, porque em se tratando dos empregadores joinvilenses, boa formação técnica e experiência profissional não são critérios suficiente.

Se já sabíamos que todos são iguais, mas uns são mais iguais que outros, a declaração de Pedro Luiz Pereira pinta em tons mais berrantes esta realidade. Não se trata, ao menos em Joinville, de convivermos com o fato de que algumas funções de destaque dentro dos organogramas empresariais sejam de acesso exclusivo aos homens brancos (e adultos); o vice-presidente da ABRH nos diz, com todas as letras, que dependendo do empregador a simples aspiração a um posto de trabalho, independente do cargo, é exclusiva de homens brancos e adultos.

UMA INCÔMODA INVISIBILIDADE – Mas se a nota provocou merecida indignação, a afirmação não é uma surpresa. Trata-se de uma invisibilidade que não é recente: basta revisar a historiografia local para constatar a ausência do negro e das mulheres na história da cidade. Se é compreensível – embora não necessariamente justificável – esta falta naqueles trabalhos de cunho mais memorialístico, não se pode dizer o mesmo de um Apolinário Ternes, cujo trabalho sempre alimentou a pretensão de ser uma alternativa aos textos seminais do “seo” Adolfo e da “dona” Ely, e que teve acesso privilegiado às fontes documentais da história local. As mesmas fontes de que se valeram historiadores e historiadoras que, mais recentemente, vem empreendendo um esforço considerável para mostrar que não apenas de homens brancos e adultos se fez a nossa história – e no caso em pauta, lembro e menciono especialmente os trabalhos de Denise da Luz e Janine Gomes da Silva.

Se há ainda quem coloque em dúvida a existência dos preconceitos de gênero e étnico na cidade, faça as contas: quantas mulheres estão na Câmara de Vereadores ou na diretoria da ACIJ? Mesmo morando em Curitiba, soube dos muitos comentários machistas feitos sobre Marinete Merss ao longo da gestão do ex-prefeito Carlito Merss, tudo porque ela nunca se resignou a ocupar o lugar que compete às “grandes mulheres”: ficar sempre à sombra dos “grandes homens”. E o que falar dos dois jogadores do JEC, constrangidos a serem revistados pela polícia porque um delegado achou-os em atitude suspeita? Afinal, eram dois negros com dinheiro, andando de táxi e jantando em um restaurante onde, assim como no mercado de trabalho, a entrada é franqueada principalmente para homens brancos. E se menciono aqui apenas aqueles exemplos mais claros e óbvios, não ignoro que a realidade é tão ou mais dura no que um amigo chamou de “Soweto catarinense”.

Tenho certeza que não faltará quem defenda ou justifique a fala do vice-presidente da ABRH/SC apelando à velha falácia de que ele apenas “expressou a realidade”. Ou pior: haverá quem, como no texto do Felipe Cardoso, publicado aqui no Chuva, argumentará recorrendo a números: se os negros estão em minoria quantitativa, dirão, nada mais “natural” que os empregadores privilegiem os brancos. É uma escolha. Mas ambos os argumentos aproximam-se daqueles utilizados pela maioria dos alemães quando, há quase um século, o Reich decidiu pela perseguição a outras “minorias quantitativas”, judeus principalmente. É a banalidade do mal, já nos ensinou Hannah Arendt, que fomenta a indiferença; e é a indiferença que faz florescer e legitima a intolerância, o preconceito e a violência.

O racismo e o machismo inegáveis de cada dia

Pelo visto, pra essa trabalhadora não tem vaga aqui...
POR FELIPE SILVEIRA

Talvez tenham sido poucos textos, mas não dá pra negar que a luta contra o racismo e a denúncia do quanto ele é presente em Joinville é uma das bandeiras do blog. Eu já escrevi alguns textos e sei que outros articulistas também (Clóvis e Baço, pelo menos). Além disso, tivemos um texto de Felipe Cardoso dos Santos, no Brainstorm, que foi pra lá de comentado e acessado. Da mesma forma, o machismo é tema deste blog.

O que mais me chamou a atenção em todas essas discussões e outras facebook afora foi a recusa que muitas pessoas demonstram de reconhecer que o racismo foi e ainda é muito forte nessa região. Mesmo quando ele é evidente nas propagandas da TV, nas abordagens policiais, nas disputas por emprego e, mais recentemente, nas páginas dos jornais.

Circulou, ontem (17 de outubro), um dos casos mais flagrantes desse absurdo. A coluna Livre Mercado, assinada pelo jornalista de economia Claudio Loetz, de A Notícia, traz a seguinte informação:

“Em Joinville, considerando-se todos os tipos e portes de empresas, há vagas em aberto para aproximadamente 7 mil trabalhadores. A estimativa é do vice-presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos em Santa Catarina (ABRH-SC), Pedro Luiz Pereira. O perfil ideal do trabalhador procurado é homem, branco, de 25 a 35 anos…”

Chega a ser chocante ver essa “notícia” estampada no jornal, mesmo para quem sabe que essas são as condições do mundo real (entenda-se: não estou aceitando essa condição, estou dizendo que todos nós sabemos que o mercado de trabalho é racista e machista). É surpreendente porque houve algum tempo (recente, entre os anos 90 e 2000), em que o racismo não era declarado dessa forma nos jornais. Quem representava alguma instituição tinha algum pudor em falar e escrever esse tipo de coisa.

Diante disso, criei algumas expectativas:

1) Em relação ao público, tenho duas. Primeiro tô curioso pra saber quais serão as desculpas que vão arrumar para o racismo e machismo. Ou melhor, para negar que isso é machismo e racismo. A outra é saber como o público consciente vai lidar com isso. É preciso haver muita reclamação, muito debate, e isso é papel de todos nós.

2) Do jornalista Claudio Loetz, que tenho certeza que é um homem justo, e do jornal A Notícia eu espero uma reportagem sobre o machismo e o racismo no mercado e no ambiente de trabalho. Era isso que devia ser feito assim que chegou a informação à mesa. Era um flagrante, uma reportagem pra cá. Essa é a capacidade que o jornalista tem que ter.

3) Do autor ao qual a fala foi atribuída, Pedro Luiz Pereira, eu espero um honesto pedido de desculpas e ações que visem combater o racismo e o machismo dentro da sua organização, dentro do mercado de trabalho e consequentemente na sociedade.

Combater esses e outros preconceitos, assumir a culpa pelos erros históricos, promover ações para repará-los e não admitir que se repitam é um dever de cada um de nós.


P.S.: Vou falar sobre preconceito geracional em outro texto. Quero ler algumas coisas sobre o assunto antes.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Tá liberado!


Alianças políticas, biografias e o exemplo americano


POR CLÓVIS GRUNER

Há coisas que me agradam no modelo americano de democracia – e claro, há outras que não, mas delas não falarei hoje. Uma: nos Estados Unidos, ex-presidentes não podem ocupar nenhuma função pública ou disputar outro cargo eletivo. É claro que eles continuam a fazer política; o objetivo da legislação não é afastá-los da vida pública. No horizonte, e sempre de um ponto de vista ideal, está o entendimento de que em uma democracia, a renovação – mesmo que dentro de um mesmo partido – é tão importante como o direito de escolha.

No Brasil é diferente. Com o anúncio da união entre Eduardo Campos e Marina Silva para as eleições de 2014, as especulações ganharem espaço nos noticiários e redes sociais. Entre elas, uma me chamou a atenção: sentindo-se ameaçados, tucanos e petistas teriam chegado a aventar a possibilidade de lançarem FHC e Lula, no lugar de Aécio Neves e Dilma Rousseff. Acho pouco provável. Mas que tal tenha sido sugerido, revela uma das muitas fragilidades da nossa cultura política, o personalismo. É essencial à democracia que partidos sejam capazes de forjar novos líderes. Além disso, uma eleição se vence com nomes, certamente, mas também e principalmente com projetos.

O caso do PT é mais emblemático. Pesquisas apontam uma vantagem significativa de Dilma. Mas falta um ano para as eleições, e o partido precisa ser capaz de manter o favoritismo e continuar a convencer os eleitores com base em realizações passadas e presentes e em planos futuros. O carisma e os altos índices de aprovação de Lula não podem ser um deux ex machina eleitoral. Por outro lado, as declarações de Marina tampouco sugerem que seu interesse é, de fato, renovar o debate político, mas simplesmente substituir um dos atores da atual polarização, o já combalido PSDB.

Tudo junto e misturado, parece mesmo que estamos à deriva. Os dois maiores partidos brasileiros e o que surge como promessa de renovação já deixaram claro seus projetos de poder. Mas nenhum deles tem, efetivamente, um projeto para o país.

ERA PROIBIDO PROIBIR – Vai longe o tempo em que Caetano Veloso desancou os estudantes que o vaiaram durante o IV Festival de Música Brasileira – mais precisamente, 45 anos. Se há quatro décadas e meia o então jovem compositor ecoava o Maio francês, hoje ele se vale de sua conhecida verborragia para disfarçar o indisfarçável e justificar o injustificável. Abrigados na associação “Procure Saber”, capitaneada pela empresária e ex-atriz Paula Lavigne, ele, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan e Roberto Carlos, entre outros, defendem a manutenção dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que proíbem a publicação, para fins comerciais, de biografias não autorizadas. Na prática, isso significa que biógrafos só podem publicar desde que devidamente autorizados pelos biografados ou seus herdeiros.

Não vou me alongar. Tudo que gostaria de dizer sobre o tema – e até um pouco mais – já foi dito pelo jornalista Mário Magalhães, biógrafo de Marighela, em seu blog. Mas me causa espanto ver nomes cuja resistência à violência da ditadura e seus muitos meios de censura é amplamente conhecida, posicionando-se tão descaradamente a favor dela e com argumentos pífios – entre outras coisas, a “Procure Saber” reivindica que os biografados recebam uma porcentagem sobre as vendas de suas biografias, sob a alegação de serem os personagens de tais narrativas. A coisa beira ao absurdo: recentemente Roberto Carlos, o mesmo que, tal um inquisidor, conseguiu que recolhessem das livrarias sua biografia e só voltou atrás na decisão de mandar à fogueira centenas de exemplares na última hora, entrou com um pedido para proibir a venda de um livro – originalmente uma dissertação de mestrado em História, um trabalho acadêmico portanto, não uma biografia – sobre a Jovem Guarda. Solidário ao “rei”, Chico tentou desqualificar o historiador Paulo César Araújo, autor da biografia, chamando-o indiretamente de desonesto. Foi ampla e documentalmente desmentido.

Nos Estados Unidos biografias não autorizadas são permitidas por lei, sob a alegação que a liberdade de expressão e o direito à informação estão acima do direito à privacidade, especialmente quando se trata de personalidades públicas. Desacordos são resolvidos na Justiça. No Brasil prevalece o entendimento contrário. Ora, mas se as noções de público e privado já são, em si, problemáticas, elas o são ainda mais quando envolvem figuras públicas – sejam elas artistas ou não. Primeiro porque há, sim, a inegável e quase “natural” curiosidade do público sobre a vida de seus ídolos, por exemplo. Mas não é só, nem o principal: justamente porque públicas, suas trajetórias se confundem com a história do país. Saber delas, de suas escolhas, seus percursos, seus engajamentos, suas experiências e ideias é saber um pouco mais sobre nosso passado. Nos coibirem de conhecer suas biografias ou nos limitar às autorizadas, é privar o leitor de conhecer aspectos da história que, muitas vezes, só nos chegam quando narradas sob o ponto de vista de quem as viveu.

Caetano fala muito, mas não diz o óbvio: o que está em discussão não é o direito à privacidade, mas a pretensão de monopolizar o direito ao passado. Eles não entenderam nada e saíram dessa diminuídos. Como disse um amigo: “os ídolos da velha MPB encolheram”.

PS.: No dia 11 de outubro o Brasil perdeu Gabriela Leite. A mais destacada defensora dos direitos das prostitutas brasileiras, mais conhecida pela criação da marca Daspu, Gabriela morreu aos 62 anos, vítima de câncer. Ela sabia que as fronteiras entre a vida privada e a esfera pública eram tênues. E soube usar a primeira em benefício dos embates que travou na segunda. Este texto é uma homenagem a ela.