POR
CLÓVIS GRUNER
No último domingo, manifestantes foram às
ruas em cerca de 300 cidades brasileiras. Os números totais variam de 3,5
milhões, segundo estatísticas das polícias militares, e 6,9 milhões, de acordo
com os organizadores (link1). Sob quaisquer perspectivas, um número expressivo o suficiente para não ser
ignorado e preocupar especialmente um governo que já fraqueja, débil, desde
praticamente a posse, e que se vê hoje isolado e sitiado até por setores do
próprio PT, partido a que pertence a presidenta.
Pesquisa realizada pelo Datafolha, e
publicada na edição de segunda-feira do jornal paulistano, revela alguns dados
interessantes (link2). E ainda que o levantamento esteja restrito a São Paulo, capital, ele serve como
parâmetro para avaliarmos o perfil médio de quem foi às ruas. Em linhas gerais,
o perfil se mantém “elitizado”: a maioria dos manifestantes são homens acima de
36 anos; 77% tem curso superior – o mesmo índice dos que se declararam brancos
–; 12% são empresários e metade tem média salarial entre cinco e 20 salários
mínimos.
Os números da Datafolha podem ser lidos
como complemento a pesquisa realizada em agosto do ano passado pelo professor
Pablo Ortellado, da USP, Esther Solano, da Unifesp, e Lucia Nader, da Fundação
Open Society (link3). O levantamento já indicava um perfil predominantemente de classe média. Mas a
presença ainda pouco expressiva da população mais pobre não significa,
necessariamente, que ela esteja satisfeita com o governo Dilma (link4).
As razões podem não ser as mesmas, mas o governo petista está a perder apoio
mesmo entre a população mais carente, aquela que não se pode acusar de ser
“privilegiada”. Que suas queixas não tenham a mesma repercussão apenas confirma
uma tradição histórica da política brasileira, a de fazer ecoar as vozes
privilegiadas e dar pouca ou nenhuma importância a quem vive nas periferias.
“CONTRA
TUDO O QUE ESTÁ AÍ” – Se as pesquisas constatam,
por um lado, que é a maioria branca e de classe média que engrossa as fileiras
das manifestações, por outro elas obrigam também a tomar certo cuidado antes de
afirmar, com a certeza característica dos debates travados nas redes sociais,
de que são todos conservadores e “fascistas”. Antes pelo contrário, a aposta em
um perfil político mais eclético me parece mais certa, já que é difícil
sustentar a hipótese de que quase quatro milhões de brasileiros são
conservadores ou, pior, fascistas.
Mas mesmo o ecletismo e as vaias contra
Alckmin e Aécio, praticamente expulsos da Avenida Paulista, não desfazem
inteiramente a sensação de que a indignação “contra tudo o que está aí” é, ainda,
bastante seletiva (link5).
Sensação reforçada pelas notícias que circularam nos últimos dias: primeiro foi o tweet de Ricardo Noblat, que ele tratou de
apagar assim que percebeu a bobagem que havia feito (link6). Depois, a entrevista com Eder Borges, coordenador do
Movimento Brasil Livre em Curitiba (link7), sem dúvida, das mais esclarecedoras. E por fim, em sua coluna
de segunda-feira, Mônica Bergamo voltou ao assunto (link8), confirmando algo sobre o qual venho falando há tempos: a
bandeira da ética está a servir a interesses pouco claros. E para muita gente
que foi às ruas o problema não é a corrupção, mas o PT. Basta o governo Dilma cair
e Lula ser preso, para a insatisfação arrefecer e a maioria silenciosa voltar a
assistir a tudo bestializada.
Mas isso não é o pior: sei que nem todo manifestante marcha com Bolsonaro e pede
intervenção militar. Mas esse é o tipo de coisa em que basta um, porque um já é
muito. E os que insistem em aplaudir um deputado esse sim, fascista, e empunhar
cartazes pedindo a volta da ditadura são bem mais que um. Tampouco me agradam
as imagens de gente ajoelhada rezando pelo país e o patriotismo caricato, com
manifestantes uniformizados de CBF (uma contradição, aliás) cantando o hino
nacional. E enfim, acho lamentável que nossos heróis sejam um juiz punitivista
e uma corporação policial, especialmente o primeiro, alçado praticamente à
condição de entidade quase sagrada.
E O
PT COM ISSO? – Nada disso, no entanto, serve para
desfazer ou corrigir os inúmeros erros do PT. A esquerda mais próxima ou
simpática ao governo reivindica o engajamento, em defesa do partido e de Dilma,
dos setores progressistas. Mas é difícil defender um governo que cooptou ou
neutralizou alguns dos principais movimentos sociais, enquanto fazia vistas
grossas para a criminalização de tantos outros (link9).
Fala-se no “avanço conservador”, mas foi o governo petista quem se aliou a
grupos e forças conservadores – é preciso lembrar sempre, entre outras coisas,
que temos na presidência uma mulher que só fala a palavra “aborto” para
reafirmar sua proibição e que agiu para impedir qualquer avanço nas políticas
de gênero e de combate à homofobia?
E há, claro, as inúmeras denúncias de
corrupção. Não tenho dúvidas de que as investigações conduzidas pelo MP e pela
PF têm sido politizadas ao extremo. E que é cada vez mais óbvio que a oposição
e parte da mídia estão a fazer um largo e espetacularizado uso do envolvimento
do PT e de suas lideranças em esquemas de corrupção. Por outro lado, é também
cada vez mais difícil apostar na inocência do partido e das lideranças
petistas, e acreditar no discurso de que é tudo não passa de uma grande
conspiração da justiça, da mídia e da oposição.
Talvez não tão culpado quanto gritam os
opositores, mas provavelmente também não tão inocente quanto alegam os
defensores, a essas alturas a impressão que tenho é de que, ao PT, já não
importa defender o atual governo, mas salvar 2018. Por isso estão a jogar Dilma
aos leões enquanto blindam desesperadamente Lula.
OU, A DEPENDER DAS NOTÍCIAS:
o
último grande ato nesse sentido foi a nomeação de Lula para o ministério de Dilma,
uma clara tentativa de, sob o pretexto de reagrupar a base governista usando a
liderança do ex-presidente, tentar poupá-lo da sanha persecutória de Moro
conferindo-lhe foro privilegiado.
***
No
fim, há um custo alto em tudo isso, e quem paga a fatura é, principalmente,
nossa ainda frágil democracia, à mercê das estratégias pouco republicanas do
governo e da oposição. Em novembro de 2014, quando a Lava Jato ainda
engatinhava, escrevi aqui no Chuva Ácida sobre a corrupção e sua presença na
história do país (link10). E encerrava afirmando que tanto a indignação quanto o combate à corrupção
deveriam fortalecer a democracia, não fragilizá-la.
Nas manifestações de junho de 2013 algo
assim aconteceu, mas nenhuma das forças políticas institucionais, a começar
pelo governo e o PT, estavam dispostos a incorporar as demandas das ruas, que
naquela ocasião sinalizavam para a necessidade de fazer avançar nossa cultura
democrática. A indiferença de três anos atrás cobra seu preço. Porque talvez o
que fique das ruas agora seja, justamente, o enfraquecimento da democracia e
uma derrota que as esquerdas, e não apenas a petista, terão dificuldade de
superar.