quinta-feira, 5 de junho de 2014

A raça, o mérito e a antropologia


A meritocracia só é possível quando todos
partem em condições de igualdade

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Há um provérbio romano, do qual nem gosto muito, que funciona como uma advertência: “sapateiro, não vá além do sapato”. Quer dizer que certas pessoas tendem a dar opiniões sobre temas para os quais não têm uma preparação adequada. Ou, digamos, mérito. É o caso do vereador Fábio Dalonso, que um dia destes produziu uma barafunda antropológica ao falar em questões raciais.

O texto, segundo deu para entender, mais do que um ataque às cotas raciais é uma defesa da meritocracia. O despautério começa aí. Hoje é dia qualquer pessoa que use a expressão mérito tem logo acolhida de boa parte da pequena burguesia (a classe média dos trabalhos não braçais). O fato é que a meritocracia só é admissível se todos partem em condições de igualdade. Portanto, uma ficção sociológica.

Nada pior na defesa de uma tese que partir de um erro crasso. O vereador cita Pelé, Joaquim Barbosa, Barack Obama, Oprah Winfrey, Tiger Woods, Mike Tyson, Venus e Serena Williams, Neil deGrasse Tyson ou Lewis Hamilton para afirmar um ponto em comum: “são negros, vieram da pobreza, com problemas familiares sérios, oriundos de escolas públicas e venceram por seus méritos, persistência e valores”.

O texto traz uma generalização errônea que pode mesmo denunciar um ato falho do racismo: se é negro, então é pobre e tem problemas familiares. No entanto, se muitas dessas pessoas não vinham de famílias ricas, também não eram pobres, como Obama, deGrasse, Woods ou as irmãs Williams, por exemplo. Aliás, seria interessante investigar a aplicação das cotas nos Estados Unidos. Suspeito que possa haver relação.

O texto faz uma espécie de antropologia de revista cor de rosa. O vereador cita uma fala de Morgan Freeman, mas inverte a intenção do ator: ele fala justamente na perpetuação do racismo. É preciso contextualizar. A fala é de uma entrevista de 2005, com o jornalista Mike Wallace, no programa “60 Minutes”, e o tema era o Black History Month, um evento que evoca a história negra. Foi assim:

Wallace: Mês da História Negra, você acha...
Freeman: Ridículo.
Wallace: Por quê?
Freeman: Você vai querer relegar a minha história a um mês?
Wallace: Vamos lá...
Freeman: O que você faz com o seu? Qual mês é mês da História Branca? Vamos, me diga.
Wallace: Eu sou judeu.
Freeman: Ok. Qual é o mês da História Judaica?
Wallace: Não existe.
Freeman: Por que não? Você quer um?
Wallace: Não, não.

Ops! O vereador diz que “as cotas raciais produzem um efeito horrível na sociedade, pois elas aumentam a identificação racial num tempo onde sabemos que não existe raça branca ou negra – apenas a humana”. Aliás, basta olhar para a Câmara de Vereadores que, numa representação equitativa da sociedade brasileira, tem metade de vereadores negros. E não há identificação racial, porque só o mérito é visto. Sério?!?!?!

Num insight antropológico que podia entrar para os compêndios, o vereador afirma que a instituição de cotas é segregacionista, racista e cria cidadãos de segunda classe. Não sei onde o vereador vai buscar os seus votos, mas acho que talvez fosse interessante prestar atenção nos excluídos: para eles ser cidadão de segunda categoria poderia ser uma evolução. É melhor que a exclusão, a invisibilidade e a negação a que foram historicamente relegados.

Fim de análise: quem acredita na meritocracia não deveria escrever textos nos quais é difícil encontrar qualquer mérito.

28 comentários:

  1. As cotas raciais é o maior revés das políticas sociais implantadas pelo PT. Deveriam ser (mas não são!) “cotas sociais” para TODOS os cidadãos (brancos e negros) que demonstrassem incapacidade de bancar estudos que são de responsabilidade do Estado, afinal todos pagam impostos. Deste modo o governo estaria atacando o problema, atingindo seu público (a grande maioria dos pobres no Brasil é formada por negros) sem agredir a constituição. Além do mais, despautério é sua tonalidade de pele ser analisada por alguém através de uma fotografia.

    Em tempo o governo aprovou cotas raciais para o serviço público, obrigando as repartições reservar 20% das vagas para os negros, essa resolução vale por 10 anos. A pergunta que não quer calar e causa desconforto até aos que mais defendem a política das cotas é: daqui a dez anos o filho deste cotista beneficiado pela resolução vai conseguir competir de igual com outras pessoas, ou terá que esperar a renovação desta para conseguir vaga no serviço público? Cadê os investimentos na educação básica que deveriam concorrer com as cotas?

    Alberto

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    1. Desculpe se não respondo. Mas o meu texto não é sobre cotas. É sobre antropologia de porta de banheiro.

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    2. 09:04, as cotas propostas pelo governo do PT são SOCIAIS: onde elas foram implementadas, as cotas são para alunos oriundos de escolas públicas e de baixa renda. Dentro da cota SOCIAL, há uma porcentagem que é destinada às cotas RACIAIS, que varia de instituição para instituição.

      Na proposta original, nunca implementada porque nunca votada pelo parlamento, a cota RACIAL seria proporcional ao número de negros e pardos no estado, de acordo com o censo demográfico.

      Além disso, e também de acordo com a proposta original, o programa de cotas teria prazo de validade determinado: depois de alguns anos - não lembro ao certo quantos, acho que dez - seus resultados seriam avaliados e sua continuidade, mudanças eventuais ou simplesmente exclusão, estariam condicionadas aos resultados obtidos.

      Claro, você não sabe de nada disso, porque nunca se informou a respeito. Dar pitaco sobre o que não sabe e não conhece, sem fazer o menor esforço para isso, virou modinha. E desculpe se GRITEI com você, mas você foi tão enfático ao gritar que as cotas sociais deveriam ser para TODOS, que achei melhor gritar também.

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    3. Excelente intervenção Clóvis. Nunca me aventurei nesse tema porque realmente nunca me informei corretamente a respeito. Nesse tema em especial eu sempre fui essencialmente contra, mas por outras razões que explico no post abaixo. No entanto, era uma posição superficial e com argumentos colhidos aqui e ali em conversas descompromissadas. Nada muito sério. Acredito que a maioria das pessoas também tem essa opinião e desconhecem mais profundamente o assunto. Minha opinião mudou um pouco depois dessa sua explicação. Ponto para o Chuva Ácida.

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    4. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm

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    5. http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/senado-aprova-cotas-raciais-em-concursos-publicos-federais

      Alberto

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    6. o grande problema da parte racial das cotas sociais é que raça NÃO EXISTE. A melanina é apenas um sistema de defesa do corpo contra o excesso de radiação solar. Cor de pele não define absolutamente nada. Insistir em classificar as pessoas pela cor da pele é racismo. Que no passado o ser humano tenha cometido essas ignorâncias vá lá, nós não somos um bicho muito inteligente mesmo. Mas insistir nisso no século 21 é o fim da picada. Estão equivocados o vereador, o governo e quem defende os dois pontos de vista.

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    7. As cotas são raciais, não sociais. Só podem pleitear vagas através das cotas aqueles que se declararem indígenas ou negros. Pobres oriundos das escolas públicas não estão dentro do pacote, já um negro de classe média...

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  2. Acho que tem uma questão muito importante que deve ser levada em consideração... Qual a tonalidade da pele que é considerada negra? Isto definirá quem sofre com o preconceito. Vendo o caso do jogador Dani Alves que comeu a banana atirada por torcedores rivais, com a alusão de chamá-lo de macaco... Dani Alves é branco não tem nada de negro. Sobre a questão "a grande maioria dos pobres no Brasil é formada por negros", isto não é verdade, onde fica a definição de quem é pardo... é negro ou branco? Um pardo aqui em Santa Catarina é considerado negro, o mesmo pardo no Rio de Janeiro é considerado branco... ou seja esta política de cota para o serviço público é nebulosa, pois tenta corrigir um problema que pode não existir. As cotas em faculdades são aceitáveis, agora no serviço público são erros, pois as pessoas não serão contratadas pelo suas competências, serão contratadas pela sua aparência. O setor público precisa de pessoas competentes e não uma forma de compensar um erro histórico.
    Sobre a fala do vereador, concordo que ele fala um monte de besteira... como comparar o Pelé ao Joaquim Barbosa, ou Lewis Halmiton com o Obama... Qual é o mérito de um esportista? Ser pobre não o impedirá de conseguir jogar num clube internacional, e qual é o mérito de um juíz formado em direito, conseguir estudar em bons colégios, são duas coisas bem diferentes. Existe sempre o caso da exceção, alguém consegue sair do fundo sem ajuda, mas é exceção.

    Falando em Morgan Freeman lembro do filme Invictus, que retrata Nelson Mandela, lá ele não manda embora os empregos públicos brancos quando o Mandela assume a presidência, ele tenta passar por cima da questão racial, chamando os brancos para participar do governo com ele. Temos que ser mais Luther King e não Malcom X...

    Rudimar

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  3. Baço para VEREADOR. O parlar e o pensar me fariam comparecer a câmara de vereadores sempre.

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    1. Sei não, James. Para ser vereador é preciso ter um tipo (de) mérito que eu não tenho...

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  4. Baço, você também é contrário à meritocracia né? Interessante como tanta gente possui essa opinião. Tenho visto inúmeros ataques ao mérito. E de pessoas supostamente cultas e inteligentes.
    Mas acho que entendo a razão.
    Afinal, é muito mais fácil bypassar (ou seria baipassar? sei lá) o estudioso, o competente, o esforçado e o diferente com um bilhetinho do senador né? Ou mesmo do vereador, ou do prefeito.
    Ah essa nossa Sucupira...

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    1. Não disse que sou contra o mérito, Nelson. Digo que as pessoas partem de uma interpretação equivocada do que é meritocracia.

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    2. Nelson, o problema não é a meritocracia em si, mas a panaceia que virou o conceito ao ser utilizado - para variar - por gente que pouco sabe a respeito.

      Se interessar e ajudar:

      http://www.chuvaacida.info/2014/02/a-meritocracia-e-uma-utopia.html

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    3. Grato, Baço e Clóvis. Acho que a minha visão do assunto é mais simplificada. Vivi e presenciei casos absurdos de arrepiar os cabelos durante toda minha vida profissional. Assim, para exemplificar melhor, sempre lembro de parte de um celebérrimo texto de Rui Barbosa que nunca me sai da cabeça. A parte que destaco é: "de tanto ver triunfar as nulidades".....acho que o resto todo mundo conhece né

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    4. Acho que todos presenciamos situações profissionais estranhas, Nelson. O problema está justamente em achar que o "mérito" é unívoco. Não é e não pode ser. Eu defendo a ideia da "igualdade de oportunidades". E sabemos que na prática isso não existe. Sempre brincava, com exagero, com os meus amigos quando discutíamos a questão de dar certo na vida: "imaginem quantos potenciais einsteins existem no Itaum e nós nunca saberemos que existem". Abraços.

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    5. https://www.youtube.com/watch?v=UHEHY2Rzd_Y&feature=kp

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  5. A figura que acompanha o texto mostra bem essa analogia que o Baço quis exemplificar. Pessoas que partem juntas podem competir em igualdade de condições. Agora, se uma pessoa carente (seja negra ou não) é colocada em uma faculdade de ponta pelo sistema de cotas, sem ter tido a base necessária ou com um desempenho pregresso inferior, ela também não estará competindo em igualdade de condições com os alunos "burgueses" que vieram de escolas particulares e cursinhos da moda.
    Em minha opinião (e posso estar sendo míope nesse caso) é que o governo deveria trabalhar na questão primordial do aumento de qualidade na educação fundamental) que é a causa principal dessa distorção toda. Mas o governo prefere trabalhar com soluções cosméticas, puramente paliativas ao invés de atacar o cerne da questão.
    Gostaria de conhecer a opinião dos diletos articulistas aqui do Blog, se possível.

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    1. Andre concordo que os governos, Municipais, pois educação fundamental é com eles, Estaduais, pois ensino médio é com eles e Federal devem fazer a sua parte.
      Interessante notar que o Governo Federal implementa as cotas para tentar ajustar/corrigir falhas graves que não foi ele que gerou. Acredito que a politica de cotas será considerada no futuro como um diferencial, um divisor de águas. Pois graças a politica de cotas para negros e índios o governo federal está introduzindo a cota para oriundos da escola pública e ninguém está chiando. Quando acordarem 50% das vagas em Universidades federais serão destinadas as escolas públicas e ninguem viu nada.
      E Andre só pra esclarecer, quando lançaram as cotas raciais eu também era contra. Hoje, penso de outra forma sobre o assunto.

      Abaixo um linque sobre cotas.

      http://portal.mec.gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html

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  6. André, só escolhi a imagem porque dois dos moleques estão calçado e os outros não. Então, não partem em igualdade. Aliás, o objetivo do meu texto não é discutir a questão das cotas e nem o tal "mérito". Mas é óbvio que questiono todas as falsificações intelectuais que são cometidas em nome da meritocracia (parece uma varinha mágica que vai resolver todos os problemas da humanidade). Concordo com a questão do ensino fundamental, mas uma coisa não elimina outra. As cotas sociais são uma discriminação positiva que permite pagar parte uma dívida histórica que a nação tem com os excluídos.

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    1. Baço, entendo o seu ponto de vista. O problema é dessa turma do "meio-termo" como eu, por exemplo. Eu não fui um jovem carente, mas também não tínhamos renda suficiente para bancar um cursinho pré-vestibular. Eu até tentei entrar num Federal, mas só passei na minha segunda opção, que quase não tinha concorrência. Acabei nem fazendo o curso e migrei para a Univille (paga). Se já era difícil naquela época, imagina agora que eu teria que concorrer com os endinheirados e com menos vagas disponíveis (por conta das cotas). Aí que eu não teria chance mesmo.

      Enfim...não dá pra satisfazer todo mundo mesmo, mas gostaria de passar a visão da classe média dos anos 80, que também gostaria de ter um ensino público superior de qualidade sem ter que pagar os olhos da cara por isso.

      Com relação ao comentário do L.S. Alves acima, gostaria de dizer que o ensino fundamental é de responsabilidade dos governos municipais, o que por si só já é um erro. Como é que uma prefeitura de uma cidade pobre poderá bancar um ensino fundamental de qualidade? Deveria haver, em minha opinião, a federalização do ensino fundamental e deixar o ensino superior na iniciativa privada mesmo. O governo, nesse caso, poderia dar bolsas de estudo para os alunos carentes com bom desempenho escolar no ensino fundamental e médio. Aí sim teríamos uma competição justa pois esse alunos ganharia a bolsa apenas se passasse no vestibular, já que teve toda a sua base com qualidade.

      Hoje temos alunos de curso superior que não sabem as regras básica da língua portuguesa e nem sabem interpretar textos. É essa geração que vai tomar conta do Brasil daqui pra frente. E isso é assustador.

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    2. André, então vou dar dois exemplos práticos:
      1. Quando fazia o ensino básico numa escola estadual, havia uma menina inteligente demais (ou pelo mais mais aplicada). Ela só tirava notas 10 enquanto eu era mediano. A diferença é que os meus pais perceberam que eu devia ir para uma escola particular, porque tinham dinheiro para pagar. A tal menina hoje é balconista e acho que perdemos a capacidade de um cérebro. 2. Quando entrei para a Faculdade de Engenharia só havia um aluno de Joinville e vindo de uma escola estadual. O cara só tinha que ser bom, porque na turma os outros 39 eram filhos de pais com grana. É óbvio que esse cara desistiu da faculdade porque teve que trabalhar para ajudar a família (a FEJ era em tempo integral). É isso. Não há mérito que resista.

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  7. Meu comentário foi censurado? Ou não foi aprovado ainda?

    Rudimar

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    1. Não sei, Rudimar. Este é o único comentário teu que vi aqui. Tens a certeza de que conseguiste publicar?

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    2. conhece, baço?
      http://files.moguldom.net/sites/21/2014/01/abebe.jpg

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    3. Deve dado algum problema, respondo depois então.

      Rudimar

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    4. Sim, conheço. O Abebe Bikila é mítico. O problema é que esses fenômenos não se repetem. E ele treinou sempre descalço. Com sapatilhas ficaria em desvantagem.

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