sexta-feira, 29 de junho de 2018

Udo Dohler visto pelo Sandro Schmidt (1)

POR ET BARTHES
Já notaram como o prefeito anda sumido? Ninguém vê, ninguém sabe onde anda, ninguém tem notícias. Então, para os leitores e as leitoras matarem saudades, hoje vamos exibir o primeiro filme de uma série com charges do Sandro Schmidt feitas ao longo dos últimos anos.



quinta-feira, 28 de junho de 2018

Manuela d'Ávila: do manterrupting ao "mandumbing"

POR LEO VORTIS
Esta semana a expressão “manterrupting” entrou de vez para o vocabulário dos brasileiros, em especial através nas redes sociais. Tudo pode causa da entrevista da deputada Manuela D’Ávila no programa Roda Viva, da TV Cultura. Aliás, chamar aquilo de entrevista é generosidade, porque foi um show de boçalidade e ridículo machismo.

Nem vou falar do painel reunido para a entrevista, onde constava um assessor de outro candidato, porque isso já foi muito debatido. Ora, a entrevista é a alma do jornalismo. O papel do entrevistador é perguntar, em especial as perguntas incômodas. Mas também é saber perguntar e saber ouvir. A entrevista pode entrar para a história do jornalismo como um case study de “manterrupting”.

O tema já foi muito debatido (inclusive aqui mesmo pelo Clóvis Gruner) e por isso vou falar num tema paralelo. A influência da resistência ao machismo na linguagem. É que nos últimos tempos surgiu um rol de novas palavras todas ligadas a esse plano. Infelizmente em língua inglesa, porque o português é capaz de expressar essas ideias. Mas, enfim, importa que as coisas sejam nominadas e ganhem existência concreta.

O dicionário é extenso. A começar pelo “manterrupting”, que foi a marca maior na entrevista do Roda Viva. É quando um homem interrompe uma mulher, de forma a impedir que ela conclua o raciocínio. Mas as formas de expressão quotidiano foram enriquecidas por outras palavras que têm raiz na denúncia dos comportamentos machistas, ainda muito em sociedades como a nossa.

E dou alguns exemplos:
- Mansplaining
É talvez o de compreensão mais simples. É quando um homem tenta explicar a uma mulher coisas óbvias, que ela sabe muito bem.
- Bropriating
É quando, num ambiente de trabalho, um homem (“bro”) se apropria (“appropriating”) dos méritos de uma ação ou uma ideia de uma mulher.
- Gaslighting
É violência emocional. Os homens começam a tratar a mulher como maluca por alguma ação qualquer. “Você está doida? Não era essa a intenção”.
- Slutshaming
É quando os homens dizem que a mulher é uma vadia, apenas por ela ter um comportamento mais livre.
- Manspreading
É quando o homem senta nos transportes públicos e abre as pernas, de forma a ocupar também o espaço do banco vizinho.

Enfim, graças à maior exposição de ideias nas redes sociais essas palavras - entre tantas outras - acabaram por ganhar expressão. E no caso do programa Roda Viva vou me dar à liberdade de criar um neologismo: “mandumbing”. Ou seja, homens idiotizados. Aliás, quem se deu ao trabalho de ver a tal entrevista deve ter sentido dentro de um enorme Facebook, tal o nível ridículo dos entrevistadores.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Cultura do estupro e banalização da violência


POR CLÓVIS GRUNER
O cenário é o estúdio de gravação do “Roda Viva”, que segunda (25), na série de encontros com os presidenciáveis, supostamente entrevistou a deputada e candidata do PCdoB, Manuela D’Ávila. E digo supostamente, porque o que se viu passou longe de uma entrevista: a bancada “livremente escolhida” pela produção do programa não pretendia outra coisa além de desqualificar sua candidatura, e levou a tarefa a sério.

Parte da postura agressiva dos entrevistadores, que pareciam ter saído direto da Guerra Fria, se explica pelas posições ideológicas da presidenciável. E digo parcialmente porque, por exemplo, mesmo tensa, na entrevista com Guilherme Boulos o candidato do PSOL teve espaço para responder aos arguidores. Mulher e feminista, a Manuela D’Ávila não foi concedido o mesmo direito. Mas não pretendo analisar o programa ou defender o PCdoB, partido pelo qual não nutro nenhuma simpatia.

Cito o “Roda Viva” por um motivo: o embate entre Manuela D’Ávila e um dos coordenadores da campanha de Jair Bolsonaro e diretor da Sociedade Rural Brasileira, Frederico D’Ávila, em torno ao tema do estupro. Em um movimento mental tortuoso tão comum, por exemplo, entre os comentaristas anônimos desse blog, Frederico começou com a trajetória do avô, sobrevivente do nazismo, e terminou com a defesa da castração química como solução para o estupro. Em uma das muitas vezes que a interrompeu, afirmou que não existe “cultura do estupro” - para, em seguida, voltar ao avô.

Um dos argumentos (passe o exagero) do entrevistador é de que a castração química, ao punir exemplarmente os estupradores, resolveria o problema, argumento (passe, de novo, o exagero) brandido por Bolsonaro e um punhado de homens – e também algumas mulheres. A medida é defendida por quem entende o estupro como sexo, ainda que com violência, bastando para isso restringir, punir ou simplesmente eliminar o “desejo sexual”.

Não é sexo, é poder – Mas estupro não é sobre sexo; é sobre poder, e eles e elas ignoram, propositadamente ou não, que castrar quimicamente o estuprador pode até atacar um dos sintomas mas, fundamentalmente, deixa intocado o problema. Quando feministas enfatizam a importância, por exemplo, de se discutir relações de gênero nas escolas e outros espaços públicos, elas estão afirmando, entre outras coisas, que reduzir o estupro a um ato sexual, silencia sobre e reproduz o exercício de um poder que se sustenta na violência.

A castração química e sua lógica punitivista, nesse sentido, é parte intrínseca da cultura do estupro, razão pela qual Jair Bolsonaro e Frederico D’Ávila defendem a primeira e negam a existência da segunda. Mas o próprio Bolsonaro afirmou à deputada petista Maria do Rosário, que não a estuprava porque ela não merecia, para explicar depois que ela não merecia ser estuprada porque é feia. Alexandre Frota, um de seus cabos eleitorais no meio artístico (sim, estou dado a exageros hoje), contou em rede nacional como estuprou uma mulher, desqualificada ao longo da sua narrativa por ser “mãe de santo”.

Um pouco antes disso, o humorista Rafinha Bastos cunhou a piada segundo a qual mulheres feias devem não acusar, mas agradecer seu estuprador. Na mesma época, uma campanha da Nova Schin levou ao ar uma peça onde um homem invisível ameaça e constrange mulheres, invadindo seu vestiário. Questionado, o Conar respondeu com indiferença, alegando que a propaganda era “baseada em uma situação absurda”: o homem que constrange mulheres e invade seu vestiário, provocando horror e medo, é invisível.

Para alguns, se a mulher for feia ou homem, anônimo, o estupro é válido e, em alguns casos, pode ser até divertido. É nisso, parece, que acredita outro humorista, Danilo Gentili; segundo ele, um homem que espera uma mulher ficar bêbada para transar com ela é um “gênio”. Afinal de contas, se algo der errado e ele for denunciado, basta dizer que ela estava vestida de forma inadequada ou sozinha à noite em uma festa e bebeu demais: uma das características da cultura do estupro é responsabilizar a vítima pela violência de que é objeto.

A banalidade do mal – Nada disso é novidade: o estupro, ao contrário do que se afirma correntemente, não é uma aberração anti-civilizatória, fruto exclusivamente de algum comportamento monstruoso. Ele é, antes, uma prática que ao longo da histórica serviu para afirmar e consolidar diferentes experiências de dominação e, como exercício de poder e violência de homens sobre mulheres, é preexistente ao seu enquadramento jurídico moderno. Os exemplos abundam, e em nenhum deles estamos a falar de sexo.

Os conquistadores europeus estupraram mulheres indígenas na conquista do chamado “Novo Mundo”, nos séculos XVI e XVII, e africanas nos séculos XIX e XX. Nos genocídios étnicos, mulheres são estupradas antes de serem assassinadas; militares violentam mulheres quando vencem o inimigo, como foi o caso das alemãs pelos soldados russos; francesas acusadas de colaborar com a ocupação foram estupradas pelos seus concidadãos durante a chamada épuration legale; não muçulmanas são estupradas por fundamentalistas religiosos, etc...

No Brasil, portugueses estupraram índias durante o processo de ocupação da colônia; senhores brancos estupravam escravas nas senzalas; filhos das camadas médias e altas violentavam empregadas domésticas como iniciação à vida sexual. No Código Penal de 1940, o estupro era considerado um crime contra os costumes, a sociedade e seus valores, e não contra a mulher. Mesmo hoje, há decisões judiciais que, amparadas no artigo 59 do Código Penal, levam em conta a vida pregressa da vítima (seu comportamento sexual, por exemplo), para amenizar a responsabilidade do agressor.

É isso que mulheres denunciam como cultura do estupro e é contra isso que lutam. Sua banalização, e a negação é parte dela, corrobora para a naturalização da violência. Discutir e educar principalmente os homens para a igualdade nas relações de gênero pode não ser a única resposta, mas é um caminho necessário e urgente. O punitivismo sexista defendido por Bolsonaro e seu coordenador de campanha, por outro lado, não é a solução para o estupro. Antes pelo contrário, é parte do problema.

terça-feira, 26 de junho de 2018

Mito


Mamãe, falei. E foi só vira-latice...

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Um dia destes vi, numa rede social, um post em que o tal Arthur do Val (do canal “Mamãe Falei”) teria “tomado uma surra de um petroleiro” num debate sobre a Petrobras. Uma surra verbal, diga-se. Fiquei curioso. Não pela surra, mas pela dúvida: quem convidaria um sujeito intelectualmente estéril para um debate? O que teria ele a dizer que alguém com dois dedinhos de testa queira ouvir?

O vídeo que rola na internet é apresentado da seguinte maneira: “com auditório lotado, com mais de 200 estudantes, estivemos no debate sobre a privatização da Petrobras, no Colégio Universitas, em Santos. E ouvimos muita besteira do MBL. Uma delas foi a reprodução, em tom jocoso, do velho mito elitista de que brasileiro é preguiçoso”. Sim... era uma tese: o brasileiro é um tipo vagabundo.

O cara disparou o velho clichê de que os brasileiros não prestam e os estrangeiros, estes sim, é que são bons e fazem tudo direitinho. Diz este grande pensador que não dá para entregar as coisas nas mãos do “brasileirinho gordinho folgado”, porque o cara não sabe jogar pelas regras da “competitividade internacional”. E ficamos a saber que brasileiros gordinhos são pouco competitivos. Ah... eis o complexo de vira-lata no seu esplendor.

A democracia tem os seus paradoxos e garante, às pessoas, o direito de dizer as besteiras que quiserem. Mas quando um energúmeno é levado a sério ao ponto de fazer palestras para estudantes, então é hora de refletir. Porque é quase atribuir um estatuto de ciência à ignorância, ao anti-intelectualismo e à iliteracia. E tudo tendo como pano de fundo a defesa da entrega do pre-sal aos gringos.

O viralatismo é a língua dos entreguistas. É gente culturalmente colonizada e para a qual o lugar do Brasil é mesmo a periferia do capitalismo. Aliás, vale lembrar Nelson Rodrigues, o criador da expressão. “Por complexo de vira-lata entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem”.

Pode parecer um episódio sem importância, mas é o sintoma de uma doença que está a corroer o tecido social. Essa ascensão do irracionalismo só pode empurrar o Brasil para o atraso. Os caras imaginam uma Suécia, mas estão a plantar as sementes de algo parecido com o Sudão do Sul. Afinal, como já disse alguém, os ignorantes levam vantagem sobre os sábios: a ignorância é grátis e a ciência custa dinheiro.

É a dança da chuva.



segunda-feira, 25 de junho de 2018

A sociedade que votará em outubro


POR JORDI CASTAN
Trump prende crianças em jaulas e as separa dos seus pais. Neste momento não é conveniente, para alguns, lembrar dos “coyotes” que atravessam a fronteira com crianças desacompanhadas e cobram caro por isso. Na Rússia, grupos de energúmenos incitam loirinhas desavisadas a repetir mantras ofensivos dos que desconhecem o sentido. A pátria de chuteiras está jogando cada dia pior e o herói nacional é, ao mesmo tempo, o atleta que acumula a maior dívida com a Receita Federal. Além de ser um menino malcriado.

A violência e os ataques de racismo, homofobia e machismo são tratados pela sociedade e especialmente pela imprensa, de forma diametralmente oposta dependendo de quem seja a fonte ou o alvo. Há esquecimento conveniente de alguns e glorificação de outros. No meio desta bagunça toda é interessante perceber qual é a reação e o papel de cada um dos segmentos que compõem o tecido social. A sociedade esta comporta por diversas tribos e cada uma delas tem comportamentos e atitudes diferentes. Entender e conhecer esse comportamento ajuda a compreender melhor o momento histórico que o país está vivendo.

Há os que não sabem. Hordas de ignaros convertidos em massa de manobra de uns e outros. Seguidores cegos de mitos, escravos da sua própria ignorância. Há os que não querem saber. E os que mesmo tendo o conhecimento e acesso a informação, preferem não saber. Acompanham a estes os que odeiam saber, os que não conseguem lidar com a verdade, que a deturpam, a tergiversam pela sua absoluta incapacidade de lidar com o seu ódio ou sua raiva.

Também há os que sofrem por não saber, os que carregam a sua incultura e desconhecimento como um pesado fardo que os prostra e os marca. Piores são os que sem saber, fingem que sabem, projetam a imagem de conhecedores, sábios de latão que refulgem com maior intensidade quanto maior é a ignorância que os rodeia. No Brasil de hoje, não são poucos os que triunfam sem saber. Tinha razão Rui Barbosa quando disse que aqui triunfavam as nulidades. Não há dia em que um deles triunfe e tenha seus quinze minutos de fama, alguns até mais de quinze, não são poucos os que tem sucesso durante anos, aclamados por multidões.

Mas nenhum grupo é mais nocivo e perverso, nem ocasiona males maiores, nem mais duradouros que o grupo formado pelos que vivem graças ao que os outros não sabem. Os que se aproveitam da ignorância e o desconhecimento dos demais são os que se denominam “políticos” e as vezes até usam o nome de “intelectuais”. Cada um dos grupos cumpre zelosamente sua missão na sociedade. O resultado do domínio de uns sobre os outros ou de predominância de outros sobre os uns define o modelo de sociedade e permite entender a importância e a forma de abordar cada um dos temas do quotidiano.

No que toca ao Brasil, é essa a sociedade que vota em outubro.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Capa da "Time" é um manifesto contra a intolerância

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO
Diz a velha expressão que uma imagem vale vale por mil palavras. Nem sempre. Mas é assim no caso da capa da revista norte-americana “Time”, talvez a imagem mais viral da internet esta semana. Para quem ainda não viu, a montagem é formada por um fundo vermelho, com uma criança pequena a chorar à frente Donald Trump. O texto diz: “Bem-vindo à América”.

A capa é simples, como costumam ser as boas ideias. A imagem é formada pela foto de uma menina hondurenha, de dois anos, a chorar em frente a um implacável e gigantesco Donald Trump. O resultado é uma capa que vale por um manifesto anti-intolerância sem precisar de um discurso elaborado ou palavroso. Está tudo lá.

A foto da menina é de autoria de John Moore, da Getty Images, com um Prêmio Pulitzer no currículo. “Eu tive que parar e respirar fundo ”, disse o fotógrafo ao descrever a cena em que a criança chorava ao ver a mãe ser detida em McAllen, no Texas. “Tudo o que eu queria fazer era buscá-la. Mas eu não pude”, confessou.

A questão da separação de pais e filhos imigrantes detidos pelas autoridades norte-americanas foi o tema quente da semana. O presidente norte-americano esteve novamente na mira dos críticos, em todo o mundo. Mas para ele isso tem pouco significado, uma vez que Donald Trump está acostumado a fazer o que bem entende sem dar ouvidos aos críticos.

E para trazer mais confusão ao tema, surgiu um “fait-diver” a envolver a primeira-dama Melania Trump, que foi visitar os locais de detenção a vestir um casaco com a inscrição “I really don’t care, do U?" (eu realmente não ligo, e você). Donald Trump saiu em defesa da mulher, afirmando que a inscrição é uma referência à mídia (que ele chama “fake news”).

Enfim, tempos muito loucos. 


quinta-feira, 21 de junho de 2018

Congratulations, Trump!


O Brasil exportando escrotice para a Rússia (vídeo)

POR LEO VORTIS
Até pouco tempo o mundo vivia apenas com os conceitos de esfera privada e esfera pública. Mas o desenvolvimento da internet e das redes sociais levou a um terceiro patamar, a esfera digital. A exposição das mensagens tem um novo alcance e obriga a um outros comportamentos.

Há um novo quadro midiático. Em outros tempos havia coisas que permaneciam no âmbito das conversas de bar, sempre em circuitos fechados, e nunca chegavam ao julgamento público. No entanto, extrapoladas para o mundo digital hoje adquirem outra exposição e podem fugir ao controle.

É o caso dos brasileiros na Rússia, que estão a dar exemplos de machismo, homofobia e outras escrotices. O que antes passava por simples javardice na esfera privada, adquire outro valor quando transposto para a esfera digital. E os julgamentos são implacáveis (de forma justa, diga-se).

É interessante que a cada dia aparecem novos filmes que são mais do mesmo. Tudo isso prova a incapacidade que essas pessoas - endinheiradas e aparentemente “educadas” -  têm de lidar com as novas tecnologias. Mas, principalmente, parecem ter problemas em interpretar valores e entender outras culturas. Se são escrotos no Brasil, devem entender que o mesmo não se aplica a outros lugares. 

O filme a seguir traz alguns episódios que estão a chocar os brasileiros - nem todos os brasileiros, claro -, mas é importante lembrar que isso não vem de hoje. Essa gente endinheirada que veste amarelo acha que pode tudo. E estes episódios pedem um pulinho ao nem tão distante ano de 2014.




quarta-feira, 20 de junho de 2018

O que resta de Junho?


POR CLÓVIS GRUNER
O Facebook me lembra, domingo último (17), que há cinco anos eu era um em meio a multidão da foto que ilustra esse texto. Em Curitiba, a passeata da noite de 17 de junho, uma segunda-feira, foi a maior. Três dias depois, o frio intenso e a chuva dificultaram a presença nas ruas, justamente a data em que as mobilizações atingiram o ápice: em 20 de junho de 2013, mais de dois milhões de pessoas ocuparam praças e logradouros de cerca de 400 cidades em todo o Brasil.

Cinco anos depois, permanece em aberto a interpretação sobre as “Jornadas de Junho”, um indicativo não apenas da pluralidade do movimento, mas da dificuldade de apreendê-lo e situá-lo. Minha intenção é fazer um balanço daqueles eventos a partir de três perspectivas, que se cruzam: conectá-los a contextos mais amplos; analisar algumas de suas singularidades; e, enfim, um breve exame de seus desdobramentos e das distintas e contraditórias apropriações de seu legado.

O gigante acordou? – Apesar de repetido à exaustão, reafirmando a percepção de que Junho foi uma novidade na história política recente, a irrupção de uma força – uma “potência”, se costuma dizer – recalcada e finalmente liberada, há nisso um certo exagero e, em parte, um equívoco. Entre outras coisas, porque sugere serem as “Jornadas de Junho” um evento único e solitário em sua incompreensível singularidade.

Nada mais enganoso. De diferentes maneiras, 2013 se relaciona com uma miríada de eventos que o antecedem e com os quais partilha similaridades: os motins em Los Angeles, em 1992; os levantes na Grécia e nos países árabes, apenas um ano antes; a revolta nos subúrbios parisienses em 2005; ou a Revolta dos Pinguins, no Chile. Mesmo se olharmos apenas o contexto brasileiro, a imagem de um “gigante adormecido enfim desperto” tampouco se sustenta.

De um lado, penso ser importante ler Junho à luz de algumas mobilizações que o antecederam: 2012 foi o ano com o maior número de greves em uma década e meia – 873 registradas pelo Dieese –, organizadas por um sindicalismo que, agastado depois de cooptado pelos governos de esquerda, tentava uma retomada. É nesse mesmo contexto que surge o MTST, e recrudescem os movimentos por moradias e as ocupações urbanas. Em suma, meu argumento é de que a espontaneidade de Junho precisa ser contrastada a movimentos que, em certa medida, contribuíram para sua erupção.

Além disso, desde pelo menos o começo da gestão Dilma, o modelo desenvolvimentista e redistributivo, tônica dos governos petistas, apresentava sinais de desgaste. Quer dizer, tanto quanto sua espontaneidade, a combinação entre mobilizações sociais pregressas e a corrosão do pacto político que sustentou os governos de esquerda (e de certo modo, toda a Nova República), me parece igualmente significativo para entender as “Jornadas de Junho”.

“Anota aí: eu sou ninguém” – Mesmo a juventude, sua principal protagonista, não despertou do sono repentinamente. Foram os jovens, principalmente, os que se solidarizaram com as comunidades indígenas e quilombolas; denunciaram a violência contra a mulher nas “Marchas das vadias”; protestaram contra a homofobia, o racismo e a violência policial e, sem cessar, chamaram a atenção para a precarização das escolas e do ensino público brasileiro, por exemplo. O MPL, que convocou as primeiras manifestações, existe desde 2005 e já havia liderado outras mobilizações e ocupado as ruas antes.

A acusação, comum, de que as “Jornadas de Junho” foram a “antessala do golpe”, desconsideram, entre outros, o fato de que, diferente das manifestações pelo impeachment, o perfil socioeconômico de parcela significativa dos manifestantes de 2013 era de jovens estudantes e trabalhadores com renda de até cinco salários mínimos, moradores das regiões periféricas principalmente das grandes e médias cidades, fossem elas São Paulo (onde o movimento começou e ganhou força), Curitiba ou Joinville.

Não surpreende, nesse sentido, que foram o aumento na tarifa do transporte público e a violenta repressão policial que se abateu sobre os manifestantes, os detonadores do movimento. No primeiro caso, os 20 centavos foram o pretexto para exigências maiores – o direito ao transporte público, a mobilidade urbana, a ocupação do espaço público e a humanização das cidades –, com o MPL assumindo uma condição, mesmo provisória, de mediador entre algumas demandas por cidadania e qualidade de vida e as políticas governamentais.

No segundo, a midiatização das mobilizações evidenciou uma realidade vivida diuturnamente por muitos dos manifestantes, militantes ou não: a violência policial, televisionada e flagrada em celulares, cujos vídeos foram compartilhados às centenas, foi a principal responsável pelo repentino e inesperado apoio ao movimento: pesquisa realizada pelo Ibope e publicada no dia 18 de junho, mostrava uma aprovação de 75% dos brasileiros às manifestações. Uma vitória política, mas também uma abertura para entender a emergência das suas muitas contradições.

Nem golpista, mais que potência – No campo da esquerda, principalmente duas interpretações vigoram sobre Junho. Uma delas, já mencionada, vê nas manifestações uma manobra, fruto de uma conspiração intergaláctica cujo propósito final e fatal era o “golpe”. Outra parece acreditar que as mobilizações vagam em um vazio temporal e histórico, pura “potência”.

A primeira defende uma visão teleológica da história no interior da qual, em um tempo homogêneo e vazio, uma linha leva 2013 diretamente para 2016 e o impeachment. Sobra oportunismo político, falta um olhar atento às multiplicidades e contradições. A segunda descola o evento de sua historicidade e evita o olhar ao rés do chão. Nessa perspectiva, ele transita em um vácuo onde, igualmente, não há lugar para desacordos ou ambiguidades. Ambas desconsideram que, a partir de um certo momento, sua apropriação por uma nova multidão, em grande medida avessa inclusive às demandas do MPL, impôs ao movimento uma inflexão em sua trajetória.

Se nos primeiros dias era perceptível uma insurgência de inspiração libertária e anticapitalista contra o Estado, o mercado e as formas tradicionais da política representativa, à medida que as ruas ganham contornos mais difusos, operam-se uma metamorfose e uma ampliação das pautas, que se tornam igualmente difusas. Hoje é difícil negar que, em meio à ruptura ensaiada pelas manifestações, sua apropriação por setores midiáticos e de direita tentou, entre outras coisas, neutralizar as possibilidades de renovação à esquerda que o movimento anunciava. E, ao menos parcialmente, conseguiu.

Um legado contraditório – Nesse sentido, os embates começaram a ser travados no curso do próprio movimento, e as disputas narrativas pelo seu legado são sua continuidade. Se é verdade que são herdeiras das “Jornadas”, por exemplo, as ocupações nas escolas paulistas e paranaenses, também o é que, com muitas mediações, elas franquearam a tomada das ruas pelos grupos que, dois anos depois, pediram o impeachment de Dilma Rousseff, ainda que suas intenções passassem longe disso – a potência, afinal, não é uma via de mão única.

Em artigo publicado há alguns dias na Folha de São Paulo, Pablo Ortellado observava, acertadamente, que “quase todas as experiências do ciclo global de protestos de 2011-2013 despertaram forças poderosas que abalaram as instituições, mas quase nunca conseguiram lograr as mudanças aspiradas pelos manifestantes”. Junho de 2013 não escapa desse “flagrante descompasso” entre as mobilizações e seus resultados, modestos, afirma Ortellado; contraditórios, completo.

Em alguns países, como na Espanha, o caminho foi construir uma síntese possível entre a utopia libertária gestada pelos movimentos de rua e a institucionalização. No Brasil, estamos imersos em dilemas que impedem mesmo essa alternativa, entre outras razões, porque não há legenda ou liderança partidária capaz de fazê-lo, apesar dos esforços de marinistas. Será preciso, primeiro, superar a turbulência de agora. E ao que tudo indica, isso levará bem mais que os cinco anos que nos separam das “Jornadas de Junho”.