POR CLÓVIS GRUNER
A derrota para a Alemanha adiou por mais quatro anos o sonho
de milhões de brasileiros. Mas o mundial serviu para que exercitássemos nossa reprimida
verve intelectual: não faltaram análises que pretendiam, nada modestamente,
desnudar a identidade brasileira una e imutável, expor nossa verdade histórica
e iluminar os caminhos e descaminhos de nossa política. Com as redes sociais se
transformando em uma espécie de “puxadinho acadêmico” e o futebol servindo para
“estudo de campo” (com o perdão do trocadilho), era pra se esperar novos e
interessantes achados. Os resultados de tanta pesquisa, no entanto, são
duvidosos.
Houve um esforço, principalmente depois de terça-feira, para
associar o resultado da Copa com as eleições de outubro, como se ambas as
coisas – futebol e eleição – estivessem automaticamente relacionadas. Não é
verdade: se em 1994 o Brasil conquistou o tetracampeonato e o candidato governista,
FHC, foi eleito, a coisa não se repetiu em 1998, quando a seleção perdeu a
final em uma partida, lembremos, também vergonhosa, mas o resultado não influenciou
as urnas e FHC foi reeleito. Por outro lado, em 2002 a seleção foi pentacampeã
e o candidato da situação, José Serra, perdeu para Lula, que foi reeleito em
2006 e elegeu Dilma em 2010, apesar das campanhas pífias nas Copas da Alemanha
e da África, com resultados ainda piores que os desta, em que chegaremos, pelo
menos, ao quarto lugar.
Não estou negando a relação entre futebol e política. Mas dificilmente
alguém decide o voto movido pelo resultado de um torneio esportivo,
independente de nossa paixão pelo futebol. Assim como a reeleição de Dilma não
estaria garantida com o hexa, uma eventual eleição, seja de Aécio Never ou de
Eduardo Campos, não será resultado da derrota: é bom a oposição ter claro que os
sete gols alemães não substituem ideias nem, tampouco, um programa de governo. É
certo que Dilma fará um uso político do fato da Copa ter acontecido sem que se
concretizasse a tragédia anunciada pelos muitos anjos do apocalipse. Mas por
outro lado, não faltará quem lhe cobre a ausência de transparência; os
operários mortos na execução das obras; a ação truculenta da polícia e do
exército; os milhares de cidadãos brasileiros removidos à força em função das
obras, entre outras coisas.
ANTROPOLOGIA DE TECLADO – Mas os equívocos não foram só
políticos. No day after da semi-final, internautas se apressaram a associar a
supremacia alemã em campo à sua superioridade intelectual e científica: a
atestar nossa incompetência, circulou pelo Facebook uma estatística confrontando
o número de prêmios Nobel conquistado pela Alemanha a inexistência de um único brasileiro. A resposta veio no mesmo tom: descobrimos atônitos, graças ao diligente
patriotismo de plantão, que a terra de Hegel amarga o vexame de seus 7,5
milhões de analfabetos o que, subentende-se, coloca no mesmo patamar os seus e
os nossos problemas. Heideggarizando: é-de-dar-dó-do-ser-aí.
Sei que a vida, o universo e tudo o mais não cabem em um ‘post’
de rede social. Mas isso poderia servir justamente para tomarmos um pouco mais
de cuidado com comparações e publicações apressadas e desprovidas de fundamento,
tais como a do senador Álvaro Dias. O parlamentar paranaense já havia sido
motivo de chacota ao cismar com a bandeira cubana no clip da Copa. Na semana
passada, a solidarizar-se com as vítimas do desabamento de um viaduto em
construção na capital mineira, o tucano preferiu tripudiar e tentar faturar eleitoralmente
com a tragédia. Pois ontem o senador presenteou-nos com um texto anônimo,
publicado em sua página no Facebook, exemplar em sua pretensão de fazer, de
nossa suposta identidade, um diagnóstico que se quer histórico e antropológico,
mas que não chega a tocar as fronteiras da mediocridade.
ENFIM, UM PROJETO PARA O PAÍS – Intitulado “Mais que um jogo”, o
texto não apenas desfila alguns lugares comuns do vira-latismo de boutique, mas
os eleva a um outro nível, tendo como fio condutor a máxima que abre a breve digressão:
a derrota da seleção brasileira representou “a vitória da competência sobre a
malandragem!”. Piora: nas linhas seguintes ficamos sabendo que “o Brasil cansou
de ser traído pelo seu próprio povo”, e que nós todos, além de malandros e
incompetentes, somos parasitas corruptos e incorrigíveis. E não apenas nós, mas
nossos pais, mães, avôs e avós: o legado da copa será o “exemplo para gerações
futuras”, não para a nossa ou de nossos genitores e progenitores. Somos, diz o
autor desconhecido e repete o senador, além de desonestos, assassinos, ladrões
e traiçoeiros atávicos.
Não sei dizer o que mais me incomodou, se a pretensão arrogante
de fazer o diagnóstico de uma sociedade complexa, diversa e contraditória como
a nossa a partir de um único jogo, ou o oportunismo malandro e eleitoreiro do
senador. No primeiro caso, fico a imaginar qual a repercussão do texto se, por
exemplo, o resultado fosse outro e se tivéssemos chegado à final: seríamos um
outro povo, segundo o autor daquelas mal traçadas. E se é legítimo reduzir o
que somos a uma derrota no futebol, que dizer do fato que a mesma seleção
vencida em campo na terça sagrou-se cinco vezes campeã mundial em torneios
anteriores? Como disse um amigo, pra fazer antropologia barata sobre o “ser brasileiro” a partir de uma partida de futebol, já basta
o Roberto DaMatta.
Até ontem à noite, quase 33 mil pessoas haviam
compartilhado o pequeno libelo, e pelo menos duas coisas explicam sua
repercussão. Uma delas é o tal oportunismo eleitoreiro, explícito na menção maldosa
e malandra ao ex-presidente Lula. Outra é aquilo que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira lata”.
Quando cunhou a expressão, o “anjo pornográfico” pretendia arrancar-nos dessa
incômoda e humilhante condição, a de vivermos em uma espécie de sujeição
voluntária – parafraseando La Boètie. Álvaro Dias e assemelhados não pretendem
outra coisa senão perpetuá-la, porque essa é a condição sobre a qual
construíram seu projeto de poder. Outro dia reclamei que a oposição não tem um programa
de governo porque não está disposta a pensar o país. Me enganei: uma coisa e
outra estão lá, naquelas poucas linhas compartilhadas no Facebook do
senador tucano. Ao menos para isso nos serviu a Copa.