POR CLÓVIS GRUNER
Foi afirmando seu descompromisso inabalável com a democracia, que Jair Bolsonaro se dirigiu ao Brasil na noite de domingo, logo após a confirmação de um segundo turno entre ele e Fernando Haddad. Ao lado de uma tradutora de Libras e de uma reprodução em papelão de Paulo Guedes, afirmou que o primeiro turno foi fraudado e que será preciso, após eleito, acabar com todo o ativismo político no Brasil.Não há evidência de fraude. Problemas com urnas eletrônicas surgem e são resolvidos em todas as eleições, mas isso nunca impediu Bolsonaro de ser eleito por elas para seus vários e improdutivos mandatos como deputado. No domingo mesmo, o resultado das urnas parece ter surpreendido o próprio candidato, e não apenas porque sua votação – 46,7% do total de votos válidos – ficou bem acima do que indicavam as pesquisas.
Mas também porque o PSL elegeu a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados, além de vários parlamentares nas Assembleias Legislativas de diferentes estados. Um bom número é egresso de quarteis e delegacias: no Paraná, por exemplo, são quatro delegados e quatro militares (dois soldados, um subtenente e um coronel). Depois de “regime militar” (ou “movimento”, de acordo com Dias Toffoli), parece que o Brasil fará mais uma contribuição original à ciência política: a “democracia policial”.
Os números mais que confirmam o fracasso da política e dos partidos tradicionais. Mais particularmente para a esquerda, se trata de uma derrota acachapante, que pouco provavelmente será revertida no segundo turno. Os anônimos comentaristas desse blog podem preparar o foguetório: de tanto nos mandarem para a Venezuela, a partir de 2019 a Venezuela virá até nós.
Vitória do antipetismo – Bolsonaro concorre com um programa que reproduz as conversas de grupos do WhatsApp, diagramado por algum adolescente. Suas declarações, do general Mourão e do economista Paulo Guedes, além de desencontradas, infundem temor. Os seguidos desmentidos inspiram tanta confiança quanto Collor afirmando, em 89, que não confiscaria nossa poupança.
Sem estrutura partidária nem direção, e com parcos oito segundos de TV, o PSL concentrou a campanha nas redes sociais, principalmente nos grupos de WhatsApp, onde montou uma rede de compartilhamento de fake news difícil de rastrear, controlar e desmentir, porque demasiado “líquida”. O alvo principal foi, obviamente, o PT, embora tenham sobrado petardos também para outras candidaturas do establishment.
A estratégia foi suficiente para eleger, entre outros, Hélio Fernando Barbosa, ou “Hélio Negão”: em 2016, pelo PSC, ele obteve menos de 500 votos e ficou em 131º lugar na eleição para vereador em Nova Iguaçú, no Rio de Janeiro. No domingo, recebeu 342 mil votos para deputado federal. Como Hélio, inúmeros outros candidatos que “colaram” em Bolsonaro passaram da condição de desconhecidos a campeões de voto. Por outro lado, figuras tradicionais da política brasileira, à direita e à esquerda, não conseguiram se reeleger.
Aquilo que analistas vem chamando, desde o final de semana, de “nova direita” é, basicamente, fruto de uma aliança que tem como eixo central o antipetismo. Não há programa, projetos, ideias; mas sobra um ódio patológico ao PT que justifica qualquer coisa, inclusive colocar sob risco nossa já frágil democracia, entregando o governo nas mãos de um político aventureiro e fascista.
Herança autoritária – Não há paralelo na história recente da América do Sul. Apesar de terem vivido ditaduras, algumas ainda mais cruéis que a nossa, soluções autoritárias não são sequer cogitadas na Argentina, no Chile ou no Uruguai. Nos dois primeiros, presidentes de direita foram eleitos dentro dos limites da normalidade democrática, e não há indícios de que pretendam alterá-la.
Um paralelo possível para entender o funcionamento e a capacidade de mobilização dessa “nova direita” está em outro tempo. Uma tradição historiográfica que inicia em Hannah Arendt e se estende até historiadores como Robert Paxton e Michael Mann, insiste na tese de que a eficácia do fascismo europeu dos anos 30 residiu, entre outras coisas, em sua capacidade de contrapor, à racionalidade política das democracias liberais, o irracionalismo característico das massas.
O culto personalista ao líder, o elogio da força física e da violência política, em um ambiente de instabilidade e crise, sedimentaram um tipo de unidade que não tardou a reconhecer, na democracia e suas instituições, a razão de um declínio que era, principalmente, moral. O passo seguinte foi oferecer, a essa mesma massa, um inimigo a temer, combater e eliminar.
No Brasil, Bolsonaro conta ainda com as políticas de esquecimento que atravessam e estruturam o presente de uma sociedade que não aceita nem mesmo discutir a dívida histórica da escravidão, que nega a existência de uma ditadura e desqualifica a memória de suas vítimas. No domingo, Bolsonaro prometeu “acabar com todo o ativismo político” como condição para “conciliar o país”. Instruído por algum assessor, dessa vez ele não disse que as minorias, ou se curvam à maioria, ou simplesmente desaparecem. Mas poucas vezes um silêncio gritou tão alto.
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