quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A escolha é sua



POR RAQUEL MIGLIORINI
Na década de 50, após a derrota do Brasil para o Uruguai, Nelson Rodrigues cunhou o termo “Complexo de Vira-lata” para denominar a falta de auto-estima que tomava conta do brasileiro. Particularmente nunca gostei desse termo porque acho que os vira-latas são animais com personalidade e que não se deixam abater diante das adversidades. Mas não vou discutir com Nelson Rodrigues.

Após a humilhação da derrota na Copa do Mundo em casa (tadinho do Nelson, nem sabia o que esperava a seleção brasileira em 2014), todo o cenário nacional passou  por mudanças mais drásticas. Getúlio Vargas morreu/se suicidou em 1954 e quem assumiu foi Café Filho, num governo curto e desastroso. Daí veio a era JK com a construção da nova capital e muitos rumores de superfaturamento nas obras (não, não começou com o PT), seguida pela  renúncia de Jânio Quadros  e a queda de João Goulart pelo golpe militar.

Nas duas décadas em que isso tudo aconteceu, o Brasil cresceu  em diversos setores. Música, Cinema, industrialização, políticas sociais, e dois títulos mundiais de futebol trouxeram novos ares para a nação. O golpe militar interrompeu essa trajetória e o país voltou a se sentir inferiorizado, entregue ao poder e resignado. A imprensa e a elite hipervalorizavam o que era feito fora do país e, de repente, a música e o cinema internacional eram muito melhores que os nossos. Paramos de produzir tecnologia para nos transformarmos em mão-de-obra barata para empresas multinacionais. E pior, acreditamos que éramos realmente imprestáveis  e que, sem o reconhecimento de europeus e norte-americanos, nada do que era feito aqui valia a pena.

Observe que na época pré-ditadura, assim como  agora, as pessoas mais pobres começaram a se sentir parte da mudança, percebendo-se  capazes de melhorar de vida, de estudar, de ter o emprego e a profissão que quisessem, porque não aceitavam mais a imposição da classe social ou da etnia. O  complexo de vira-latas começou a ser atenuado e  fez com que os interessados em manter o povo brasileiro cabisbaixo e sem nenhuma auto-estima começassem  a usar artilharia pesada para voltarmos com “lá fora é muito melhor”, “só nesse país acontece isso”, “quero que meus filhos cresçam longe daqui”, “visitei Paris e é tudo diferente daqui”. Afinal, dominar e manipular quem se acha fracassado é muito mais fácil.

E assim, virou esporte nacional a degradação do Brasil e dos brasileiros. Me desculpe, mas não quero participar disso. Não uso o viés ideológico do “Ame-o ou deixe-o”, até porque, sabemos bem como funcionava, mas quero trocar por “Ame e cuide”, “Ame e faça sua parte”. Precisamos com urgência abandonar a condição de colônia. Estou farta de escutar que a Educação aqui é ruim mas não vejo pais nas escolas exigindo que os filhos estudem, leiam e respeitem os professores. Escutar que a Saúde é ruim e presenciar Unidades de Saúde lotadas às segundas-feiras para  fulanos e sicranos conseguirem atestados por um final de semana de esbórnia. Pais que trazem atestados médicos justificando a falta dos filhos nas provas e no Facebook aparece o cidadão na Disney.

Essas mesmas pessoas comparam o Brasil com países da Europa e da América do Norte sem usar contexto algum, por ignorância ou má fé. Como foi que chegaram aonde estão? Quantos anos eles tem de democracia? Como foi a colonização e em quantas guerras se envolveram? Não é visitando um país ou só lendo matérias seletivas sobre ele que  se pode concluir o que dá certo ou não e se precisamos daquele modelo.

Vamos pensar nas Olimpíadas. Está tudo ruim? Claro que não. Perfeito? Também não. Tem coisa que poderia ser evitada ou melhorada, mas isso não nos faz pior. Eu, por exemplo, não queria ver a Anita na abertura do evento, mas se ela foi convidada é porque o brasileiro gosta. Vai lá e coloca um “Prepara” pra ver se a galera não sabe a coreografia todinha. Elogiar os mascotes Tom e Vinícius não ouvi ninguém. Sinhô mandou criticar e achar ruim, colônia vai lá e faz.

A bola está com você, que pode escolher se vai continuar se achando a mosca do cocô do cavalo do bandido ou se vai se apropriar desse país maravilhoso, com cultura e beleza ímpar e deixar de ser manipulado e resignado. Temos capacidade para melhorar. Para isso, precisamos mudar o olhar e atitude.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Letícia Sabatella e o infeliz encontro com o Sr. Nada

POR JOSÉ ANTÓNIO BAÇO

Puta. Puta. Você é puta”.

Mesmo que imaginasse mil formas de cometer uma estupidez, nunca passaria pela cabeça chamar Letícia Sabatella de puta. Nem ela e nem outra mulher qualquer. Mas, como todos assistimos – e lamentamos –, em Curitiba houve um homem que, sem qualquer pudor, partiu para a agressão verbal, aos grito de "puta". Quem teria topete para fazer uma coisa dessas? Ora, só alguém com um péssimo caráter ou mesmo ausência total dele.

Depois do episódio, começaram a surgir os links. A história do sujeito e da sua família veio logo à tona. E com fatos deploráveis. Mas não é o que interessa aqui. Quem teve a curiosidade de dar uma passada no perfil de Facebook do sujeito viu que ele aparece ao lado de uma menina, presumivelmente sua filha. E muitos, como eu, terão perguntado: será que ele nunca a imaginou a crescer e um dia a ser tratada como ele tratou Letícia Sabatella?

Mas não foi apenas o tal homem. Uma récua de senhoras histéricas se esgoelava a gritar tolices como “ladra, aproveitadora”, “acabou a mamata”, “cria vergonha” e o indefectível “nossa bandeira jamais será vermelha”. Ouch! Tantas bestas em tão pouco espaço. Quem olha para as imagens pode tirar uma conclusão: essas pessoas imaginam estar a fazer uma espécie de “justiçamento”. É a justiça do fáscio. A justiça do Sr. e da Sra. Nada.

Quem são o Sr. e Sra. Nada? Ora, gente que antes vivia isolada a remoer os seus ódios e as suas intolerâncias, mas sem formas de expressão coletiva. As hienas só sabem atacar em grupo. E a onda de reacionarismo que tomou conta do Brasil veio criar o palco perfeito para esses delírios fascistas. Wilhelm Reich diz que o fascismo é “a expressão da estrutura irracional do caráter do homem médio”. É o retrato das ruas. Gente enlouquecida vestida de amarelo.

Desnecessário lembrar os perigos do fascismo. O ideário fascista é o húmus que fez brotarem exércitos de sras. e srs. Nada pelo Brasil. E não se deixem distrair, leitoras e leitores. Esses exércitos são monstros sem cabeça que só entendem a linguagem do obscurantismo, da intolerância e do ódio. A vítima mais recente foi Letícia Sabatella, mas qualquer pessoa que tenha um QI maior que o de um chimpanzé é um alvo potencial. É a ascensão do Sr. Nada.


É a dança da chuva.


segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Joinville: por que eles querem uma cidade de merda?

POR JORDI CASTAN

Numa cidade em que mais de 70% dos domicílios não têm rede e nem tratamento de esgoto, há quem insista em adensar e verticalizar. Não entendem uma coisa simples: não há desenvolvimento sem saneamento. Assim, o futuro Joinville tem tudo para estar na merda. Literalmente, porque não é uma figura de linguagem. A depender dessa gente, o nosso futuro como cidade pode estar condenado a ser a lida diária e constante com os problemas originados pelas fezes, os excrementos e os seus similares.

Não faltam alertas de que a infraestrutura urbana não comporta o modelo de cidade que a LOT propõe. Faltam ruas para tanta Faixa Viária, mas também esgoto. Nem é preciso falar das que não tem previsão de receber saneamento básico nas próximas décadas ou daquelas ruas em que foi instalado a rede de esgoto faz menos de 24 meses.

O que dizer das ruas onde a CAJ (Companhia Águas de Joinville) instalou a rede não faz nem dois anos? Os novos empreendimentos têm que instalar fossa e filtro, um anacronismo poluente que deve ser extirpado de Joinville. Ou, então, é preciso instalar uma nova tubulação que comporte o aumento da demanda, algo não previsto no planejamento de CAJ. Imprevidência? Inépcia? Falta de planejamento? Difícil de responder.

Joinville pode ser vítima da coprofilia, essa atração patológica que muitos parecem ter por fezes e sujeira. E aí a palavra sujeira entra no seu sentido mais amplo, da corrupção, da imoralidade e da ilegalidade. A ganância exacerbada e o que há de pior no ser humano. E sobre em Joinville. Só isso nós permitiria entender por que figuras que vendem honestidade e probidade, na verdade sentem-se mais à vontade chafurdando na sujeira.

A concretizar-se o projeto da LOT, é provável que as novas gerações - para as quais a a cidade está sendo planejada - não só convivam com mais doenças, sobrecarregando ainda mais o sistema de saúde. E pode ser que acabemos criando uma geração de pessoas acostumadas a conviver com esgoto sem tratamento e excrementos até o ponto de formem parte do seu quotidiano.

E quem sabe, num futuro mais distante, estudiosos vasculhem os restos da civilização que um dia reinou nestes manguezais. E acharão restos de sambaquis construídos inteiramente de coprolitos, ruínas de torres com 20 ou mais andares, verdadeiros templos dedicados render homenagem a cobiça, modernas pirâmides de concreto e aço que converteram a cidade num ambiente lúgubre, sombrio, inóspito e insalubre.

PEQUENO GLOSSÁRIO
coprófilo
[De copr(o)- + -filo2.]
Adjetivo.
Substantivo masculino.
1.Biol. Diz-se de, ou bactéria que vive nas fezes.
2.Psiq. Que ou aquele que tem coprofilia (2).

coprofilia
[De coprófilo + -ia1.]
Substantivo feminino.
1.Biol. Condição de coprófilo.
2.Psiq. Atração patológica por sujeira, esp. por fezes e pelo ato de defecação.

coprófago
[Do gr. koprophágos.]
Adjetivo.
1.Que pratica a coprofagia.
Substantivo masculino.
2.Animal ou indivíduo que a pratica. [Sin. ger.: escatófago.]

coprofagia
[De copr(o)- + -fag(o)- + -ia1.]
Substantivo feminino.
1.Modo de alimentação dos animais que se nutrem de excremento.
2.Psiq. Estado mórbido que impele o indivíduo a comer excremento. [Sin. ger.:escatofagia.]

coprólito
[De copr(o)- + -lito.]
Substantivo masculino.
1.Paleont. Excremento fóssil.
2.Med. Massa fecal endurecida; cíbalo.

escatologia1
[De escat(o)- + -logia.]
Substantivo feminino.
1.Tratado acerca dos excrementos.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

A complexidade dos Direitos Humanos e o olhar simplista do senso comum

POR LIZANDRA CARPES* 



E
m tempos de perigosos retrocessos na luta por direitos, é inevitável falar da evolução histórica dos Direitos Humanos e o que eles compreendem. Primeiramente falo para todas as pessoas que se entendem por seres humanos, depois é preciso compreender que na história da humanidade nem sempre tivemos acesso a direitos que temos hoje.

O Código de Hamurabi, por exemplo, é o registro mais antigo (1772 a.C.),  no que diz respeito a legislações, cunhado em pedra, na antiga Babilônia.  Contém 282 leis, porém nenhuma delas defendia o fim da escravidão humana. Muito pelo contrário, ele punia quem roubava escravos. Reza o Código que se algum recém-nascido da nobreza morresse após ser amamentado por uma ama de leite escrava, a mesma era condenada a ter os seios cortados. Ou seja, as leis eram pautadas nas classes sociais.

De lá para cá a história dos Direitos Humanos deu voltas, vestiu-se com a roupagem da igualdade entre todas as pessoas.  Muitos foram os pensadores que aprofundaram a ética pautada nos direitos naturais que passaram a ser tratados como Direitos Humanos no sentido de jurisprudência. Foi preciso transformar em leis as necessidades vitais e naturais humanas, porque “alguém”, de alguma forma, os nega. O mais pertinente a ressaltar nesta história é que “o mais forte ainda prevalece sobre o mais fraco”, ou seja, leis, tratados, pensamentos, declarações não têm força suficiente para garantir essa tal igualdade.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, é a compilação de uma observância histórica pós-guerras e inúmeras outas violações contra a pessoa humana que a Organização das Nações Unidas (ONU) preocupa-se em agrupar em 30 artigos, para pautar a defesa ao direito à vida digna para todas as pessoas. Este documento abarca avanços imprescindíveis, sempre partindo da premissa de que o ser humano nasce bom, a sociedade em que ele vive o corrompe, coadunado com o filósofo Jean Jacques Rousseau. Sabe-se também que ao longo da história as leis só garantem direitos onde existe fiscalização, resistência e luta.

Se observarmos a Constituição Federal Brasileira (CFB) de 1988, considerada uma das mais cidadãs do mundo, pautada nos Direitos Humanos, consta que o Estado deve garantir direito à moradia, à saúde, ao trabalho digno, educação, liberdade de expressão e aqui compreende a cultural e religiosa, ir e vir. No entanto, as leis não garantem nada.
Por que é tão importante memorar isto? Porque vivemos em uma sociedade sem memória e parte dela acredita que acordou um belo dia com todos os direitos garantidos e os tem simplesmente porque “deus” quis assim. Não avalia o quanto de sangue, luta, suor, tortura e lágrimas escorreram para serem conquistados e não sabe que, quem está no poder nunca precisou lutar por eles, luta apenas quem precisa. Daí surge a necessidade e a importância dos movimentos sociais e políticas públicas para pressionar a efetivação dos Direitos Humanos.

Tudo isso deveria estar muito claro por ser retrato da história. No entanto, o pouco investimento que tivemos em educação e a elaboração Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) não foram suficientes para esclarecer e promover uma cultura de defesa destes direitos. A educação formal e informal não preparou de fato para as causas humanas, mas sim, se voltou para o mercado capitalista e mais especificamente em Joinville, para trabalhar na indústria. Se as pessoas não se derem conta de que, o que elas pensam delas mesmas não é delas, mas sim, fruto da visão e construção de outro sobre elas, não poderão iniciar o processo de libertação.

Então, DUDH, CFB, Educação, são mecanismos e instrumentos de efetivação destes direitos que precisam de atores que protagonizem a luta e a defesa dos mesmos. Sempre lembrando que eles são universais e inalienáveis, colocando a postura de defesa sob o olhar da comunidade internacional.

Os direitos defendidos nos artigos da DUDH trazem a reflexão da casa comum, do lugar onde se vive. Embora não faça citação à educação ambiental fica implícita a necessidade destes cuidados quando ela se refere à moradia digna, lazer, saneamento básico. Sugere que a humanidade se atente pelos bens indispensáveis para a sobrevivência e apela pelo respeito a qualquer tipo de vida. Logo, cuidar da terra, da água, do ar e de toda a biodiversidade, não com um olhar antropocêntrico, mas sim, observando a sustentabilidade integral é também lutar por Direitos Humanos.

Os Direitos Humanos compreendem também a Bioética. Nenhum ser humano pode ser alvo de pesquisas científicas sem que esteja ciente dos riscos/benefícios. Nenhuma pesquisa que envolva vidas humanas pode ser continuada sem passar pelos conselhos de ética das universidades. Esta preocupação perpassa também com pesquisas realizadas com animais. E estes também foram direitos adquiridos por manifestações de pessoas que perceberam na ciência, violação de direitos.


Nenhum ser humano deve ser sacrificado para benefício de outros. Ou seja, não vivemos em tempos messiânicos de um “deus” que nos dá e nos tira o que quiser.  Vivemos em tempos de lutas para garantir e proteger direitos e a resistência pautada na unidade das lutas é a marca registrada desta defesa. Por estes e outros motivos, olhar de maneira simplista para os Direitos Humanos é leviano e criminoso, coloca em risco vidas e contribui para a dominação do poder hegemônico.

* Lizandra Carpes é jornalista e assessora de comunicação do Centro dos Direitos Humanos de Joinville.