Na correria, com a agenda sempre cheia, imersos em nosso universo particular, nos distraímos facilmente. Na maior parte do dia, o nosso status é "ocupado". É fácil vacilar e se desconectar do mundo que nos rodeia. O egoísmo e esse olhar desatento são compreensíveis até certo ponto. A vida do brasileiro nunca foi fácil. Mas tivemos, sim, um tempo de respiro. Agora, o ar está rarefeito novamente e muitos não têm mais fôlego. A crise é sintomática.
No ônibus, de volta para casa, depois de um dia intenso de trabalho, Marisa conversa com a amiga, faz as contas e infere que gastaria R$ 200,00 com plano de saúde para ela e para a filha. Como coração de mãe pulsa com um amor maior, ela até se privaria do plano, se possível, e pagaria apenas para sua pequena. Mas não funciona assim. São duas alternativas: ela garante o plano para as duas ou recorre ao SUS quando precisar. Neste momento, a segunda alternativa é a mais viável.
A opção é essa porque as contas do orçamento doméstico de Marisa não fecham. Mãe solteira, ela trabalha de segunda a sábado para oferecer o melhor a pequena Beatriz. No fim do mês, sempre longo demais, ela recebe R$ 1000,00 de remuneração. Com o desconto do plano de saúde e dos demais encargos, seu salário seria resumido a menos de R$ 800,00. Nem precisar dizer que é insuficiente para quitar as despesas fixas e oferecer o essencial para sua filha. “Eu tenho que escolher entre ter o plano e comer. Não vai dar para ter o plano”, conclui ela como quem se justifica e lamenta por não conseguir fazer mais pela sua menina.
Ainda inconformada, Marisa conta que o mesmo plano de saúde para as duas, se particular, é oferecido ao custo médio de R$ 400,00 mensais. A conta realmente é absurda e incoerente, principalmente se pensarmos que o gasto com saúde é duplicado para uma parcela grande de cidadãos. Pagamos pela saúde pública, e pagamos, também, para ter acesso ao serviço de saúde privada. A essa altura já tem gente pensando: “Que bom que tenho condições de pagar os impostos e o plano de saúde”. Enquanto agradecemos por essa chance, nos recolhemos, mais uma vez, em nosso infinito particular, quase ignorando a realidade que grita: Marisa e muitos outros não podem custear um plano. Ter condições de pagar pelo atendimento particular não é a grande vantagem. No mundo ideal, eu, você e Marisa deveríamos ter acesso à saúde pública de qualidade, sem pagar nada além dos nossos impostos. Porém, em um movimento contrário ao cenário ideal, observamos que a dificuldade no acesso aos serviços de saúde é crescente.
Em Joinville, no início de 2016, o Hospital São José registrou um aumento de 30% no número de pacientes. São pessoas em situação semelhante à da Marisa. Antes tinham plano de saúde e, agora, com o enxugamento dos gastos e com o desemprego, o plano é acessório. Como diz Marisa, em uma fala que soa exagerada, mas extremamente realista: "Ou eu coloco comida na mesa ou eu pago o plano." Já não é uma questão de escolha, a prioridade é óbvia.
Enquanto a saúde de mãe e filha não se mostra frágil, a vida segue com pão na mesa e o amor materno que, muitas vezes, alimenta até a alma. Mas, se no meio do caminho, Beatriz precisar de uma consulta ela pode se deparar com uma morosidade que parece sem fim. Hoje, em Joinville, a demora por uma consulta com especialista em unidade de saúde se estende por meses e, em alguns casos, anos. Enquanto alguns pacientes aguardam, outros sentem dor demais ou têm urgência na consulta. Não dá para esperar. A opção é buscar o atendimento particular na rede de saúde privada e pagar a conta mais uma vez. Agora, quando o paciente não tem recurso, a dor é insistente e o sofrimento também. A fé aumenta e os dias de espera são minuciosamente contados. A sorte está lançada. A torcida é pela força. A luta é pela vida.
Dependendo do caso, em situação de emergência, se a Marisa precisar de uma internação no Hospital São José, por exemplo, ela corre o risco de ficar no corredor. Em 28 de janeiro, o hospital registrou superlotação com 60 pacientes acima da capacidade da estrutura que dispõe de 26 leitos. O cenário poderia ter ficado pior. Além da estrutura insuficiente, o Zequinha, apelido dado por funcionários e pacientes ao hospital, poderia ter ficado com um time de médicos ainda mais enxuto. Em 4 de fevereiro, o prefeito Udo Döhler assinou portaria suspendendo, por tempo indeterminado, a matrícula de 38 médicos residentes. Segundo a administração municipal, a ação geraria uma economia de R$ 1,3 milhão por ano aos cofres públicos.
São os médicos residentes, com a orientação dos preceptores, que atendem os pacientes no pronto socorro do hospital. Eles aprendem, acolhem e prestam cuidado e assistência mesmo em um cenário embaraçoso, com recursos escassos. Se confirmada a suspensão, as consequências seriam desastrosas. Com a pressão da classe médica, das entidades, do sindicato e de pacientes, o prefeito Udo Döhler recuou. A portaria foi revogada no dia 10 de fevereiro e os médicos residentes serão contratados. A sensação é de alívio, mas não dá para comemorar. A administração só fez diferente pela força da lei e do clamor da população. A suspensão da contratação dos médicos residentes, muito possivelmente, configuraria a privação do direito à saúde, uma vez que a redução da equipe de profissionais implicaria diretamente na diminuição da capacitada instalada de atendimento do hospital. Menos médicos, menos vagas, menos vidas.
Impossível não se sensibilizar com as preocupações de Marisa. Não é preciso viver na pele a dicotomia “pão ou saúde” para compreender o tamanho do descaso com a saúde. Mas também é muito difícil visualizar formas de intervir e lutar por transformações efetivas no Sistema Único de Saúde. O cenário está embaraçoso e precisamos arregaçar as mangas e mostrar-nos interessados em fazer diferente ao lado da gestão pública. Não dá para esperar que a gestão faça mais, se não mostrarmos nossas reais necessidades e nosso poder de transformação. É preciso ver além do nosso infinito particular.
Enquanto não conquistamos avanços, principalmente no serviço público de saúde, devemos buscar alternativas para vivermos bem, garantindo a nossa qualidade de vida e de quem mais pudermos. Este passa a ser um exercício fraterno que requer empatia e pede para cada um pensar em si, no outro, e no coletivo. É assim que a gente descobre que vale mais a pena saborear o pão, viver o amor, e, de preferência, esquecer que a vida está sempre por um fio. Diante de qualquer fragilidade, pode faltar recurso para restaurar a saúde, dar um nó em um novo fio e recomeçar. O jeito é ser bem consciente: a saúde nos pertence hoje, amanhã não se sabe. Só por hoje, eu, Marisa, Beatriz, e, acredito que você também, desejamos um país e uma Joinville com mais transparência, mais saúde, mais vida.
* Ariadna Straliotto Amaral é jornalista