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Site do "The Telegraph" discute a questão da Crimeia |
POR JOSE ANTÓNIO BAÇO
Tem muita gente a reagir de forma pavloviana à
questão ucraniana e à situação na Crimeia. Há uma certa tendência de tentar simplificar o que é complexo. E todos os dias nos deparamos com posições rudimentares que
ignoram qualquer complexidade. Entende-se. É um tema que traz ecos da Guerra
Fria, uma época em que havia apenas dois lados e apenas uma ameaça (as armas atômicas). Nesse tempo era fácil escolher.
Mas essa lógica caiu de madura
faz décadas. Hoje há muitas variáveis a considerar. A primeira evidência é que União
Europeia, Estados Unidos e Rússia estão a defender os seus próprios interesses
e com isso a passar por cima dos interesses da população ucraniana. No entanto,
parece óbvio que a questão não será resolvida pelas armas (alguém acha que a UE e
os EUA querem entrar em confronto com a Rússia e vice-versa?). Falam mais alto
os argumentos econômicos.
Ninguém tem dúvidas de que a arma desta nova
Guerra Fria é o gás natural. O corredor ucraniano é essencial para abastecer a
Europa, por onde passa mais de 20% do gás que abastece o continente, em
especial os países mais a Leste, onde podemos destacar a Alemanha (que está a abrir mão da energia nuclear). Não por
acaso os preços do gás natural têm subido nos últimos dias.
Os interesses econômicos vão falar mais alto
(mas não devemos desconsiderar os interesses da indústria bélica). Mas isso não resume
a questão. Há uma divisão: o atual governo da Ucrânia quer entrar para a União
Europeia. O povo ucraniano, cansado da pobreza e da corrupção dos seus
governantes, acredita ser esse o caminho para a instalação de um verdadeiro
estado de direito. Mas há aqui uma questão de credibilidade.
Um problema sério é que o atual - e interino -
governo ucraniano, formado há poucas semanas, abriga elementos de extrema
direita (neofascistas mesmo), em pontos essenciais como a ordem pública, defesa
ou justiça. Se continuarem a ganhar posições, podem vir a representar um
perigo para a frágil democracia ucraniana e para próprias democracias
europeias. É mais um complicador.
Também é importante não esquecer que os
ucranianos têm um rancor histórico em relação aos russos, por causa do autêntico
holocausto ocorrido durante o estalinismo: há quem fale em sete milhões de
ucranianos mortos sob o regime sanguinário de Joseph Stalin, na época da União
Soviética. Portanto, há uma dívida de sangue que os ucranianos não esquecem. Mais uma complicação.
Mas a grande pedra no sapato é a estratégica Crimeia,
uma região com dois milhões de habitantes, dos quais 60% são russos e querem a
anexação à Rússia. Os ucranianos representam apenas 26% da população, seguidos
dos tártaros, que perfazem cerca de 12%. Estes dois últimos grupos tendem para
a defesa da adesão à União Europeia, mas como todos sabemos, os russos já
hastearam a bandeira no território.
Portanto, o que temos são enormes indefinições. E quem, no Brasil, tomou uma posição com base em ideias simples
(do tipo “não gosto do Tio Sam, então sou a favor de Putin” ou vice-versa) está
a se precipitar. A coisa é muito mais complicada. Infelizmente, esse é um filme
onde os protagonistas parecem ser todos bandidos. E o povo ucraniano, que parece
andar à mercê dos humores dessa gente, é que está a pagar a conta.
Em tempo. Alguém já imaginou que o Brasil pode
sair beneficiado dessa confusão toda? A coisa é bastante linear: a dependência
dos combustíveis russos é um pesadelo para a Europa, que há tempos pensa em
alternativas. Uma delas pode ser o oceano Atlântico, que permite ligar a países
democráticos, ricos em recursos energéticos e integrados no comércio mundial. É
onde está o Brasil.